Ciência e Saúde

Por André Biernath - Da BBC News Brasil em Londres


BBC News fonte — Foto: Quadros de dependência de maconha afetam entre 7 e 20% dos usuários, apontam pesquisas
BBC News fonte — Foto: Quadros de dependência de maconha afetam entre 7 e 20% dos usuários, apontam pesquisas

A descriminalização do porte de maconha para consumo próprio pelo Supremo Tribunal Federal (STF) levantou uma série de dúvidas sobre os impactos da substância psicoativa na saúde.

Um dos pontos envolve o chamado transtorno por uso de cannabis, uma condição ainda pouco estudada pela ciência e praticamente desconhecida pelo grande público.

O quadro, que pode afetar até dois em cada dez usuários de maconha (entenda mais abaixo), está relacionado ao abuso do consumo da droga e gera perdas significativas no bem-estar e na qualidade de vida.

O psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, professor da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), avalia que existe uma grande dificuldade em diferenciar usuários de dependentes — ou aqueles indivíduos que não se encaixam nem na primeira e nem na segunda categoria.

"Mas o transtorno por uso de cannabis seria equivalente ao que se chama de dependência", explica ele.

Segundo o psiquiatra, essa condição pode se manifestar de diferentes maneiras. Para começar, ela está relacionada à quantidade e à frequência no consumo.

"O transtorno atrapalha as atividades habituais de trabalho e estudo, prejudica as relações interpessoais e gera desinteresse."

"Além disso, qualquer pensamento ou tentativa de reduzir o consumo gera sintomas intensos de ansiedade ou depressão", caracteriza Silveira, que estuda dependência há 40 anos.

Quantas pessoas têm o transtorno?

Silveira orientou uma das primeiras (e únicas) pesquisas a avaliar a saúde mental e a qualidade de vida de pessoas que fazem uso recreativo de cannabis no Brasil. O trabalho foi publicado em dezembro de 2021.

Por meio de um questionário online, que contou com a participação de 7.405 adultos, os especialistas descobriram que 17,1% dos participantes se classificavam como usuários ocasionais e 64,6% diziam fazer consumo frequente de maconha.

Já 7,7% dos respondentes se declararam como "usuários disfuncionais", algo que pode ser classificado como um transtorno no uso dessa substância.

"Esse número se aproxima muito ao que é visto em outros levantamentos. Nos Estados Unidos, cerca de 9% dos usuários de cannabis apresentam dependência", compara Silveira.

O inquérito brasileiro ainda observou que os tais usuários disfuncionais eram mais afetados em termos de bem-estar: eles tinham uma pior qualidade de vida, além de apresentarem com mais frequência doenças como depressão e ansiedade em comparação com aqueles que se entendiam como usuários ocasionais ou frequentes.

Uma outra investigação realizada pelo Instituto de Pesquisa em Saúde Kaiser Permanente, nos Estados Unidos, calculou a prevalência do transtorno no Estado de Washington, onde a maconha para uso recreativo está legalizada (e não apenas descriminalizada, como é o caso do Brasil após a decisão do STF).

Os autores entrevistaram 1.463 indivíduos que haviam feito uso de cannabis nos 30 dias anteriores.

Seguindo critérios estabelecidos nos manuais internacionais de psiquiatria, eles observaram que o transtorno no uso desta substância afetava 21,3% dos participantes, ou um quinto do total da amostra.

A taxa foi a mesma entre aqueles que consumiam maconha para uso recreativo, medicinal ou com ambas as justificativas.

Mas a gravidade do quadro variou de forma significativa entre essas três turmas.

Segundo a pesquisa, 1,3% dos usuários de cannabis com fins medicinais apresentavam o transtorno em níveis moderados ou severos.

Essa taxa subiu para 7,2% naqueles que faziam uso recreativo e para 7,5% no grupo misto (que mesclavam uso medicinal e recreativo).

BBC News fonte — Foto: Dependência de maconha afeta o bem-estar e a saúde mental, mostram estudos
BBC News fonte — Foto: Dependência de maconha afeta o bem-estar e a saúde mental, mostram estudos

O que aumenta o risco de dependência

Silveira explica que o transtorno no uso de cannabis acontece por uma somatória de diferentes fatores.

"Um sinal de alerta é o padrão de uso, quando o indivíduo altera a frequência ou a quantidade de consumo. Por exemplo, se ele passa a fumar todos os dias", pontua o psiquiatra.

"Claro, se a pessoa fuma meio cigarro ao dia, antes de dormir, isso não é algo que gera preocupação. Mas se ele já acorda com aquela necessidade incontrolável de acender um baseado, há um indício de problemas", pondera ele.

Outro comportamento que pode desembocar no transtorno envolve uma espécie de transição do uso recreacional para um consumo que envolve justificativas de bem-estar ou saúde — sem a devida avaliação de um profissional da área.

"É o caso da pessoa que está nervosa, triste, ansiosa e decide fumar maconha como uma forma de aplacar esses sintomas", exemplifica o médico.

O psiquiatra ainda destaca dois grupos onde o risco de danos relacionados ao consumo de cannabis é mais elevado.

"Primeiro, os jovens. É absolutamente contra-indicado fumar maconha antes dos 21 anos. Essa é a idade em que o amadurecimento do cérebro termina", cita ele.

Antes dessa idade, os compostos presentes na planta podem afetar o desenvolvimento dos neurônios e das demais células do sistema nervoso — o que gera repercussões negativas pelo resto da vida.

O pesquisador explica que a maioria dos problemas psíquicos relacionados à cannabis aparece em indivíduos que experimentaram essa substância psicoativa em idades precoces.

"O segundo grupo inclui pessoas que têm casos de esquizofrenia na família. Nesse contexto, o consumo de cannabis pode ser bastante prejudicial", complementa ele.

BBC News fonte — Foto: Aumento na quantidade e na frequência do consumo é um dos sinais de alerta para o transtorno, diz especialista
BBC News fonte — Foto: Aumento na quantidade e na frequência do consumo é um dos sinais de alerta para o transtorno, diz especialista

Os tratamentos disponíveis

Para os casos em que o transtorno de uso de cannabis é identificado, Silveira destaca dois possíveis caminhos de tratamento.

"O primeiro é a estratégia de redução progressiva, também conhecida como redução de danos", cita ele.

Essa alternativa envolve diminuir a quantidade consumida aos poucos. Também é possível modificar a rotina do indivíduo — alterando os horários em que ele estava acostumado a acender um baseado, por exemplo.

A Associação Americana de Psiquiatria aponta que sessões de psicoterapia podem ajudar nesse processo.

Em alguns casos, os médicos também prescrevem medicações com canabinoides, para diminuir aos poucos a necessidade da substância.

"O segundo caminho é interromper o uso de forma repentina e focar o tratamento nos problemas que vão surgir na sequência, como é o caso de ansiedade ou depressão", acrescenta o médico.

Por fim, Silveira avalia que a recente decisão do STF pode melhorar a forma como o transtorno de uso de cannabis é tratado no país.

"Estamos 30 anos atrasados nesse debate. Enquanto o mundo todo discute a legalização da maconha, nós ainda estamos falando de descriminalização", observa ele.

"O Brasil estava do lado de Irã, China, Indonésia e outros países totalitários ao criminalizar o porte de maconha para consumo próprio", opina o médico.

Silveira entende que um cenário de criminalização do porte de cannabis para uso pessoal — como o Brasil tinha até poucos dias atrás — gera muitas dificuldades do ponto de vista da saúde pública.

"A pessoa fica constrangida em falar abertamente que usa maconha, pelo medo de ser rotulada como criminosa", argumenta ele.

"A descriminalização facilita o acesso aos serviços de saúde. E eu, como médico, posso falar abertamente sobre uso seguro e formas de prevenção ou tratamento para esses casos de dependência", conclui ele.

Mais recente Próxima Dupla Big-Bang: com 220 mil seguidores, cientistas mirins decifram ‘mistérios’ em experimentos e levam ciência às escolas
Mais do Época NEGÓCIOS

Os últimos dois anos foram dedicados à preparação de cardápios, desenvolvimento de receitas e busca pelos melhores ingredientes possíveis para montar os pratos

Jogos Olímpicos de Paris terão restaurante 'sustentável' para alimentar 15 mil atletas

A experiência faz parte de uma iniciativa que visa estudar como o organoide pode funcionar enviando sinais cerebrais, atuando como um computador, e ser responsável por emitir as ordens de comando ao objeto

Cientistas criam robô controlado por células cerebrais humanas para estudar técnicas de reparação do cérebro

Mudança ocorre no mesmo dia em que a ‘big tech’ foi alertada pela União Europeia sobre o seu modelo de assinatura sem anúncios no Facebook e no Instagram

Meta altera aviso do uso de inteligência artificial nas redes sociais

Os primeiros tokens, lastreados em notas comerciais, foram distribuídos por meio de oferta privada para investidores profissionais e fundos

Kavak tokeniza R$ 30 milhões para financiar  carro usado no Brasil

Empresa está concluindo a montagem de seu primeiro protótipo de aeronaves elétricas de decolagem e pouso verticais (eVTOL) em escala real, que será seguido por campanha de testes

Eve capta US$ 94 milhões da Embraer, Nidec e outros investidores para fabricar ‘carro voador’

Empresas estão brigando para atrair talentos em meio à corrida pelo desenvolvimento das melhores ferramentas de inteligência artificial

Big techs pagam até R$ 10 milhões por ano para engenheiros especialistas em IA; confira valores

Executivo sucede Walter Schalka, que esteve no comando da Suzano por 11 anos e passa a compor o conselho de administração da produtora de celulose e papel

Ex-Rumo, Beto Abreu assume presidência da Suzano

As casas são construídas usando uma impressora gigante chamada Vulcan Construction System, que mede 13,9 metros de largura e 4,7 metros de altura

Casas feitas com impressoras 3D viram trend em bairro dos EUA

Startup lançou ferramenta que permite aos usuários fazerem chamadas de voz com personagens de IA um dia depois que a rival OpenAI anunciou o adiamento de seu "modo de voz" no ChatGPT

Character.AI lança novo recurso antes da criadora do ChatGPT

Plataforma de inteligência artificial permite a conversação imersiva com bots; saiba como funciona

Conheça o Janitor, IA para roleplaying game