Forte presen�a feminina e negra pode melhorar Flip, escreve curadora
Keiny Andrade - 1.jul.2017/Folhapress | ||
Artista visual VJ Suave projeta ilustra��es nos muros de Paraty durante Flip |
RESUMO Curadora da Flip explica as escolhas que fez para o evento deste ano, que come�a na quarta (26). Afirma que a homenagem a Lima Barreto refor�ou sua disposi��o de buscar o que estava fora do centro, baseada na ideia de que os choques culturais s�o maiores num ambiente diverso, o que contribui para ampliar a qualidade.
Jan Limpens | ||
Quando assumi a curadoria da 15� Flip (Festa Liter�ria Internacional de Paraty), de in�cio evitei pensar em autores preferidos ou nos imediatamente lembrados em conversas informais ou de trabalho que passei a ter. A primeira lista que fiz para pesquisar os poss�veis convidados inclu�a gente de quem ouvira falar e ainda pouco conhecia –como Edimilson de Almeida Pereira, poeta negro de Juiz de Fora que, sem aten��o da grande imprensa, era elogiado por seus pares.
Com ajuda do Google, encontrei o site de sua editora, a Mazza. Pediram meu endere�o na resposta que me enviaram por e-mail. N�o havia se passado uma semana quando uma amiga me telefonou de Minas Gerais. Tinha participado de uma banca e sa�ra animada com a tese que investigava matrizes africanas em po�ticas brasileiras. O autor n�o era outro sen�o o poeta que eu tinha procurado pela internet.
A coincid�ncia me levou a escrever para o pr�prio, a fim de lhe pedir uma c�pia em PDF. "Foi um doutorado?", quis saber. "N�o, uma defesa para me tornar professor titular." Uma caixa de livros da Mazza chegou pelo correio pouco depois. Dentro, dezenas de obras de sua autoria ou em coautoria, entre poesia, ensaio e infantis.
A escolha de Lima Barreto (1881-1922) como autor homenageado em 2017 refor�ou minha disposi��o de buscar o que estava fora do centro. Tomei-lhe como guia na dire��o dos sub�rbios –n�o apenas o do Rio de Janeiro em que ele viveu mas tamb�m os do mundo–, e foi assim que encontrei l�nguas, culturas e mitos no Piau�, na Jamaica, em Ruanda e na Isl�ndia, obras que cruzam fronteiras �tnico-raciais, geopol�ticas e de linguagem.
A minha dilig�ncia foi garantir paridade –no total, 22 homens, 24 mulheres– e ter maior n�mero de autores e autoras negros, percentual que chegou a 30%. Essas somas obtive ap�s o esfor�o de combinar nomes de diferentes origens, g�neros, tonalidades e gera��es, baseada na ideia, corrente em universidades estrangeiras, de que os choques culturais s�o maiores num ambiente diverso, o que pode contribuir para ampliar a qualidade. Junt�-los em duplas e trios para compor as mesas levou-me � opera��o seguinte: identificar afinidades e influ�ncias em comum, pontos de contato e semelhan�as em sua arte e atua��o.
OUTRO DESAFIO
A atividade do curador de uma festa liter�ria tem parentesco com a do cr�tico. No entanto, se este �ltimo elege uma teoria ou departamento para filiar-se, na linha do formalismo ou dos estudos p�s-coloniais, na de Bloom ou Foucault, ao primeiro o que importa � localizar o que h� de interessante e relevante para levantar debates novos e mesmo inusitados.
A plateia n�o � necessariamente constitu�da por leitor especializado; se � leitor especializado, provavelmente quer encontrar a experi�ncia de uma festa liter�ria, n�o aquela da universidade.
Escolher Lima Barreto como homenageado me ofereceu outro desafio. A quest�o racial, que colocou em primeiro plano em sua obra, deveria ocupar a grade deste ano sem que se perdesse de vista que fora escolhido pelo escritor que era e continua a ser. Diversas vezes em seus di�rios ou em entrevistas tinha dito que desejava a gl�ria liter�ria.
A diferen�a de cor n�o poderia, mais uma vez e postumamente, prevalecer nas discuss�es a ponto de impedir que se contemplasse a for�a do que produziu.
Entendi que n�o poderia aprisionar quem escreve dentro de uma expectativa; estariam livres para participar como bem lhes aprouvesse. Tanto Lima Barreto quanto os autores e autoras negros deste ano s�o vistos em sua individualidade de artistas, cada qual com sua obra e trajet�ria, muitas vezes com perspectivas diferentes –em certos casos, sobretudo quando se trata de um estrangeiro, nota-se a preocupa��o em saber por que foi convocado, pois n�o quer correr o risco de falar apenas da quest�o racial.
De fato h� um centro, e � o pr�prio Lima Barreto, com as tantas aberturas que sua obra permite. Chegam a Paraty na quarta-feira, dia 26, e ficam at� o domingo, dia 30, autores que exercem o of�cio em todas as formas praticadas pelo homenageado, abordando muitas das quest�es que o inquietavam e com posturas pr�ximas da que teve.
Parece �bvio que uma festa liter�ria tenha literatura. No entanto, a fim de atrair maior cobertura da m�dia, com frequ�ncia se recorre a discuss�es mais diretamente relacionadas ao notici�rio "quente", como se diz no jarg�o jornal�stico. Troca-se literatura por audi�ncia, para desastre de muitos projetos que poderiam contribuir para formar leitores –necessidade t�o grande para o pa�s quanto o combate � desigualdade.
A atual crise no Brasil foi aventada n�o s� como fonte de pautas mas tamb�m como poss�vel justificativa para trazer famosos capazes de atrair p�blico, evitando encalhe de ingressos.
De novo, a escolha foi outra. Confiava que leitores habituais n�o deixariam de reagir com curiosidade diante da oferta de grande literatura mesmo em meio a situa��o econ�mica desfavor�vel. E, se � para atra�-los, o melhor � fazer diferente.
N�o significa que tenhamos menos estrelas em 2017. Nesse quesito, por onde come�ar? Marlon James e Paul Beatty s�o vencedores do pr�mio Man Booker (principal da l�ngua inglesa). William Finnegan levou o Pulitzer (concedido a trabalhos de excel�ncia em diversas �reas, como jornalismo e literatura). Scholastique Mukasonga ganhou o Renaudot (um dos principais pr�mios de l�ngua francesa).
Os arquivos de Diamela Eltit j� est�o em Princeton, e quando publiquei nas redes sociais a confirma��o de Concei��o Evaristo, um amigo do circuito acad�mico Lisboa-Harvard me escreveu pedindo ajuda para entrar em contato com a autora, que n�o respondia a e-mails nos ele quais solicitava autoriza��o para mais uma edi��o no exterior do "Ponci� Vic�ncio".
Sj�n concorreu ao Oscar (pela trilha de "Dan�ando no Escuro", de Lars von Trier), Carlos Nader venceu tr�s vezes o Festival � Tudo Verdade. Luaty Beir�o recebeu o pr�mio Engel-du Tertre da Funda��o ACAT (a��o dos crist�os pelo fim da tortura), que agracia indiv�duos pela coragem na luta pela dignidade humana. Distin��es distintas.
MAIS QUE LITERATURA
Em conex�o com outras artes, h� gente tamb�m da m�sica, do teatro e do cinema. Da sess�o de abertura �s "p�lulas" –pequenos v�deos antes das mesas–, buscou-se uma fei��o mais art�stica.
Novidade deste ano, a s�rie Fruto Estranho inaugura as formas h�bridas na Flip. Ser� um conjunto de seis interven��es antes de seis mesas, duas por dia, com dura��o de 15 minutos cada uma, entre poema digital, videopoema e performance.
A poesia e os poetas encontram-se desta vez distribu�dos por todos os cinco dias, e n�o isolados numa mesa. Da poesia cl�ssica ao verbivocovisual, do haikai ao slam, de letras para trilhas de filme aos document�rios sobre poetas, de Safo a Waly Salom�o.
Est�o reunidos poetas para falar de poesia, ler sua pr�pria poesia e tradu��es de poesia; poetas para debater escrita po�tica, c�none, poesia e ativismo, letras de m�sica e literatura infantil. Exercem a poesia como poetas-tradutores, poetas-performers, poetas-romancistas, romancistas-poetas, letristas-romancistas, letristas-ativistas, poetas-ensa�stas.
A presen�a das editoras independentes vem crescendo ano a ano. Em 2017, como houve procura da curadoria por autores e autoras que se localizassem fora do centro ou tivessem uma obra mais experimental, surgiu ainda mais oportunidade para novas editoras como a Dem�nio Negro, a N�o Editora, a N�s e a Relic�rio, ou aquelas com d�cadas de exist�ncia, como a Mazza.
Estrangeiros ainda n�o traduzidos no Brasil puderam ser contemplados pelas independentes. Confirmado um convite, o editor do exterior procurou quem pudesse publicar seu autor no Brasil. Uma editora de maior porte, com planejamentos de dois ou tr�s anos, nem sempre consegue absorver t�o rapidamente a demanda de traduzir e mandar para a gr�fica um livro que apare�a de repente.
Comparecer a uma festa liter�ria por vezes exige gastos de viagem que dificultam a composi��o de uma plateia mais diversa. Ainda assim, 2017 tem novos ares tamb�m nessa frente.
A poucos dias da abertura, h� not�cias de sites e coletivos negros articulando-se para fazer a cobertura, um grupo de autoras negras de campos diversos planeja estar na cidade para o lan�amento do cat�logo "Intelectuais Negras: Vis�veis", coordenado por Giovana Xavier (UFRJ), e a novata editora afro-brasileira Mal� pela primeira vez monta eventos paralelos.
Aut�noma no mercado editorial, a Flip serve de refer�ncia e n�o deixa de ser espa�o para que seus convidados tamb�m possam vender livros. Convocado para duas mesas e dois saraus, Edimilson de Almeida Pereira, por exemplo, lan�ar� tr�s novos: um de poemas, "qvasi", pela Editora 34, e dois de ensaios, "A Saliva da Fala" e "Orfe(x)u Exunouveau", ambos pela Azougue.
JOSELIA AGUIAR � jornalista, doutoranda em hist�ria e curadora da 15� Flip.
JAN LIMPENS, 47, � ilustrador e quadrinista (limpens.com).
Livraria da Folha
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