• Rafael Belém | Arte Thalita Munekata | Fotos Leon Rodrigues e Heloisa Ballarini/SECOM
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“Amanhã é meu aniversário!”, diz Sasha dos Santos Silva, entusiasmada com a chegada dos 21 anos. Nascida em Recife (PE), a jovem celebrou a data a quase três mil km de distância de suas origens. Em 2018, logo após completar a maioridade e o ensino médio, tomou uma das principais decisões de sua vida: sair da casa da família em busca de mais dignidade, respeito e oportunidades. O motivo? Sasha faz parte de um grupo que, em sua maioria, é privado de tais palavras no Brasil – o de pessoas transexuais.

Fora de casa: a vida de pessoas LGBTIs expulsas pela família e acolhidas nas ruas  (Foto: Leon Rodrigues/SECOM)

Fora de casa: a vida de pessoas LGBTIs expulsas pela família e acolhidas nas ruas (Foto: Leon Rodrigues/SECOM)

Apesar de “casa” soar como um sinônimo de segurança e acolhimento para muitos, grande parte da população LGBTI+ enfrenta desprezo, humilhação e violência justamente no local onde deveria encontrar conforto: o lar. Dentro da comunidade, não faltam histórias em que a intolerância e a rejeição familiar são vividas diariamente. “Até tinha uma relação mais amistosa com a minha família, mas eles não me chamam pelo nome social e nem respeitam a minha identidade. São conservadores”, relata.

Ao desembarcar em São Paulo, a pernambucana entrou para uma estatística quase que compulsória às vidas trans. Viu-se sem ter onde dormir, morou nas ruas e encontrou na prostituição o caminho possível para a sobrevivência. Ela está longe de ser a única. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% do grupo no Brasil é composto por profissionais do sexo.  “Fiquei dois meses nessa condição. Botei na cabeça que não queria mais essa vida e saí das ruas. Precisava almejar algo a mais”, diz a garota, que sonha com o diploma de psicologia.

Fora de casa: a vida de pessoas LGBTIs expulsas pela família e acolhidas nas ruas (Foto: Acervo Pessoal)

"O sonho da minha vida é reformar a casa da minha mãe", diz Sasha dos Santos Silva (Foto: Acervo Pessoal)

Desamparada, Sasha buscou ajuda em albergues públicos até ser encaminhada para a Casa Florescer, centro de acolhimento exclusivo para mulheres transexuais e travestis. Criado em 2016, o projeto tem como objetivo não apenas acolher pessoas T em situação de vulnerabilidade, mas também reverter o quadro com atendimento social e psicológico. 

Articulações com as redes de apoio garantem o acesso à alimentação, cursos de qualificação, regularização de documentos e acompanhamento médico capacitado para todas as beneficiadas. “Nosso trabalho é garantir a saúde física e mental dessas meninas. Muitas vieram de uma situação de violência, uso de drogas e outras questões que mexem com o físico e emocional. Só quem já viveu na rua sabe os traumas que carrega consigo”, afirma Alberto Silva, gerente da casa. “A ideia é fazer com que elas conquistem uma ascensão pessoal, profissional e social, acessando territórios até então desconhecidos por elas”.

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Apoiada pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social da Prefeitura de São Paulo (SMADS), a Casa Florescer é dividida em duas unidades na capital. Cada uma tem capacidade para acolher até 30 pessoas. Todas as vagas estão preenchidas e não há prazo de permanência máximo. O tempo de estadia é determinado de acordo com um plano individual de atendimento, que estabelece metas e demandas para cada uma das acolhidas. Em quatro anos de operação, 322 mulheres e travestis foram abrigadas. Dessas, 76 conseguiram autonomia plena ou estão restabelecendo-se com trabalho formal e casa alugada. “São quase 30%. Um número bastante relevante diante de todas as rupturas que existem e do cenário da vida delas”, celebra Silva.

Aimee Tego é um dos retratos da resistência trans. Colega de quarto de Sasha Silva, ela se viu obrigada a sair da casa da família em Toledo, Minas Gerais, para fugir da violência e, sobretudo, concretizar o sonho de expressar a sua identidade. “Meu principal objetivo aqui é realizar a transição de gênero. Já tenho mais de 40 anos, mas infelizmente não pude fazê-la antes”, diz. “É algo que aguardo minha vida toda”.

Fora de casa: a vida de pessoas LGBTIs expulsas pela família e acolhidas nas ruas (Foto: Acervo Pessoal)

Aimee Tego: "Somos pessoas que querem ser felizes, querem viver e lutar por uma vida melhor" (Foto: Acervo Pessoal)

Acolhida há quase um ano na casa, a jornalista conseguiu dar início ao processo após enfrentar uma longa fila de espera no Sistema Único de Saúde (SUS). Com altos e baixos, o procedimento envolve tratamentos hormonais e cirúrgicos, além de exigir acompanhamento psicológico contínuo. “É um período bem complexo e profundo que mexe com tudo que tem a ver com você e o seu ser. A gente precisa trabalhar o emocional constantemente para poder seguir”, diz. “Tudo ainda é muito recente, mas tem sido extremamente positivo na minha vida. É libertador poder colocar para fora a pessoa que você é”.

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Expulsa de casa nas entrelinhas, Aimee conviveu diariamente com a violência. Agressões físicas e verbais faziam parte da rotina familiar de tal modo que sua permanência se mostrou insuportável. A rejeição sofrida pelo pai doía tanto quanto as marcas deixadas por ele. “Nunca fui aceita ou vista de uma forma natural. Minha família é bem conservadora, então fui tida como uma desonra. Há muito machismo por trás da transfobia”, afirma. “Sempre digo que, para ser uma mulher trans, você precisa ter muita vontade de viver. É uma luta constante pela vida”.

"A palavra expulsão dá a entender que o pai abriu a porta e expulsou, mas muitas vezes ela não acontece dessa forma. A expulsão se dá por um convívio insuportável em que a pessoa não tolera mais ser agredida psicológica e fisicamente"

Symmy Larrat, presidenta da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Intersexos

Essa, no entanto, é uma batalha perdida para muitos. De acordo com dados levantados pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), 329 lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais foram mortos de forma violenta no Brasil em 2019. Cálculos do órgão indicam ainda que um LGBTI+ foi assassinado a cada 26 horas, o que faz do país o campeão mundial de crimes contra minorias sexuais. Do total, 35,5% das vítimas foram assassinadas dentro de suas próprias casas, indicando que a violência foi praticada por conhecidos ou familiares.

Fora de casa: a vida de pessoas LGBTIs expulsas pela família e acolhidas nas ruas  (Foto: Thalina Munekata/Casa Vogue Brasil)

Infográfico: a violência contra a população LGBTI+ no Brasil (Foto: Thalina Munekata/Casa Vogue Brasil)

Por um triz
Enquanto lares oprimem, ruas acolhem. Vielas, marquises e “malocas” tornam-se o local de abrigo não apenas para indivíduos queer, mas para toda uma população em situação de vulnerabilidade social. Na cidade de São Paulo, onde estima-se que 24.344 pessoas vivam em vias ou albergues públicos, cerca de 10,9% são pertencentes à sigla LGBTI+. Registrados pelo Censo da População em Situação de Rua realizado pela prefeitura no ano passado, esses números podem ser ainda maiores. “A gente sabe que os dados são defasados, principalmente depois da pandemia [do novo coronavírus]. A população de rua é muito flutuante, o que faz com que esses números dobrem ou caiam pela metade em questão de semanas”, explica Ricardo Luiz Dias, coordenador municipal de políticas LGBTI+.

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A ausência de dados precisos e fiéis à realidade anuncia a dificuldade em se criar políticas públicas voltadas para a população de rua em geral, mas também deixa ainda mais explícita a invisibilidade desses que já são invisíveis perante a sociedade. Comum aos desamparados, o nível de vulnerabilidade agrava-se à medida que se transita por cada identidade da sigla LGBTI+. “É como se eles tivessem uma camada a mais. Além de estar em situação de rua, o fato de esses indivíduos serem LGBTIs ainda os coloca em posição mais grave do que os demais que não são”, analisa Henrique Frota, coordenador do Instituto Pólis. "Já as pessoas trans e travestis são as mais vulneráveis dentro dos vulneráveis". 

Fora de casa: a vida de pessoas LGBTIs expulsas pela família e acolhidas nas ruas (Foto: Heloisa Ballarini/SECOM)

Dormitório da Casa Florescer I, localizada no bairro do Bom Retiro, em São Paulo (Foto: Heloisa Ballarini/SECOM)

O censo revela também que 19% das pessoas em situação de rua declararam que não puderam ser atendidas nos centros de acolhimento por conta da orientação sexual ou identidade de gênero. “Pode parecer um percentual baixo, mas isso significa que tem um extrato da população de rua que não se enquadra no padrão da normatividade hétero ou cis e que, por isso, tem mais dificuldade de acessar direitos”.

Da porta para fora
Ao enfrentar no próprio ambiente familiar um processo de discriminação que, muitas vezes, resulta na expulsão de casa, a comunidade LGBTI+ se mostra fragilizada no ponto de vista do acesso à moradia. Em nível nacional, por exemplo, a demanda por esse tipo de acolhimento é desconhecida. Sua necessidade, nem tanto. “Dizer quantas pessoas são expulsas de casa é algo impossível, até porque não sabemos nem quantos LGBTIs vivem no Brasil. O próprio governo não quantifica”, ressalta Symmy Larrat, presidenta da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Intersexos (ABGLT). “O que a gente sabe é o que chega, quantas são assassinadas... Se não sabemos quantos somos ao todo, como saberemos quantas de nós estamos sendo expulsas?”.

"Em nenhum lugar do país podemos dizer que existe uma situação exemplar de políticas públicas LGBTI+. Na maioria das cidades, o que existe é o cenário de total negação ou de retrocesso de programas bem-sucedidos"

Henrique Brito, coordenador do Instituto Pólis
Fora de casa: a vida de pessoas LGBTIs expulsas pela família e acolhidas nas ruas  (Foto: Thalita Munekata/Casa Vogue Brasil)

Os números da população em situação de rua em São Paulo (Foto: Thalita Munekata/Casa Vogue Brasil)

A necessidade de abrigamento é hoje uma das principais demandas sociais, sobretudo entre as LGBTIs. Não à toa, tem crescido no Brasil as experiências de casas organizadas e financiadas pela própria militância e pela sociedade civil. No país, nove centros de sociabilidade compõem a Rede Brasileira de Casas de Acolhimento LGBTQIA, com instituições em Aracajú (SE), Belo Horizonte (MG), Manaus (AM), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA) e São Paulo (SP). “Por um lado, fico muito feliz em saber que o nosso movimento é solidário e fraterno. É um exemplo para a sociedade como um todo, que nos coloca no lugar da imoralidade e do pecado”, ressalta Symmy. “Por outro, fico muito preocupada, porque o abrigamento é uma responsabilidade do Estado, e ele não é capaz de absorver as demandas e nem de financiar as iniciativas que existem”. 

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Integrante da rede nacional de acolhimento, a Casa Miga, em Manaus, vai além. Criada em 2018, ano em que a capital amazonense registrou maior número de LGBTIs assassinados no país em termos absolutos, a organização acolhe também lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis imigrantes ou refugiadas. Demanda essa iniciada após a crise socioeconômica e política na Venezuela. Com apoio da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), a casa já é uma das referências no suporte às pessoas em vulnerabilidade, com atendimentos psicológicos, sociais e profissionais realizados gratuitamente.

O espaço tem capacidade para receber até 18 abrigados, mas as vagas foram reduzidas para sete devido à pandemia. Diferente da Florescer, a Casa Miga recebe indivíduos de todas as siglas, que permanecem no local por cerca de três meses. “A gente não trabalha radicalmente com esse período, mas infelizmente não conseguimos manter uma pessoa por tanto tempo. A ideia aqui é poder ajudar vários grupos de pessoas”, explica Lucas Brito, coordenador do projeto. Unidos pela resistência, os moradores, que incluem brasileiros, venezuelanos e cubanos, encontram no lar não apenas um recomeço, mas também a chance de desenvolver laços afetivos até então estremecidos. “Nesse momento, nesse espaço, todos que estão aqui podem entender que, sim, têm uma família. Ocupamos um lugar de apoio e união que antes estava vazio. Estamos aqui porque já passamos pela mesma situação”, diz.

Fora de casa: a vida de pessoas LGBTIs expulsas pela família e acolhidas nas ruas (Foto: Acervo Pessoal)

Nascido na cidade de San Felipe, Venezuela, o designer Nelson Melendéz, 46, é um dos refugiados acolhidos na Casa Miga (Foto: Acervo Pessoal)

Nelson Melendéz é um dos abrigados na casa. Aos 46 anos, o designer gráfico faz parte dos mais de 37 mil refugiados venezuelanos reconhecidos no Brasil. Ele desembarcou no país em junho de 2019, mas só conseguiu regularizar sua situação e obter documentos brasileiros após ter sido acolhido pela Casa Miga em fevereiro. Ao longo de oito meses, Nelson chegou a trabalhar e viver nas ruas. “Saí do meu país para tentar uma vida melhor, mas acabei frustrado”, conta. “Ser imigrante e gay é uma situação muito complicada. São duas questões juntas que nos impossibilitam de ter uma vida digna”.

Prestes a completar um ano em solo brasileiro, Melendéz surpreende-se com o preconceito no Brasil. Apesar de já ter sofrido agressão física em um bar venezuelano, ele não está acostumado a lidar com os xingamentos e olhares tortos ao andar na rua. “Sinto que na Venezuela não há uma homofobia tão aberta quanto aqui. No Brasil, a prática homofóbica é completamente escrachada. É algo muito verbalizado, evidente”, afirma. “Consigo imaginar conhecidos que não praticariam homofobia na Venezuela, mas que seriam homofóbicos aqui. É algo muito menos repreendido”.

Entre expulsões e acolhidas, a resistência permanece e espaços de acolhimento provam-se cada vez mais necessários no país que há três anos consecutivos mais mata LGBTIs no mundo. “Sonho com o dia em que a Casa Miga não precisará mais existir. Infelizmente, ainda seremos necessários por muitos anos para que vidas ao menos saibam que essa realidade pode ser mudada, que existe uma chance quando nossos pais nos colocam na rua e dizem que não merecemos viver”, ressalta Lucas Brito. E assim a luta segue. Os sonhos também.

Fora de casa: a vida de pessoas LGBTIs expulsas pela família e acolhidas nas ruas  (Foto: Thalita Munekata/Casa Vogue Brasil)

Compreender (e respeitar) o significado de cada sigla é um caminho para um mundo mais tolerante e diverso (Foto: Thalita Munekata/Casa Vogue Brasil)

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