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Cultura

Crítica de livro: 'A extinção das abelhas', de Natalia Borges Polesso

Em novo romance, gaúcha explora relações entre mulheres numa trama de perdas e sobrevida, ambientada num brasil distópico pós-pandemia
Abelhas.Representação da coletividade e também da desagregação na sociedade Foto: Tycson1 - Stock Adobe
Abelhas.Representação da coletividade e também da desagregação na sociedade Foto: Tycson1 - Stock Adobe

“O fim do mundo já acontecia fazia tempo bem na nossa vizinhança. E assistíamos a ele como se fosse ficção, como se não fosse problema nosso.” Palavras de Regina, a narradora de “A extinção das abelhas”, de Natalia Borges Polesso. Desde o início deste inquietante romance, o pacto com o leitor se estabelece: de imediato, ele nos enreda na teia em que haverá família, amor e o colapso de uma ordem como até então conhecíamos. O familiar e o estranho se entrecruzam de forma permanente. Porque já havia caos, mas ainda não havia tanto caos, e é melhor estar preparados.

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Nesse contexto, as abelhas são importante índice a ser contabilizado, já que sua presença ou ausência mensura o grau de derrocada da sociedade. A colmeia surge como forte imagem da coletividade e indaga sobre possíveis modos de agregação. A narrativa é formada por três blocos, encabeçados por trechos de “Mortal loucura”, poema do baiano Gregório de Matos. Como não poderia deixar de ser, os versos barrocos mostram como o tempo é instância relativa, voltando a cada tanto para nos interpelar: o que há no fim desta jornada? Quase um sino repicando e ecoando, como evidencia a maravilhosa versão musicada por José Miguel Wisnik e Caetano Veloso.

“A extinção das abelhas” se passa em um momento pós-pandemia, e no Brasil um apresentador de televisão foi eleito presidente, após impeachment do anterior. Como se não bastasse, zonas de confinamento se multiplicam e há uma vigilância permanente sobre a sociedade. No plano pessoal, Regina tem 40 anos, é diabética e o pai morreu. Fracassada no amor e no trabalho, mestra em teoria da literatura, a personagem vive com poucas alegrias e montanhas de frustração.

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A escritora gaúcha explora neste segundo romance aspectos das relações homoafetivas entre mulheres, retomando tema do livro de contos “Amora” (2015), pelo qual recebeu o prêmio Jabuti em 2016. O feminino se multiplica nessa investigação sincera sobre o amor, o erotismo e as formas de sobrevida em um planeta em frangalhos. Quando criança, Regina foi abandonada pela mãe, Lupe, que vai viver com uma trupe de circo e passa a encarnar a personagem Monga, mulher selvagem que usa uma cabeça de macaco em suas apresentações. O travestimento acaba ecoando, no futuro, na filha, que por certo tempo faz sexo virtual pago diante de câmeras sob o nome de Divaine. Nele, o fetiche principal é a cabeça do mesmo animal. A ideia de disfarce se faz necessária em um mundo cruel com as mulheres. Brutalidade e violência atravessam as páginas dessa história, que evoca um cenário de estupros frequentes e caçadas a pessoas lésbicas e trans.

Longe de estereótipos

Sim, transitamos no território da necropolítica e da negação dos direitos civis, enunciados em “O conto da Aia” (1985), romance de Margaret Atwood, e “Bacurau” (2019), filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Não estamos em Gilead ou no Nordeste brasileiro, mas no Sul do país. Familiarizados com essas discussões, avançamos de forma fluida, já que a autora conduz com mão muito segura seu universo distópico. Nele, uma história de perdas e tentativas de sobrevivência, mas se faz presente a chave do humor e a conformação de sentenças que sintetizam de modo irônico tantos desses sentimentos contraditórios. “Tudo parecia uma caricatura”, resume. Mas não o romance de Polesso, que escapa de uma possível estereotipia dos personagens — nisso reside um de seus muitos méritos. Lupe, Regina, Aline, Lu, Pietra e tantas outras são construídas com muitas camadas de sentido e não se definem apenas em função de sua orientação sexual, embora ela esteja lá.

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Permeada por perguntas, a narrativa fala de um não saber, de uma perplexidade constante. “Como posso explicar a mim mesma sobre o fim?”, indaga-se. Algo sempre nos escapa, e nesse universo em crise, o difícil, como alerta Italo Calvino em “As cidades invisíveis” (1972), é distinguir o inferno do não inferno, e prosseguir. Ao encontrar essa resposta, as abelhas fabricarão algum mel, desta vez para si próprias. Nesse panorama de morte e extermínio, viver é a grande revolução, como sentencia a narradora. E ela será feminina, de matriarcados possíveis em que sobrevivam focos de resistência. Para que exista, a insurgência surge mediada pelos relatos dessas mulheres. “O que pode realmente nos salvar é este exercício constante de reconstruir o tempo na língua. A memória.” A jornada não termina se a palavra persiste.

*Stefania Chiarelli é professora de literatura brasileira na UFF e coorganizadora de “Falando com estranhos — O estrangeiro e a literatura brasileira” (7Letras)

"A Extinção das Abelhas"

Autora: Natalia Borges Polesso. Editora : Companhia das Letras. Páginas : 312. Preço : R$ 69,90. Cotação: Ótimo.