Arte em prosa

Por Luiza Adas

Colunista da Casa Vogue, Luiza Adas é especialista em arte, pós-graduanda em Teoria e Crítica em História da Arte e fundadora do Museu do Agora


Por que repetimos aquilo que estamos cansadas de falar? — Foto: Reprodução/Guerrilla Girls
Por que repetimos aquilo que estamos cansadas de falar? — Foto: Reprodução/Guerrilla Girls

Na vasta jornada da história da arte, um eco persistente ressoa: a necessidade contínua de debater, refletir e reivindicar o papel das mulheres na arte. Como um incômodo mosquitinho nas noites de calor, me vejo como esse inseto zumbindo no ouvido das pessoas, insistentemente, sempre que abordo a questão das mulheres na arte. Mas, por que, afinal, por que continuamos a falar sobre esse assunto se estamos tão cansadas dele?

A resposta para essa pergunta reside nas mais profundas camadas sociais e históricas que permeiam nossa sociedade, e é claro que aqui não discorrerei sobre cada motivo que justifica esse fato. Mas o que gostaria de trazer neste texto são alguns dados, informações e iniciativas que me trazem a resposta do "porquê continuar".

Para mim, é impossível abordar esse assunto sem referenciar o incansável trabalho do coletivo Guerrilla Girls, um dos primeiros movimentos que conheci quando comecei a me aprofundar nessa temática. O coletivo Guerrilla Girls é reconhecido como um grupo de artistas anônimas que pesquisam e produzem obras com o objetivo de expor, refletir e combater a desigualdade de gênero e racial nas artes visuais. Adotando uma abordagem provocativa e satírica, elas também utilizam estatísticas impactantes para abordar essa sub-representação de mulheres em galerias, museus e instituições de arte.

Seus trabalhos mais geniais são aqueles em que expõem de forma explícita o que, para mim (e para grande parte das mulheres que trabalham nessa área), é óbvio. Mas, se é óbvio, por que lançar luz sobre isso? Ao expor o evidente de maneira agressiva e irreverente, o Guerrilla Girls desafia e convida o público a questionar as normas estabelecidas. Em suas imagens, por exemplo, o coletivo analisa diversos acervos ao redor do mundo, buscando entender o número de nus de mulheres versus a quantidade de mulheres artistas que têm suas obras nessas instituições.

O trabalho do coletivo que acabo de citar é apenas um exemplo de iniciativa desenvolvida para discutir essa temática. Ao longo das últimas décadas e séculos, tivemos artistas, grupos e pessoas que lideraram essa questão para provocar uma mudança institucionalizada do machismo nas artes. E a partir dessas ações, como os números relacionados ao mercado da arte têm reagido a essa pressão, de nós mulheres, para uma mudança estrutural no mercado?

Por que repetimos aquilo que estamos cansadas de falar? — Foto: Reprodução/Guerrilla Girls/MASP
Por que repetimos aquilo que estamos cansadas de falar? — Foto: Reprodução/Guerrilla Girls/MASP

Analisando os dados fornecidos pelo site artprice.com, página considerada líder mundial em informações do mercado de arte, percebemos que mesmo em um cenário onde as mulheres estão começando a ganhar mais destaque, ainda há um longo caminho a percorrer. Em 2022, vimos um dado alarmante: dentre as 10 obras mais caras vendidas no ano, nenhuma havia sido feita por mulheres. Dentre os nomes elencados nessa lista, vemos artistas tradicionalmente chamados de "históricos" como Andy Warhol, Paul Cezanne, Basquiat, Magritte e outros. Em outra lista, entretanto, dos 10 artistas contemporâneos mais bem-sucedidos em leilões, em 2023, podemos ver que apenas uma única artista aparece em destaque: Cecily Brown.

Contudo, na lista dos artistas ditos "ultra contemporâneos" (que nasceram depois de 1980), podemos ver um grande avanço: dentre os 10 primeiros artistas, 5 são mulheres! A ascensão de mulheres como Loie Hollowell, Jadé Fadojutimi e Avery Singer me leva a acreditar que, embora devagar, existe uma mudança de paradigma em andamento que atinge, principalmente, as novas gerações que estão por vir. É claro que o percurso ainda é longo, uma vez que nessa lista há apenas uma artista negra, por exemplo. Apesar disso, esses dados são uma luz no fim do túnel que nos indica que aquilo que estamos cansadas de repetir, ao menos começa a fazer efeito em uma nova geração de artistas. Essa possível mudança de comportamento do mercado da arte reflete não apenas uma demanda crescente por mais representatividade, mas também um despertar coletivo para a importância de reconhecer perspectivas femininas na arte.

Quando pensamos em "mulheres nas artes", é importante ter em mente que não estamos tratando apenas de artistas, mas também de curadoras, diretoras de museus, pesquisadoras, comunicadoras e outras profissionais do ramo. Ainda que na obra de uma mulher artista possa não estar contida a temática feminina ou feminista, ou que uma curadora não contemple esse assunto em seus recortes de pesquisa, cada pincelada de tinta, cada linha desenhada, palavra escrita, cada escultura esculpida tem em si uma história de resistência que ultrapassa gerações. Mesmo que de forma inconsciente, ser mulher e trabalhar com arte é trazer consigo anos e histórias de outras mulheres que percorreram caminhos árduos e que, com esforço, tornaram possível que estivéssemos onde estamos hoje.

Eu sei, por experiência própria, o quão cansativo é ter que repetir aquilo que estamos fatigadas de falar. Mas ao fazer isso, não estamos apenas revisitando injustiças e honrando histórias que merecem ser contadas, mas também afirmando um lugar nosso no presente e moldando um futuro em que possamos minimizar os resquícios de nossa história desigual.

Termino este texto apresentando outra referência que se encaixa bem nessa discussão. Essa instalação, que em português diz "“Enquanto as gerações mudarem, mas as nossas lutas permanecerem as mesmas, eu serei feminista”, faz parte do projeto da artista austriaca Katharina Cibulka, intitulado “Solange”. O trabalho se propõe a transformar canteiros de obras públicas em instalações que nos fazem refletir sobre a luta feminista ao redor do mundo. Assim como bem refletido por uma talentosa amiga das artes, Lílian Farrish, quando publiquei essa obra no meu Instagram, "não adianta transformar as aparências se não transformarmos as estruturas." E eu complemento: enquanto esse incômodo existir, mesmo cansada, eu seguirei falando.

Por que repetimos aquilo que estamos cansadas de falar? — Foto: Reprodução/Instagram/@solange_theproject
Por que repetimos aquilo que estamos cansadas de falar? — Foto: Reprodução/Instagram/@solange_theproject
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