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Por Rafael Lopes

Comentarista de automobilismo do Grupo Globo

Voando Baixo — Rio de Janeiro

Peter Fox/Getty Images

Quem trabalha com automobilismo sabe que a Fórmula 1 é um meio extremamente político. Muitas vezes, para quem está envolvido em altas esferas dos negócios da categoria, os fins justificam os meios. Normalmente, quem tem bons contatos não fica muito tempo afastado. Mesmo que esteja envolvido no maior escândalo da história da F1. É o caso do italiano Flavio Briatore, que chegou a ser banido do esporte em 2009, teve a pena revista em 2010 e ficou suspenso até 2013. O empresário, ex-chefe de Benetton e Renault, foi o principal artífice do Singapuragate, foi considerado persona non grata pela Renault, mas está cotado para ser conselheiro especial na Alpine, equipe que pertence à montadora francesa, segundo os jornais europeus "L'Equipe" e "Corriere della Serra".

Luca de Meo (no centro), CEO da Renault, entra no paddock do GP da Arábia Saudita de 2024 — Foto: Clive Rose/Getty Images

A notícia aumenta ainda mais a sensação de impunidade na Fórmula 1, o que não é nenhuma surpresa para quem acompanha de perto a categoria e não é ingênuo. Com isso, o escândalo do Singapuragate, na prática, acabou causando danos reais apenas à maior vítima dele: o brasileiro Felipe Massa. O então piloto da Ferrari na temporada de 2008 perdeu pontos importantes no GP de Singapura, palco da manipulação de resultados, que poderiam ter mudado a realidade da briga pelo título contra o inglês Lewis Hamilton, da McLaren, naquele ano.

No ano passado, o chefe comercial da F1 naquela época, o inglês Bernie Ecclestone, revelou em uma entrevista ao site "F1 Insider" que tanto ele quanto Max Mosley, então presidente da Federação Internacional de Automobilismo (FIA), souberam do escândalo ainda em 2008, mas deliberadamente não tomaram atitudes para "não ferir a credibilidade da categoria". Foi quando Felipe Massa resolveu empreender uma luta judicial para tentar ser reconhecido como campeão mundial daquele ano. O processo segue ativo na Superior Corte de Justiça de Londres.

Nelsinho Piquet sai do carro após o acidente no GP de Singapura de 2008 — Foto: Reprodução

Outro prejudicado, claro, mas em outro nível, foi Nelsinho Piquet, protagonista da manipulação, mas que, quase um ano depois, em 2009, entregou todo o esquema à FIA por meio de uma colaboração premiada. Na ocasião, o brasileiro bateu de propósito no muro do Circuito de Rua de Marina Bay em um ponto que provocaria a entrada do safety car. Isso beneficiaria a estratégia de Fernando Alonso, que já havia feito seu pit stop naquele momento. Foi exatamente o que aconteceu: o espanhol venceu a corrida. Com a ajuda do pai Nelson Piquet, Nelsinho entregou todo o esquema e provocou as punições naquele momento a Briatore e Pat Symonds, então Diretor Executivo de Engenharia da Renault, mas nada foi feito para corrigir o resultado manipulado da corrida.

Como consequência da colaboração premiada, Nelsinho não foi punido. Entretanto, nunca mais conseguiu chegar perto de uma vaga de titular na F1. Teve de reconstruir a carreira nos Estados Unidos, foi o primeiro campeão da Fórmula E em 2015 e hoje corre na Stock Car no Brasil. Fernando Alonso, o beneficiário do incidente, foi inocentado na investigação. Segundo a FIA, mesmo sendo piloto da Renault e tendo uma estratégia incomum para aquela corrida de Singapura, o espanhol nunca ficou sabendo da armação arquitetada por Flavio Briatore e Pat Symonds.

Flavio Briatore e Pat Symonds trabalharam juntos por muitos anos na Benetton e na Renault — Foto: Paul Gilham/Getty Images

O retorno dos cabeças do escândalo à F1

Flavio Briatore é empresário de Fernando Alonso desde o início da carreira do espanhol na F1 — Foto: Arnold Jerocki/Formula Motorsport Limited via Getty Images

Após 2013, Flavio Briatore e Pat Symonds ficaram liberados para voltar à Fórmula 1 com o fim da suspensão imposta pela FIA. Se bem que, na realidade, Briatore nunca se afastou completamente da maior categoria do automobilismo. O italiano seguiu como empresário de pilotos como o próprio Fernando Alonso e o australiano Mark Webber, mesmo não aparecendo diretamente. Já Symonds voltou à Fórmula 1 pela Williams em 2014 - e chegou a trabalhar diretamente com Felipe Massa. O engenheiro inglês deixou a tradicional equipe inglesa em 2016, para curtir a aposentadoria. Por pouco tempo: em março de 2017, tornou-se chefe técnico da F1, cargo que ocupou até o início da temporada 2024.

Formalmente, Flavio Briatore voltou à Fórmula 1 no começo da temporada de 2022. Contratado por Stefano Domenicali, o dirigente italiano se tornou embaixador oficial da categoria, agora comandada pela empresa americana Liberty Media. A ideia era ajudar na busca de novos parceiros comerciais. Ou seja: o principal artífice do maior escândalo da F1 se tornou a cara do esporte nas negociações comerciais. A meu ver, um total contrassenso, que só ajuda a confirmar a sensação de impunidade para quem participou ativamente do Singapuragate.

Flavio Briatore ao lado de Stefano Domenicali, CEO da Fórmula 1, no paddock do GP de Mônaco de 2022 — Foto: Clive Rose/F1 via Getty Images

Briatore e Symonds: ligações perigosas

Stefano Domenicali e Flavio Briatore eram chefes de Ferrari e Renault, respectivamente, em 2009 — Foto: Mark Thompson/Getty Images

A grande questão é que Flavio Briatore tem ligações muito estreitas com vários personagens que estão em cargos importantes na atualidade na Fórmula 1 ou tinham algum poder na época do escândalo. Atualmente CEO da Fórmula 1, Stefano Domenicali era chefe da Ferrari em 2008. Mesmo prejudicado esportivamente pelas ações de Briatore, o principal dirigente da categoria atualmente sempre manteve laços de amizade com ele. Inclusive o indicou para o cargo de embaixador. E outra coincidência, seu escritório na FOM fica ao lado do pertencente ao ex-chefe da Renault.

As ligações com Bernie Ecclestone são ainda mais profundas. Eles foram sócios do clube inglês Queens Park Rangers entre dezembro de 2007 e agosto de 2011, e venderam suas ações para o empresário malaio Tony Fernandes, na época dono da Caterham na Fórmula 1. Fabiana Ecclestone, hoje vice-presidente da FIA para a América do Sul e esposa de Bernie, publicou em suas mídias sociais várias fotos de encontros entre as duas famílias ao longo dos últimos anos.

Flavio Briatore e Bernie Ecclestone conversam durante um jogo do Queens Park Rangers em 2008 — Foto: Daniel Hambury/PA Images via Getty Images

Não acabou: Briatore organizou um jantar surpresa para Ecclestone em homenagem aos 40 anos dele na Fórmula 1, que teve como convidados Luca di Montezemolo (então CEO da Ferrari), Piero Ferrari (filho de Enzo Ferrari), Max Mosley (ex-presidente da FIA) e Domenicali, entre outros. Fotografados juntos em vários eventos da F1 nos últimos anos, o dirigente italiano também vendeu um iate para Bernie em 2022.

Flavio Briatore e Pat Symonds também têm ligações antigas. Os dois trabalharam juntos por muitos anos na Benetton e na Renault e recorreram ao mesmo tempo das punições impostas pela FIA após o estouro do Singapuragate. Outra forte ligação de Briatore era com Charlie Whiting, antigo diretor de provas e delegado de segurança da entidade, que morreu em março de 2019, antes do GP da Austrália. O italiano ofereceu um cargo na Benetton ao inglês em 1997. Após as ameaças de Ron Dennis, então chefe da McLaren, de deixar a F1 se isso acontecesse, Whiting acabou promovido a Diretor Técnico da FIA.

Pat Symonds apresentou evento oficial da Fórmula 1 no GP de Abu Dhabi de 2023 — Foto: Anthony Devlin/Getty Images

A absurda contratação pela Alpine

Atual chefe da Alpine, Bruno Famin conversa com Stefano Domenicali no paddock de Miami — Foto: Song Haiyuan/MB Media/Getty Images

O estouro da armação arquitetada por Flavio Briatore arranhou e muito a imagem da Renault mundialmente, não só no automobilismo. Tanto é que, na época, a montadora francesa fez questão de demitir o italiano assim que soube do tamanho do problema. Ainda assim, perdeu seu patrocinador principal na época, a seguradora holandesa ING. Como consequência, vendeu a equipe no fim de 2009 para o Grupo Genii, comandado à época por Gerard Lopez e Eric Lux, seguindo apenas como fornecedora de motores, inclusive da RBR, que ganhou quatro títulos com os propulsores franceses, entre 2010 e 2013 com Sebastian Vettel.

Por tudo isso, a ideia de Luca de Meo, CEO da Renault e responsável pelo futuro da Alpine, é um absurdo. Trazer de volta o responsável por quase jogar o nome da montadora francesa na lama é inacreditável. Parece até mentira. Mas não é. É só a confirmação de que bons relacionamentos movem montanhas na política da Fórmula 1. Faz até um escândalo do tamanho do Singapuragate ser esquecido, não é mesmo? O possível retorno de Flavio Briatore à Renault - agora Alpine - mostra que, na categoria, a corda sempre arrebenta no lado mais fraco.

Luca de Meo, CEO da Renault, anda no paddock do GP da Arábia Saudita de 2024 — Foto: Michael Potts/BSR Agency/Getty Images

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Perfil Rafael Lopes — Foto: Editoria de Arte/GloboEsporte.com

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