Arquitetura

Por Giuliana Capello


Casa em Ubatuba, no litoral de São Paulo, assinada pelo escritório 24 7 Arquitetura — Foto: Adriano Pacelli
Casa em Ubatuba, no litoral de São Paulo, assinada pelo escritório 24 7 Arquitetura — Foto: Adriano Pacelli

Ainda sob o impacto da tragédia anunciada que aconteceu no litoral Norte paulista durante o Carnaval, é preciso correr contra o tempo e as décadas de equívocos na ocupação desses territórios Brasil afora. Todo esforço é necessário para evitar que novos eventos climáticos extremos levem mais vidas, causem estragos importantes na infraestrutura urbana e acirrem o óbvio: a falta de acesso à terra, a desigualdade social e a pressão imobiliária que têm levado muitas cidades a um estado alarmante de vulnerabilidades.

Apesar do volume histórico de chuvas na região, é preciso – finalmente – considerar o que os cientistas vêm alertando há décadas: com o aquecimento das temperaturas e a desregulação do clima em todo o planeta, episódios assim tendem a se tornar cada vez mais intensos e frequentes. Diante disso, pode ser interessante olhar em volta e buscar inspiração em projetos com potencial para trazer luz aos debates. Mas será que temos bons exemplos de residenciais planejados e construídos de forma a serem mais amigáveis com a natureza, seguros para as pessoas e, ainda, capazes de resistir a um clima em agudas alterações?

Para a urbanista e especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo, é complicado falar em bons exemplos, infelizmente. O modelo de ocupação litorânea, em muitos lugares, gerou dois cenários bem diferentes. Os terrenos mais próximos à praia foram especulados ao longo de décadas pelo setor imobiliário e hoje acomodam as classes mais privilegiadas da sociedade. Quem não pode pagar por um pedaço de terra nesses locais, mas precisa estar perto para trabalhar nos serviços gerados pelo turismo, acaba buscando áreas mais baratas, onde os riscos sociais e ambientais são cada vez maiores.

“Temos assim uma parte das cidades que é ilegal, que normalmente abriga os mais vulneráveis e hoje já soma mais de dez milhões de brasileiros em áreas de risco, e uma parte que é regular, digamos, mas que também muitas vezes erra na ocupação ao chegar perto demais do mar ou das margens dos rios”, comenta a urbanista e ex-presidente do Ibama. Embora bastante ocupados, estes locais não deveriam ser urbanizados, uma vez que são áreas protegidas pela legislação ambiental (nem sempre respeitada) e, segundo a especialista, são atualmente regiões que se tornam muito vulneráveis a eventos climáticos extremos.

“Ainda que a crise climática seja socialmente injusta por excelência, afetando primeiramente as populações mais pobres, periféricas, os negros e as mães solo, muitas cidades foram sendo construídas no Brasil tapando rios, por exemplo, sem olhar para a questão da drenagem. Quando chove, alaga porque a água vai buscar o curso dos rios que não estão mais lá”, diz Suely. De certa forma, todos somos atingidos pelas más escolhas das áreas a serem urbanizadas e, nesse cenário de mudança do clima, a conta - mesmo desigual - não sai de graça para ninguém.

Certificação de sustentabilidade é diferencial, sim

Casa assinada pela arquiteta Mariana Crego no condomínio The Golf Vilage, na Riviera de São Lourenço — Foto: Rafael Renzo
Casa assinada pela arquiteta Mariana Crego no condomínio The Golf Vilage, na Riviera de São Lourenço — Foto: Rafael Renzo

Na busca por exemplos de boa ocupação, uma pista pode vir dos empreendimentos que recebem selos de construção sustentável. Isso porque, para começo de conversa, essas certificações exigem o cumprimento integral das legislações que incidem na área a ser construída – incluindo as ambientais, é claro. Parece pouco, mas quando o “normal” é construir de forma desordenada, quem segue a lei já merece certo destaque.

Não que isso baste. Como o desafio atual do clima exige esforços mais contundentes, não há dúvida de que é preciso ir além. E aí os selos de green building também podem dar uma mãozinha ao incentivar justamente esses passos extras. É que quanto mais o empreendimento avança sobre o mínimo determinado em leis e normas de desempenho, mais ele pontua e sobe no ranking das certificações.

Na Riviera de São Lourenço, por exemplo, bairro planejado em Bertioga, litoral paulista, o condomínio de luxo The Golf Vilage foi projetado para ser um exemplo de sustentabilidade. O conjunto de 16 casas da incorporadora e construtora Crego Painceira, com entrega prevista até dezembro, é o primeiro empreendimento horizontal residencial no litoral brasileiro a receber a dupla certificação AQUA-HQE nível Excelente. O selo francês audita o projeto e a construção do condomínio em mais de 200 itens relacionados a performance arquitetônica, impacto ambiental, conforto, saúde e bem-estar, entre outros.

“Tudo foi pensado para ter o mínimo impacto possível, desde a escolha do local até os materiais, já que a extração deles, quando feita incorretamente, também gera prejuízos ambientais em seus territórios”, explica a arquiteta Mariana Crego, que assina o projeto.

Casa assinada pela arquiteta Mariana Crego no condomínio The Golf Vilagge, na Riviera de São Lourenço — Foto: Rafael Renzo
Casa assinada pela arquiteta Mariana Crego no condomínio The Golf Vilagge, na Riviera de São Lourenço — Foto: Rafael Renzo

Durante as últimas chuvas que assolaram o litoral Norte paulista, Mariana relatou que a obra do condomínio quase não foi afetada. “Em parte isso se deve ao fato de o bairro todo ser mais bem planejado, com boa infraestrutura e área permeável. Mas com certeza o projeto de drenagem do condomínio, que ainda nem está totalmente concluído, fez toda a diferença”, avalia a arquiteta.

Segundo ela, por lei, o condomínio deveria manter entre 20% e 30% de área permeável, mas fez mais, chegando a praticamente 50%, graças ao paisagismo, aos pisos drenantes e a todo o sistema de drenagem que foi superdimensionado – prevendo chuvas cada vez mais intensas e concentradas. Isso inclui grandes caixas de retardo, espelhos d´água conectados a cisternas e telhados com captação de água de chuva. “Esse conjunto de soluções pensadas para a drenagem das águas permitiu reduzir 51% da água que o empreendimento jogaria para a rua drenar”, completa.

Casa assinada pela arquiteta Mariana Crego no condomínio The Golf Vilage, na Riviera de São Lourenço — Foto: Rafael Renzo
Casa assinada pela arquiteta Mariana Crego no condomínio The Golf Vilage, na Riviera de São Lourenço — Foto: Rafael Renzo

Fazer melhor nem sempre é simples. Mariana conta que é preciso mexer com a parte técnica, convencer a equipe de que vale a pena investir mais material e recursos para garantir um sistema de drenagem mais robusto. E há ainda o gosto do cliente, que nem sempre está alinhado com essas questões. “Mas é algo que já é muito necessário e relevante. Precisamos fortalecer essas diretrizes que oferecem melhor performance em relação às catástrofes ambientais. Se todo empreendimento tiver essa preocupação, o resultado será um conjunto urbanístico mais resiliente”, resume.

Como resolver o desafio das moradias em áreas de risco?

Projeto de construção de moradia transitória idealizado pela TETO — Foto: Divulgação/TETO
Projeto de construção de moradia transitória idealizado pela TETO — Foto: Divulgação/TETO

Na escala urbana, o desenho equivocado das cidades tem gerado dados alarmantes. O arquiteto e urbanista Ygor Santos Melo, especialista em habitação de interesse social e política urbana e diretor social nacional da ONG TETO Brasil, conta que, de 2019 para cá, mais de um terço dos municípios brasileiros decretou situação de calamidade pública por desastres ambientais.

Na grande maioria dos casos, as populações mais atingidas são as mais pobres. Nesse outro extremo da pirâmide social, falar em certificação de sustentabilidade está fora de cogitação. A realidade é outra: as áreas ocupadas por moradias precárias não têm infraestrutura básica, como água, luz, saneamento e drenagem. A soma dessas vulnerabilidades gera um cenário de tragédia anunciada que, ainda assim, não tem sido o bastante para mobilizar o poder público em ações efetivas de realocação dessas populações para áreas mais seguras e, ao mesmo tempo, próximas do trabalho das famílias e de equipamentos de saúde e educação.

“A grande questão é que essas áreas de risco já estão ocupadas e precisam de soluções para ontem. Já sabemos que as mortes em periferias são 1500% maiores onde não há infraestrutura e isso tem relação direta com as áreas de risco, basta vermos as sucessivas tragédias no Brasil”, diz Ygor.

O problema, para ele, pede ações coordenadas complexas e tomadas de decisões que, às vezes, pressionam setores da sociedade desinteressados em ser parte de uma transformação. “Algumas respostas passariam, por exemplo, por sobretaxar casas de veraneio que não cumprem uma função social, já que para construir casas de interesse social é necessária uma arrecadação alta”, afirma.

Outra opção, segundo o urbanista, é criar mecanismos para desapropriar imóveis sem função social para habitação popular – já que os terrenos no litoral, em última instância, são da União - e para incentivar empreendimentos com cota popular, que permitam a saída das famílias de áreas de risco, mantendo-as perto de seus trabalhos e redes de apoio.

“É toda uma lógica que precisa ser mudada. Nós da TETO não trabalhamos em áreas de risco geológico ou ambiental iminente, porque entendemos que aquelas pessoas não deveriam estar ali. Focamos nosso trabalho em assentamentos que precisam de melhorias nas casas, levando soluções técnicas, mutirões, capacitações e, dessa forma, somos uma pequena parte no mosaico de estruturas sociais e forças políticas que precisam se engajar nessa história”, explica.

Pensando nos efeitos das mudanças climáticas, a TETO vai construir pela primeira vez no Brasil o projeto Moradias Sementes, que são casas em wood frame (algumas com estrutura metálica) para substituir barracos precários, mas com durabilidade de até 25 anos. A ideia é que funcionem como moradia emergencial, mas com uma estrutura mais robusta e digna para as famílias.

O projeto é modular e foi concebido para que cada casa de 27 m² ou mais, dependendo do tamanho da família, possa ser construída em apenas dez dias. Em março a primeira moradia semente será erguida na região metropolitana de Curitiba, para um casal com oito filhos. Nos próximos seis meses, a ONG espera construir outras 20 casas na favela Guaranys, a mais vulnerável da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. “A meta é conseguir escalar o projeto e poder levantar de 300 a 500 unidades até 2024”, diz ele.

Adaptação das cidades é palavra de ordem

O momento é de união de esforços e maior entendimento sobre o papel dos arquitetos e urbanistas nesse redesenho das cidades. “Muitos desses profissionais têm uma formação defasada da realidade atual, não têm uma visão para habitação popular, não tiveram disciplinas sobre favelas ou sobre como fazer uma obra em um cenário de extrema precariedade”, lamenta Santos Melo.

Mas trabalhar com o que se tem, ou seja, adaptar as cidades é fundamental para enfrentarmos as mudanças do clima. Para isso, o geógrafo e mestre em planejamento territorial e urbano, Henrique Evers, gerente de desenvolvimento urbano do WRI Brasil, aposta no que chama de mudança de paradigma sobre como pensar a natureza nas cidades. “Precisamos deixar de ver a natureza como algo a ser vencido pela ação humana e passar a incorporá-la como uma infraestrutura que presta serviços para as cidades, de amortecimento de eventos trágicos, principalmente”, defende Evers.

Esse é o conceito das soluções baseadas na natureza, ou SBN, em que rios são renaturalizados para servirem como sistemas naturais de drenagem das cidades; faixas mais próximas do mar ou encostas íngremes são mantidas intactas ou regeneradas para funcionarem como barreiras contra desastres climáticos. São estruturas verdes multifuncionais que geram inúmeros benefícios para as cidades, o meio ambiente e as pessoas.

“Temos exemplos interessantes nesse sentido com os parques lineares, que são sistemas de contenção de águas”, lembra o especialista. Em Curitiba, a rede de parques municipais tem também essa função, assim como o novo Parque da Orla Piratininga, em Niterói, que recuperou a orla da lagoa com jardins filtrantes. É tempo, por fim, de entender a natureza não como vilã, mas como agente essencial na adaptação das cidades para um presente-futuro que já bate à nossa porta.

Mais recente Próxima Proporção áurea: tudo o que você precisa saber sobre a teoria presente na arquitetura
Mais do Casa Vogue

Casal aproveita a Serra da Mantiqueira, em São Paulo

Cesar Tralli e Ticiane Pinheiro encantam com fim de semana em Campos do Jordão; veja

Imóvel construído em 1935 foi uma das primeiras construções modernas no país

Famosa casa da história da arquitetura à venda por R$ 9 milhões nos Estados Unidos

Localizada no Arizona, nos Estados Unidos, cooperativa promove estilo de vida "fora da rede"

Comunidade remota autossustentável procura moradores com terrenos à venda por R$ 139 mil

Ator e humorista está em viagem pela Europa

Bento Ribeiro se assusta ao descobrir ambiente secreto e bizarro em Airbnb na Itália; veja

Ideais para espaços pequenos e integrados, um guarda-roupa quase invisível ajuda ampliar o ambiente

Guarda-roupas (quase) invisíveis: 8 ideias discretas para quartos pequenos

Estes edifícios imponentes guardam histórias intrigantes e se destacam em meio a paisagem urbana de suas cidades

Imponência assustadora: 7 arranha-céus abandonados ao redor do mundo

“Tudo é a cara da minha mãe: é simples e aconchegante”, conta a atriz sobre o projeto assinado por Gustavo Otsuka e Juliana Mancini, à frente do Noma Estúdio

Ana Hikari presenteia mãe com reforma de apartamento dos sonhos; veja antes e depois

Fundado por Victor Xavier e Søren Hallberg, o estúdio Assimply mescla referências brasileiras e dinamarquesas e está entre os expositores da 12ª edição da MADE

Designers transformam materiais descartados em peças com DNA brasileiro e nórdico

O pedido da empresária Virgínia Weinberg aos arquitetos Sig Bergamin e Murilo Lomas foi de um projeto com a cara do país para a morada que receberia a família durante as férias. Os planos, no entanto, mudaram, e o imóvel na torre projetada por Jean Nouvel, em São Paulo, se transformou em residência principal

Apartamento de 600 m² na Cidade Matarazzo exala energia brasileira por todo canto

A 3ª edição do evento, que acontece entre 29 de junho e 7 de julho, apresenta lançamentos e debates para os amantes do urbanismo, arquitetura e design

A Feira do Livro, no Pacaembu: os melhores lançamentos de urbanismo, arquitetura e design