Cidades

Por Giuliana Capello


Fachadas ativas em edifícios estão longe de ser uma novidade na cidade. Em 1958, São Paulo ganhava a primeira etapa do icônico Conjunto Nacional, projetado pelo arquiteto David Libeskind, e, oito anos mais tarde, o Copan, com assinatura de Oscar Niemeyer. Os dois são exemplos emblemáticos que representam os inúmeros prédios residenciais, comerciais e de uso misto que, desde aquela época, abrem o térreo para a população. Não por acaso, já naquele período ambos se transformaram em paradigmas arquitetônicos, inspirando novos projetos, especialmente na região da Avenida Paulista e no Centro da capital.

Edifício Elevo, projetado pelo escritório Andrade Morettin Arquitetos Associados, reúne lojas, escritórios e apartamentos no bairro de Moema — Foto: Maíra Acayaba
Edifício Elevo, projetado pelo escritório Andrade Morettin Arquitetos Associados, reúne lojas, escritórios e apartamentos no bairro de Moema — Foto: Maíra Acayaba

Foi assim por algum tempo, até o setor imobiliário e os atores que desenhavam os rumos da metrópole começarem a apostar em outros caminhos.

“A partir da década de 1970, a legislação de uso e ocupação do solo de São Paulo passou a estimular muito mais os empreendimentos residenciais e prédios comerciais com recuos, muros, grades, que dão as costas para a calçada”, afirma o advogado Henrique Frota, coordenador executivo do Instituto Pólis.

Ao longo de décadas, a cidade foi se fechando em caixas de concreto sem diálogo com a rua e o espaço público. Mas em 2014, o novo Plano Diretor recuperou e passou a estimular o recurso urbanístico das fachadas ativas ao torná-las áreas não computáveis nos novos empreendimentos. “Entendeu-se, naquele momento, que elas são um mecanismo importante para valorizar o espaço público e promover convivência entre as pessoas. A premissa é que, na medida em que temos uma conjugação de empreendimentos com essa configuração de uso público, mudamos um pouco o desenho urbano e a maneira como as pessoas se veem no espaço público”, explica Frota.

Trocar muros e paredões cegos entre as construções e as calçadas por lojas, restaurantes e galerias de arte se alinha ainda à ideia da “Cidade de 15 minutos”, um dos grandes conceitos do urbanismo atual, criado pelo pensador franco-colombiano Carlos Moreno, da Universidade Paris 1 Panthéon Sorbonne. Em poucas palavras, significa planejar o tecido urbano de maneira que os habitantes encontrem o que precisam (escola, trabalho, serviços, compras, lazer) a uma distância de 15 minutos a pé ou de bicicleta. Densidade com qualidade.

Voltar-se para a calçada é bom negócio?

Traduzindo o que diz o Plano Diretor em vigor, ao inserir fachadas ativas em um empreendimento, a incorporadora “aumenta” a área que pode construir no terreno e lucra com a venda ou aluguel dos imóveis que ocupam o térreo do edifício. “É bom negócio porque a incorporadora ganha o benefício de mais área no empreendimento. Mas, por outro lado, se as lojas não forem ocupadas, isso vira um problema, ou seja, é preciso avaliar se o lugar tem potencial para um comércio ou serviço”, pondera Ariel Frankel, CEO da Vitacon. Desde antes do Plano Diretor, a empresa aposta em fachadas ativas por defender uma visão de cidade mais dinâmica, notando uma demanda crescente de pessoas que desejam acessar o que precisam com mais facilidade e qualidade de vida. “Temos hoje 80% dos nossos empreendimentos com fachadas ativas. São 40 edifícios, 50% já prontos, com 2/3 das lojas ocupadas, e o restante a ser entregue nos próximos 18 meses”, conta Frankel.

Perspectiva de futuro empreendimento com fachada ativa da Vitacon no bairro da Vila Mariana — Foto: Divulgação
Perspectiva de futuro empreendimento com fachada ativa da Vitacon no bairro da Vila Mariana — Foto: Divulgação

A gestão desses imóveis é ponto crucial. “Primeiro gostamos de alugar para controlar a atividade do inquilino, buscar algo de qualidade, que acrescente na vida no bairro, mas também estudamos a venda, com um contrato que veta usos descabidos para garantir o benefício a todos no longo prazo e evitar problemas com moradores e vizinhos”, diz o executivo.

Outra incorporadora que entrega empreendimentos voltados para a calçada é a Idea!Zarvos. “É preciso pensar no impacto dos empreendimentos na cidade, em como eles podem ser interessantes esteticamente, funcionais e amigáveis com a vizinhança”, destaca Otavio Zarvos, sócio fundador da empresa com forte atuação na região da Vila Madalena. “Nessa área da cidade, ainda há muitas casas e cada vez que a gente ia fazer um prédio precisava comprar até quinze casas. Algumas delas eram comércio ou poderiam vir a ser, então, a gente já deixava no térreo algumas lojas para, digamos, reparar essa perda no bairro, mesmo antes do Plano Diretor”, ressalta.

Agora, com a legislação incentivando a adoção das fachadas abertas para a população, Zarvos acredita que o instrumento tem muito a crescer.

“Ele traz vantagens porque promove o encontro das pessoas no bairro, diminui a necessidade do carro, é mais sustentável. Sem falar no prazer de descer do apartamento de manhã e buscar um pãozinho na padaria, por exemplo”.

Ao mesmo tempo, alguns pontos no texto do Plano Diretor, na visão de Zarvos, merecem aprimoramento. “O comércio de rua sofreu muito nos últimos anos com a explosão das lojas online. Então, acho que a legislação deveria ser mais realista e permitir que as pessoas possam parar o carro na frente da loja, até para promover de fato essas fachadas ativas, uma vez que hoje muitas estão fechadas, infelizmente”, pondera.

Projeto de Gustavo Utrabo, o empreendimento Terra Céu, da Idea!Zarvos, prevê 72 unidades de apartamentos menores, 32 unidades residenciais, duas unidades coberturas, três escritórios e três lojas que irão compor as fachadas ativas — Foto: Divulgação
Projeto de Gustavo Utrabo, o empreendimento Terra Céu, da Idea!Zarvos, prevê 72 unidades de apartamentos menores, 32 unidades residenciais, duas unidades coberturas, três escritórios e três lojas que irão compor as fachadas ativas — Foto: Divulgação

Outra crítica que ele faz é em relação aos empreendimentos situados em esquinas com frente para duas ou três ruas. “O Plano Diretor obriga a instalação de fachada ativa em todas as ruas, ou faz em todas ou não faz. Mas, às vezes, apenas uma delas tem movimento que justifica uma loja ali. Não faz nenhum sentido, é uma teoria que na prática não funciona muito bem”, avalia.

Mais segurança com os “olhos da rua”

“Parte da população não gosta da ideia de morar em um prédio com fachada ativa porque se acostumou à cultura da segurança, dos muros, do isolamento da rua, mas isso está mudando e as novas gerações aceitam mais porque não têm esse vício, querem viver o espaço público, interagir mais com a cidade e as pessoas”, considera Henrique Frota, do Instituto Pólis. Se, por um lado, ainda existe resistência de uma parcela dos moradores, diversos estudos mostram que a fachada ativa traz benefícios relacionados à segurança dos pedestres. Até hoje o livro de 1961 Morte e Vida das Grandes Cidades, da escritora, jornalista e ativista social norte-americana Jane Jacobs é referência quando o assunto é o desenho dos municípios.

“Naquela época ela já falava dos ‘olhos da rua’, ou seja, de você ter mais gente observando as pessoas circulando, de ter um café que fique aberto até mais tarde, algo que cria vida e gera mais segurança a quem passa por ali”, lembra Marcelo Falcão, sócio e cofundador da incorporadora Somauma, responsável pelo projeto de retrofit do Edifício Virgínia (em fase inicial), no Centro de São Paulo. Mesmo antes da reforma, o edifício já tem sido palco de inúmeros eventos com curadoria da marca, atraindo a população para a área da futura fachada ativa de cerca de 650 m² – algo que deve continuar acontecendo após a entrega do edifício.

Edifício Virgínia, no Centro de São Paulo, terá fachada ativa de cerca de 650 m² após retrofit da incorporadora Somauma — Foto: Filippo Bamberghi
Edifício Virgínia, no Centro de São Paulo, terá fachada ativa de cerca de 650 m² após retrofit da incorporadora Somauma — Foto: Filippo Bamberghi

Para ele, é importante refutar a visão de lucro no curto prazo. “Se o empreendedor pensar só no retorno financeiro rápido, ele vai alugar para quem pode pagar mais, uma farmácia, um minimercado tipo Oxxo ou até um banco, sem ver o potencial daquele espaço no médio e longo prazo”, diz. O mais interessante, segundo ele, é priorizar fachadas ativas que possam funcionar ao longo do dia e parte da noite, para gerar dinamismo na cidade, impulsionar a economia e oferecer mais segurança a todos.

Ativos para a cidade

No recém-entregue DSG Itaim, empreendimento de torre única e uso misto da incorporadora Tegra, há uma fachada ativa com uma loja de 578 m², entre térreo e mezanino – com entrada independente para as 251 unidades residenciais de 27 m² a 49 m² e os 37 conjuntos comerciais. Apostando na boa localização (a movimentada Rua Joaquim Floriano, no Itaim Bibi), a empresa resolveu ocupar o imóvel em frente à calçada para abrigar o projeto institucional Casa Tegra, iniciativa que faz parte do programa de Gentilezas Urbanas da marca, que já investiu R$ 3 milhões na implementação ou recuperação de praças, canteiros, parklets, muros e passarelas.

Vista aérea do DSG Itaim, empreendimento recém-entregue pela incorporadora Tegra — Foto: Divulgação
Vista aérea do DSG Itaim, empreendimento recém-entregue pela incorporadora Tegra — Foto: Divulgação

“O espaço é um exemplo bem-sucedido de fachada ativa, que funciona como uma praça coberta e um ambiente de descompressão e aconchego, onde os visitantes podem conversar em lounges com wi-fi, trabalhar em estações de coworking, apreciar peças de design e arte, além de aproveitar palestras e exposições, com programação gratuita”, conta João Mendes, diretor de incorporação e comercial da empresa.

O executivo afirma que a Tegra concluiu recentemente diversos empreendimentos que ofertam lojas no térreo. “Bem integrados ao espaço público, eles qualificam a experiência de morar e valorizam as comunidades”, aponta. Segundo ele, fachadas ativas, calçadas enriquecidas com paisagismo, áreas de circulação generosas e mobiliários urbanos são elementos que tornam mais humana, acolhedora e direta a relação entre os empreendimentos imobiliários e o espaço público.

De olho no bom funcionamento da fachada ativa, a JFL Living entregou recentemente o JFL 125, em Pinheiros, empreendimento de luxo de uso misto, assinado pelo escritório Aflalo Gasperini Arquitetos, com 27 pavimentos (sendo quatro corporativos e o restante com apartamentos de 63 m² a 431 m²) e sete lojas no térreo com fachadas voltadas para as calçadas, incluindo o novo escritório da JFL Living/Realty. “É muito importante cuidar do que colocamos na fachada ativa. Tem que fazer sentido para o lugar e estar muito afinado com o empreendimento, os moradores e o bairro”, defende Carolina Burg Terpins, sócia cofundadora e CEO da JFL Living.

Espaço público com obra do Estúdio Campana no térreo do empreendimento JFL 125, da JFL Living. Painel foi feito com 1.800 azulejos — Foto: Fernando Laszlo/Divulgação
Espaço público com obra do Estúdio Campana no térreo do empreendimento JFL 125, da JFL Living. Painel foi feito com 1.800 azulejos — Foto: Fernando Laszlo/Divulgação

Lá, ela conta, uma das lojas é um espaço público de arte contemporânea assinado pelo Estúdio Campana, que inclui um painel em cerâmica de 7,7 m de altura por 6 m de largura, desenvolvido a partir da adaptação de uma colagem original de Fernando Campana, situado na passagem lateral do edifício, com paisagismo e área de descompressão.

Fachada do edifício projetado pelo escritório Aflalo Gasperini Arquitetos, em Pinheiros — Foto: Guilherme Amorozo
Fachada do edifício projetado pelo escritório Aflalo Gasperini Arquitetos, em Pinheiros — Foto: Guilherme Amorozo

Outra empreitada, com inauguração prevista para julho, será o Casa Vogue Living Market, primeiro espaço-conceito de design, arte, decoração e lifestyle com o selo da revista, que contará com móveis, objetos, tecidos, obras de arte e roupas exclusivas assinadas por grandes nomes do design nacional e estrangeiro. “O grande negócio da fachada ativa é poder abrir isso tudo para a cidade e não somente para os moradores do prédio. É algo que enriquece muito o bairro, que conversa com as pessoas, cria gentilezas urbanas e deve estar cada vez mais presente em São Paulo, sem dúvida alguma”, sugere Terpins.

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