Blog do Acervo
PUBLICIDADE
Blog do Acervo

O passado com um pé no presente.

Informações da coluna

William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.

Por William Helal Filho


Clara Nunes em 1977: cantora morreu aos 40 anos de idade — Foto: Alberto Jacob/Agência O GLOBO
Clara Nunes em 1977: cantora morreu aos 40 anos de idade — Foto: Alberto Jacob/Agência O GLOBO

'Tenha sonhos coloridos'. As últimas palavras que Clara Nunes ouviu foram ditas pelo anestesista Américo Autran Filho, enquanto ele administrava o sedativo no corpo da cantora, antes de uma cirurgia na Clínica São Vicente, na Gávea, Zona Sul do Rio. Durante a operação, entretanto, 65 minutos após a aplicação do anestésico, a artista de 40 anos apresentou uma reação atípica e teve uma súbita parada cardíaca. Os médicos responderam com urgência e recuperaram os batimentos da paciente cerca de 20 minutos depois, mas não conseguiram evitar a tragédia. Uma das cantoras mais celebradas do Brasil, Clara não morreu na mesa, mas entrou em um estado de coma profundo.

O imprevisto aconteceu no sábado de 5 de março de 1983, mas a informação só chegou a público na quarta-feira seguinte. Dezenas de fãs e amigos correram para a clínica, ansiosos por notícias. Como ninguém sabia direito o que tinha levado Clara ao hospital, não faltaram boatos dando conta de que ela havia tentado se matar, que tivera uma overdose de drogas ou que sofrera complicações devido a um aborto. Quando foi divulgado que a cantora tinha se submetido a uma operação para a remoção de varizes, restou a dúvida: o que provocara o coma? Segundo a equipe médica, a artista fora acometida por um choque anafilático causado pela anestesia, algo classificado "uma fatalidade".

A partir de então, romarias de admiradores e pessoas próximas se revezaram na porta da clínica. Beth Carvalho, Alcione, Grande Othelo, Baby Consuelo, Paulinho da Viola e Elza Soares estiveram entre os artistas que foram atrás de informações. Sem exceção, saíram todos de lá com o rosto mais preocupado do que quando entraram. Um ou outro se juntava aos fãs que, durante dias e dias, rezavam do lado de fora. Era tanta emoção à espera de um milagre que houve até desmaios. Mas as orações, assim como todos os cuidados médicos, não surtiram o efeito desejado. Depois de quase quatro semanas em estado vegetativo, no dia 2 de abril de 1983, há 40 anos, Clara Nunes se foi.

Caixão com o corpo de Clara Nunes levado da Portela ao cemitério, em 1983 — Foto: Jorge Marinho/Agência O GLOBO
Caixão com o corpo de Clara Nunes levado da Portela ao cemitério, em 1983 — Foto: Jorge Marinho/Agência O GLOBO

Mineira nascida em Paraopeba, órfã de pai e mãe desde os 6 anos, Clara foi criada por seus irmãos. Começou a cantar na igreja, mas teve que trabalhar na adolescência, como tecelã, para ajudar na renda da casa. Mais tarde, levada para programas de rádio em Belo Horizonte, destacou-se graças à força de sua voz. Mudou-se para o Rio em 1965, mergulhou no samba e nas religiões de matriz africana e gravou seus primeiros discos. Seu sucesso inicial foi "Você passa e eu acho graça", de Ataulfo de Paiva e Carlos Imperial. A partir daí, enfileirou êxitos como "Ê, baiana", "Conto de areia" e "O mar serenou", tornando-se uma diva dos sambistas e uma das cantoras de maior alcance comercial do Brasil.

O coma e a morte de Clara causaram comoção nacional. De acordo com a equipe médica, a cantora já havia sido operada em 1979, quando também recebera anestesia geral, e tudo transcorrera sem susto. Em 1982, todos os exames pré-operatórios tinham sido realizados, garantiu o cirurgião Antônio Vieira de Mello. "Ela pediu para tomar uma anestesia geral porque estava muito nervosa", relatou o médico numa entrevista coletiva, enquanto Clara ainda estava no coma. Segundo Mello, após a cirurgia, havia sido realizada uma investigação minuciosa para identificar a raiz do problema. "Só chegamos ao diagnóstico de choque anafilático pela exclusão de todos os outros possíveis motivos", disse ele.

Fãs de Clara Nunes rezam nas dependências da Clínica São Vicente, no Rio — Foto: Moacir Gomes/Agência O GLOBO
Fãs de Clara Nunes rezam nas dependências da Clínica São Vicente, no Rio — Foto: Moacir Gomes/Agência O GLOBO

Na primeira semana de internação, houve momentos de discreto otimismo. Mas o quadro da cantora se manteve crítico, até que, no dia 15 de março, Antônio de Mello lamentou dizendo que todas as esperanças haviam se esgotado. "Nos últimos três eletroencefalogramas, verificamos a ausência de atividade cerebral. Isto mostra que é inevitável a morte cerebral", afirmou ele, explicando que era uma questão de tempo até que o pior acontecesse. "Mas não vamos desligar os aparelhos. Vamos lutar até o último batimento cardíaco", ponderou o cirurgião. A previsão, porém, provocou consternação entre as cerca de 50 pessoas, a maioria delas mulheres, que faziam vigília na porta da clínica.

Clara Nunes morreu às 4h30 de sábado, 2 de abril de 1983, depois de 27 dias inconsciente. A notícia foi recebida pelos seus parentes na clínica, entre eles, o marido e compositor, Paulo César Pinheiro. O velório levou um enxame de pessoas à quadra da escola de samba Portela, que começou a receber fãs da artista por volta das 6h, assim que se soube da morte e do local do adeus. A cantora mineira, que gravara diversas composições de autores da Azul e Branco, recebeu honras de uma diva de Madureira. Milhares se acotovelaram para chegar ao caixão coberto com a bandeira da escola. Em uma cena comovente, o cantor João Nogueira beijou a testa de Clara e colocou uma rosa sobre o corpo.

Paulinho da Viola e Beth Carvalho na Clínica São Vicente, após internação de Clara Nunes — Foto: Moacyr Gomes/Agência O GLOBO
Paulinho da Viola e Beth Carvalho na Clínica São Vicente, após internação de Clara Nunes — Foto: Moacyr Gomes/Agência O GLOBO

O caminhão do Corpo de Bombeiros entrou na quadra para recolher o corpo abrindo um clarão no mar de gente espremida. O choro coletivo se tornou mais intenso, e pétalas foram atiradas sobre a urna. Do lado de fora, o povo cantava a "Valsa do adeus" agitando lenços brancos no ar, e o comércio fechou as portas em sinal de respeito. No longo caminho até o Cemitério São João Batista, em Botafogo, na Zona Sul do Rio, uma multidão que acompanhava o cortejo cantou "Conto de areia" e "Deusa dos Orixás", entre outras canções eternizadas pela voz de Clara Nunes. Como nos versos de "Súplica", de João Nogueira e Paulo César Pinheiro, "O corpo a morte leva/ O nome a obra imortaliza".

Ninguém ousou estimar a quantidade de gente que havia no sepultamento da cantora. Houve choro, confusão e muitos desmaios, principalmente quando se ouviu, ao longe, a aproximação do surdo que seguia o cortejo fúnebre desde Madureira. Algumas pessoas treparam em árvores para ver. Diversos amigos famosos, como Chico Buarque, Paulinho da Viola, Miúcha e Monarco não conseguiram nem se aproximar. Dona Zica, matriarca da Mangueira e viúva de Cartola, uma das primeiras a chegar no cemitério, não arredou o pé do lado da sepultura até ver o caixão de sua amiga desaparecer, na gaveta 9 da quadra 43 do São João Batista. A Prefeitura do Rio decretou três dias de luto na cidade.

Poucas horas depois da morte da artista, um grupo de compositores da escola de samba Imperatriz Leopoldinense, sentados em um bar, após algumas garrafas de cerveja, compôs os versos de "Clara clareia", sob as vistas e os ouvidos atentos do maestro Paulo Moura. Ao longo de todo o dia seguinte, centenas de fãs foram ao túmulo da cantora para deixar flores. No carnaval de 1984, a Portela fez uma homenagem a Clara com o enredo "Conto de areia" e foi campeã, juntamente com a Mangueira. Em 1986, a Velha Guarda da Portela gravou "Flor do interior", escrita em tributo à artista. Ao longo dos anos, foram lançados diversos discos resgatando a memória da querida "sabiá mineira".

Passarela da estação de Madureira apinhada de gente para ver cortejo fúnebre de Clara Nunes — Foto: Otávio Magalhães/Agência O GLOBO
Passarela da estação de Madureira apinhada de gente para ver cortejo fúnebre de Clara Nunes — Foto: Otávio Magalhães/Agência O GLOBO
Velório de Clara Nunes na quadra da Portela, em 1983 — Foto: Otávio Magalhães/Agência O GLOBO
Velório de Clara Nunes na quadra da Portela, em 1983 — Foto: Otávio Magalhães/Agência O GLOBO
Mais recente Próxima 31 de março de 1964: Como um senador tirou João Goulart no grito e 'oficializou' golpe militar