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O passado com um pé no presente.

Informações da coluna

William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.

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O cantor Nelson Ned tinha levado sua mulher e os três filhos para jantar numa noite de sábado. Lá pelas 23h, o motorista da família deixou as crianças em casa, no bairro de Campo Belo, na Zona Sul de São Paulo, e saiu para levar o casal a uma boate. Já era madrugada alta de domingo, dia 10 de abril de 1988, quando a residência foi acordada pelo barulho inconfundível de um tiro, algo que não era raro no endereço do famoso artista de então 40 anos. Segundos depois, o menino Júnior entrou esbaforido no quarto das duas irmãs, Verônica e Monalisa, dizendo: "Hoje o pai matou a Cida!".

Relatado no livro "Tudo passará: A vida de Nelson Ned, o Pequeno Gigante da Canção" (Companhia das Letras), recém-lançado pelo jornalista André Barcinski, o caso é um dos muitos que ilustram o lado violento do cantor mineiro morto em 2012, aos 66 anos. A obra destrincha a carreira do artista, que vivia às turras com a imprensa brasileira. Cantor de hits como "Tudo passará", "Domingo à tarde" e "Apesar de tudo", com sucesso estrondoso em países como EUA, Portugal, México e Colômbia, ele reclamava da falta de reconhecimento pela mídia nacional, que o rotulava como brega.

Mas o trabalho de Barcinski tem seus trechos mais impactantes ao investigar a vida pessoal de Ned, que desde cedo conviveu com as agruras do nanismo, tanto em suas empreitadas afetivas quanto no showbiz. Suas canções tratavam principalmente de rejeições amorosas, sofridas em grande parte devido a sua condição congênita. Ele era um adolescente quando, em 1964, lançou o LP “Um show de 90 centímetros” (Nelson media 1,12m), em cuja capa aparecia ao lado de uma fita métrica. A força de sua voz e de suas letras abriu as portas do mercado. Nelson se tornou rico, famoso e mulherengo.

Capa do primeiro disco de Nelson Ned, em 1964, aos 17 anos — Foto: Reprodução
Capa do primeiro disco de Nelson Ned, em 1964, aos 17 anos — Foto: Reprodução

Ao alcançar uma posição de poder, o cantor se entregou aos excessos. Principalmente no período entre meados dos anos 1970 ao fim dos 1980, quando o artista, em seu auge, exibia apetite insaciável por festas, sexo, álcool e cocaína. Segundo o livro, Nelson tinha entre seus fãs chefões do tráfico na Colômbia e no México que o presenteavam com frascos de cocaína pura, muitas vezes trazidos por ele ao Brasil. O abuso de substâncias "recreativas", combinado ao uso frequete de remédios para dores as crônicas que o acometiam, deixava o mineiro de Ubá "sujeito a variações abissais de humor".

Barcinski narra episódios em que Ned se envolveu em brigas por motivos fúteis. Em Toronto, no Canadá, por pouco não saiu no braço com o motorista de uma limusine. Em Campinas, desceu do palco para ir às vias de fato com fãs que o haviam ofendido. O autor também descreve como o cantor ostentava sua riqueza, pedindo garrafas de champagne francesa às dúzias em restaurantes caros, às vezes dando gorjetas polpudas, em outras disparando grosserias contra garçons em voz alta, antes de pagar contas que em certas ocasiões alcançaram o valor de um carro.

O livro também descreve a forma como Nelson se relacionava com os filhos. Viajava por meses sem dar muita satisfação e atrasava o pagamento de pensões e mensalidades escolares. Quando estava presente, era um pai bem-humorado, que patrocinava grandes festas de aniversário para as crianças. Mas usava as filhas como pretexto para encontrar suas amantes. Dizia para Maria Aparecida que as levaria ao cinema, deixava as duas no shopping center e saía para suas "escapulidas". Depois, com frequência, esquecia as meninas por lá, e elas tinham que chamar um táxi para voltar.

Nelson Ned com violão em 1970 — Foto: Arquivo
Nelson Ned com violão em 1970 — Foto: Arquivo

Dentro de casa, o pior era a relação com Maria Aparecida. Seus três filhos (todos, assim como Nelson, nascidos com nanismo) eram fruto do primeiro casamento do cantor, com a atriz Marli. Os dois se separaram devido à infidelidade do artista, e, anos mais tarde, ele se envolveu com Cida. Como os filhos não se davam nada bem com a madrasta, o artista chegou a expulsá-los de casa. Mas o próprio casal vivia brigando. Segundo o livro de Barcinski, os dois estavam sempre bebendo, cheirando cocaína, frequentando boates e trocando gritos e agressões em casa, de madrugada.

"Os filhos e funcionários da casa se habituaram a presenciar xingamentos e cenas de agressões de ambos os lados. Amigos se afastaram. Na madrugada, loucos de cocaína e álcool, Nelson e Cida discutiam aos berros, acordando crianças, empregados e vizinhos. E aí começavam os tiros“.

Numa manhã, a babá Lucinda ouviu dois estampidos. Subiu as escadas, entrou na suíte do casal e viu Nelson, de cueca, apontando um revólver para a porta do banheiro, que já tinha dois buracos de bala. O cantor gritava: “Sai daí que eu vou te matar!”. E a mulher respondia: “É melhor me matar agora, senão eu é que vou acabar com você!”. A funcionária apelou: “Seu Nelson, pelo amor de Deus, me dá essa arma”, disse Lucinda, de acordo com o livro. “Toma, Lucinda, pode levar”, concordou o artista , já um pouco mais calmo, entregando a pistolinha. “Pode ficar com essa, que eu tenho um monte por aí.”

O cantor conservava um pequeno arsenal em casa. Gostava de colecionar e presentear pessoas com armas. No começo dos anos 1980, Nelson deu ao general João Figueiredo, último presidente da ditadura militar, um revólver Colt 45 banhado a ouro que havia recebido de Arturo Durazo, chefe de polícia mexicano que, em 1984, seria preso por corrupção, contrabando de armas e outros crimes. O cantor brasileiro costumava se encontrar com chefes do tráfico quando visitava países da América do Sul. Certa vez, esteve até mesmo com Pablo Escobar. "Ele era muito meu fã", disse Nelson.

Nelson Ned durante show do Dia do Trabalhador na Quinta da Boa Vista, em 1973 — Foto: Adalberto Diniz
Nelson Ned durante show do Dia do Trabalhador na Quinta da Boa Vista, em 1973 — Foto: Adalberto Diniz

No dia 10 de abril de 1988, o motorista Manoel Antônio Ramos disse ao delegado Adolpho Rebello que encontrara seu patrão chorando copiosamente no quarto do casal, onde também identificou manchas de sangue. "A investigação policial concluiu que Cida havia levado um tiro na clavícula, disparado de uma pistola calibre 22", diz o livro. Ela foi socorrida e levada a um hospital por um vizinho. Ao policial de plantão no pronto-socorro, a mulher, embriagada, disse que tinha sido baleada pelo marido. Depois, os dois contaram que Cida fora atingida por um disparo acidental.

Como a mulher deu ao policial o nome verdadeiro do cantor, Nelson D’Ávila Pinto, o caso demorou até chegar aos jornais. No dia 16 de abril de 1988, O GLOBO noticiou "Nelson Ned acusado de tentar matar a mulher". De acordo com a reportagem, a polícia acreditava na hipótese de crime. "Só posso lamentar o que aconteceu, mas vou cumprir minha obrigação e indiciá-lo pela tentativa de assassinato", disse o delegado Adolfo Andrade, segundo o diário carioca. Àquela altura, o cantor estava nos EUA, para onde viajara após o episódio em casa. De lá, ligou para a Rádio Globo e rebateu a suspeita.

"Sou completamente inocente. Cheguei bêbado naquela madrugada e subi para o quarto de cueca. Havíamos comemorado nosso aniversário de casamento e não posso entender o que aconteceu. No quarto ouvi o tiro e só posso pensar em um acidente", disse o artista.

De um jeito ou de outro, o episódio agravou a relação do cantor com a imprensa nacional. Nelson já se ressentia muito por não ter seu valor reconhecido em seu país. Passava até oito meses por ano fora do Brasil, fazendo shows. Até Roberto Carlos "invejava" o sucesso internacional do colega. A mídia por aqui, entretanto, fazia pouco caso dele, rotulando-o como brega. O artista reagia desdenhando da imprensa e da "elite" da MPB durante suas entrevistas. A partir do tiro em sua casa, tornou-se ainda mais rara a publicação de alguma matéria sobre ele que não fosse negativa.

Em seguida, Nelson entraria em decadência. Na década de 1990, converteu-se à religião evangélica e passou a gravar só discos gospel, como "Jesus te ama" e "Jesus está voltando". Mas o êxito comercial era muito aquém do seu auge. Em 2003, Nelson sofreu um acidente cardiovascular cerebral, perdendo a visão do olho direito. O cantor passou seus últimos anos com difculdades financeiras. Em 2013, foi morar em uma clínica de repouso. Ele morreu em janeiro de 2014, devido a complicações geradas por um quadro grave de pneumonia.

Nelson Ned em 2011, quando tentou uma volta ao sucesso — Foto: Marcos Alves
Nelson Ned em 2011, quando tentou uma volta ao sucesso — Foto: Marcos Alves
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