Cidades

Por Gustavo Frank


Na região central de Sâo Paulo, a arquitetura conta história – e grande parte delas é narrada pela comunidade LGBTQIAP+ ao longo dos últimos anos — Foto: Getty Images e Pexels | Colagem Jeff Leal e Thais Araújo Figueiredo
Na região central de Sâo Paulo, a arquitetura conta história – e grande parte delas é narrada pela comunidade LGBTQIAP+ ao longo dos últimos anos — Foto: Getty Images e Pexels | Colagem Jeff Leal e Thais Araújo Figueiredo

Uma caminhada habitual na cidade de São Paulo pode tornar-se um resgate de memórias. Não é exatamente novidade que os prédios – principalmente os preservados e tombados no município – são relíquias arquitetônicas repletas de histórias. O que pode passar despercebido é que, mais do que edificações arqueadas ou janelas de proporções pouco vistas em construções atuais, diversos desses lugares fazem parte da construção de direitos e da sociabilidade da comunidade LGBTQIAP+ ao longo dos últimos anos. Muitos deles até hoje.

Para contar pelo menos parte dessa história é preciso voltar os olhos ao centro da capital paulistana. A região, cheia de bares e boates, há muito tempo é o lugar onde a comunidade se reúne para diversos fins, sejam eles de sociabilidade ou atividade militante. “A área sempre foi ocupada por essa população porque era uma região guetificada – um gueto formado em um local em que a família tradicional brasileira não queria mais viver ou frequentar”, explica Renan Quinalha, professor de Direito e pesquisador sobre a história do movimento LGBTQIAP+ no Brasil e no mundo, à Casa Vogue.

“Por consequência, tornou-se um espaço em que a comunidade podia usufruir com bares e lugares de pegação. Todas as possibilidades reunidas”, complementa. Ainda hoje é possível encontrar alguns desses lugares: ao visitar a redondeza próxima ao famoso cruzamento da Avenida São João com a Ipiranga, o Cine Marabá continua lá – apesar de hoje ser sede de uma rede de cinema tradicional.

“Esses cinemas, incluindo o Cine Marabá, eram pontos de referência para o público gay”, recorda o militante histórico e escritor João Silvério Trevisan à Casa Vogue. “Era uma sala única onde rolava pegação. Na parte de cima, eles abriam e faziam uma festa”.

Cine Marabá: local era frequentado pelo público gay para pegação — Foto: Daniel Ducci | Colagem Jeff Leal e Thais Araújo Figueiredo
Cine Marabá: local era frequentado pelo público gay para pegação — Foto: Daniel Ducci | Colagem Jeff Leal e Thais Araújo Figueiredo

Entre outros “cinemões” citados por Trevisan, o Cine Marrocos e o da Galeria Metrópole compõem a lista – além dos tradicionais banheirões, que até hoje promovem encontros sexuais entre homens gays em terminais de ônibus e estações de metrô. O roteiro à época incluía ainda o Cine Arouche, frequentado pelo mesmo público e para os mesmos fins. “Era um point clássico”, reafirma o jornalista e autor de Devassos no Paraíso, livro mais completo sobre a história da homossexualidade brasileira.

A região do Arouche, além dos cinemas, era ocupada também para fins de socialização no geral. "Junto com a Vieira de Carvalho [avenida localizada na República e que dá acesso ao largo], o Largo do Arouche sempre reuniu muito esse público. É um lugar simbólico", acrescenta Quinalha. O advogado aponta que, não muito diferente do que acontece hoje, apesar de serem lugares que proviam liberdade para encontros, a região central já era marcada por muita violência contra a população LGBTQIAP+. “Não é que havia tanta liberdade. Na verdade, aconteciam muitas operações policiais também”, complementa. “Era um lugar de violência, por mais que tivessem possibilidades de vida que se abriam”.

Entre outros lugares emblemáticos na região central frequentados por pessoas LGBTQIA+, consta o Ferro's Bar, na Martinho Prado, no bairro da República. "Era um lugar exclusivamente lésbico", pontua Trevisan. O bar foi a sede do Levante do Ferro's Bar, no dia 19 de agosto de 1983, considerada a primeira manifestação protagonizada por lésbicas contra a discriminação – como aponta o Memorial da Resistência de São Paulo. Ainda de acordo com o memorial, o levante contou com a solidariedade do movimento feminista e de alguns parlamentares e, por sua importância, ficou conhecido como o Stonewall brasileiro. A data, desde 2008, é reconhecida pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo como o Dia do Orgulho Lésbico.

Espaços de luta e resistência

Theatro Municipal de São Paulo: escadaria do teatro foi sede do protesto contra as operações Limpeza e Rondão — Foto: Getty Images | Colagem: Jeff Leal e Thais Araújo Figueiredo
Theatro Municipal de São Paulo: escadaria do teatro foi sede do protesto contra as operações Limpeza e Rondão — Foto: Getty Images | Colagem: Jeff Leal e Thais Araújo Figueiredo

O Theatro Municipal de São Paulo, na Praça Ramos de Azevedo, na República, é um ponto a ser destacado no mapa da história do movimento LGBTQIA+ no Brasil. "É um espaço de memória interessante, de política da comunidade", diz Renan Quinalha. No dia 13 de julho de 1980, grupos homossexuais – assim como negros e feministas – se reuniram na escadaria do local para organizar um protesto contra as operações Limpeza e Rondão, que tinham o comando do delegado José Wilson Richetti e apoio do comandante do 2° Exército, general Milton Tavares, e do governador Paulo Maluf. Tais ações ficaram conhecidas pela truculência e pelo espancamento de travestis e transexuais na região central, além de outras áreas de São Paulo.

Não muito longe dali, a poucos metros de distância do Theatro, a Praça Franklin Roosevelt – atualmente ocupada por diversas tribos, mas conhecida majoritariamente por reunir skatistas, também tornou-se um marco geográfico para a conquista de alguns dos direitos que a comunidade LGBTQIAP+ tem hoje – ou pelo menos para a reivindicação deles. A praça foi sede para que os primeiros movimentos da Parada LGBTQIAP+ de São Paulo fossem criados – considerada hoje a maior do mundo. Em 1996, um ato com 500 pessoas foi realizado para reivindicar direitos às pessoas – à epóca – "GLS " e deu início à organização do evento, que teve sua primeira edição em 1997, na Avenida Paulista.

Praça Franklin Roosevelt: local na Consolação foi onde a Parada LGBTQIAP+ começou a dar os primeiros passos — Foto: Gustavo Frank | Colagem Jeff Leal e Thais Araújo Figueiredo
Praça Franklin Roosevelt: local na Consolação foi onde a Parada LGBTQIAP+ começou a dar os primeiros passos — Foto: Gustavo Frank | Colagem Jeff Leal e Thais Araújo Figueiredo

Em 2023, a Parada reuniu cerca de 3 milhões de pessoas na via que é símbolo da cidade de São Paulo. "É lindo e emocionante ver a Paulista cheia, acolhendo corpos de diferentes territórios", comenta Rodrigo Iacovini, coordenador da Escola da Cidadania do Instituto Pólis e assessor de relações internacionais da Plataforma Global pelo Direito à Cidade para a Casa Vogue. "Em dia de Parada, é interessante notar como somos diferentes e diversos – com muitos desejos, necessidades, vontades e reinvindicações diferentes", pontua. "É importantíssima a ocupação na Paulista durante a Parada, mas o importante seria conquistarmos espaço na cidade para reivindicar o ano todo, em diferentes lugares. O que não é uma realidade".

Avenida Paulista: símbolo de São Paulo, via é sede da maior Parada LGBTQIAP+ do mundo. Em 2023, reuniu 3 milhões de pessoas — Foto: Eduardo Dutra e Pexels | Colagem Jeff Leal e Thais Araújo Figueiredo
Avenida Paulista: símbolo de São Paulo, via é sede da maior Parada LGBTQIAP+ do mundo. Em 2023, reuniu 3 milhões de pessoas — Foto: Eduardo Dutra e Pexels | Colagem Jeff Leal e Thais Araújo Figueiredo

Sobre romper com a região central como a única a ser ocupada pela comunidade LGBTQIAP+, Quinalha complementa o argumento citando espaços fora dos chamados "guetos". "Acho que essa ideia de gueto vem perdendo força por isso, porque os espaços estão se tornando mais diversos e inclusivos", aponta o advogado. "Precisa ser revista e repensada nesse novo contexto atual", complementa o advogado.

No entanto, ainda há obstáculos mesmo nos espaços já ocupados por essa população. Rodrigo Iacovini cita que, neste ano, a Praça Franklin Roosevelt, ao fim da Parada LGBTQIAP+, sofreu intervenções para que a sociabilidade fosse cerceada. "A praça estava cercada por barreiras de metal e a Polícia Militar estava expulsando as pessoas que tomavam sol no gramado. Disseram que a preservação do lugar era mais importante, mas não é possível fechar uma praça, de acordo com a legislação brasileira – apenas em circustâncias excepcionalíssimas", diz. "E a Parada não é. É o momento em que a população reinvidica a partir de um espaço publico. Quando cercam, a mensagem é a seguinte: vocês só podem viver no espaço em que eu permito", acrescenta.

Se há abertura para que São Paulo se torne mais inclusiva para a comunidade LGBTQIA+, a resposta é positiva. Quanto às medidas aplicadas para que isso seja feito de forma efetiva, a execução ainda é nebulosa e incerta. "Acho que a capital tem avançado muito. Houve políticas importantes, como o Programa Transcidadania, e a cidade tem as primeiras leis anti-LGBTfobia. Há progressos relevantes, mas agora estamos sob uma gestão que nao tem conseguido fazer isso por conta do conservadorismo", finaliza Quinalha.

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