Movimentos negros repetem l�gica do racismo cient�fico, diz antrop�logo
Joca Duarte/Photopress | ||
Manifestantes na Marcha da Consci�ncia Negra no �ltimo dia 20 de novembro |
RESUMO No dia 20 de novembro, na avenida Paulista, manifestantes negros carregaram faixa com os dizeres 'miscigena��o � genoc�dio'. Para antrop�logo, trata-se de retorno a no��es racistas anacr�nicas (utilizadas pelos brancos no s�culo 19) e prega��o expl�cita em favor de um apartheid amoroso-sexual no Brasil.
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O mulato Abdias do Nascimento —que caminhou do fascismo integralista para o racialismo "made in USA"— era um homem preconceituoso. Basta ver a estranha seletividade com que, apesar de sua filia��o � mesti�agem tristetropical brasileira, ele usa a pr�pria palavra "mulato".
Quando quer fazer o elogio de algum mesti�o de branco e preto, Abdias chama-o "negro". Mas, quando quer execrar o sujeito, trata-o como "mulato" (muito embora, em seu discurso geral, fa�a de conta que o mulato n�o existe).
Assim, nos seus textos e palestras, o mulato Luiz Gama, filho de branco baiano de origem portuguesa e da preta Luiza Mahin, era "negro". J� o mulato capit�o-do-mato ou feitor, n�o: era "mulato" mesmo.
Pois bem. Descende diretamente do velho guru Abdias do Nascimento (1914-2011) o slogan racialista exibido em manifesta��o na avenida Paulista, no dia 20 de novembro, pelos ativistas dos movimentos negros: "Miscigena��o tamb�m � genoc�dio" —prega��o expl�cita em favor da implanta��o de um apartheid amoroso-sexual no pa�s.
Diante da afirma��o slogam�tica, ali�s, ficam menores outros debates, como os est�ticos, quando, depois que conseguimos atirar fora a praga do "realismo socialista", querem nos aprisionar no c�rcere do "realismo racialista". E um filme como "Vazante" (Daniela Thomas) acabou pagando o pato recentemente, nesse "revival" r�cico-stalinista.
Agora, com o combate � miscigena��o � frente, o lance � mais grave: passa-se do "lugar de fala" ao "lugar de cama".
Mas vamos puxar o fio da meada. Em "O Genoc�dio do Negro Brasileiro" (1978), b�blia do nosso racialismo essencialmente colonizado, um Abdias confuso e sect�rio monta duas sequ�ncias. Numa, encadeia mesti�agem, branqueamento e aliena��o da identidade negra. Noutra, amarra miscigena��o, branqueamento e aniquila��o da ra�a negra.
Neste segundo caso, Abdias v� a mesti�agem/miscigena��o como estrat�gia de exterm�nio da popula��o negra: "(...) o mulato prestou servi�os importantes � classe dominante; durante a escravid�o ele foi capit�o-do-mato, feitor (...). Nele se concentraram as esperan�as de conjurar a 'amea�a racial' representada pelos africanos. E estabelecendo o tipo mulato como o primeiro degrau na escada da branquifica��o sistem�tica do povo brasileiro, ele � o marco que assinala o in�cio da liquida��o da ra�a negra no Brasil".
E ainda, como se nunca tivesse se olhado no espelho: "O processo de miscigena��o, fundamentado na explora��o sexual da negra, foi erguido como um fen�meno de puro e simples genoc�dio. (...) Com o crescimento da popula��o mulata, a ra�a negra iria desaparecendo sob a coa��o do progressivo clareamento da popula��o do pa�s".
ANACRONISMO
Como argumentei em "A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros" (2007), � uma vis�o unilateral e anacr�nica, para dizer o m�nimo. Tanto do ponto de vista hist�rico, quanto do gen�tico. Por v�rias raz�es. Afinal, quem quer que conhe�a a hist�ria de nosso passado escravista sabe que mulatos n�o foram somente capit�es-do-mato ou feitores.
Muito pelo contr�rio: participaram de rebeli�es contra a elite senhorial branca, criaram (e viveram em) quilombos e, entre outras coisas, formaram a lideran�a da Revolu��o dos Alfaiates (1798), centrada na luta contra a escravid�o e o colonialismo —lideran�a que foi presa e enforcada em pra�a p�blica.
Al�m disso, n�o s� a miscigena��o n�o � —nem pode ser— um processo unilateralmente embranquecedor, como tal projeto de branquear a popula��o foi coisa datada e exclusiva da classe dirigente —e nossa vida social e cultural aconteceu, em sua maior medida, � revelia do Estado e dessa classe.
Por fim, � mais do que anacr�nica a suposi��o de Abdias que sustenta o feminismo negro. A mesti�agem, hoje em dia, n�o pode mais ser vista como viol�ncia contra a mulher negra.
Primeiro, porque temos uni�es de homens pretos com mulheres brancas. Segundo, porque a uni�o ou o casamento de um homem branco com uma mulher preta n�o se d� mais sem seu assentimento, cumplicidade ou mesmo iniciativa. Melhor n�o falsear a realidade com discursos "historicistas".
Mas � impressionante, paradoxal mesmo, ver como a atual ideologia racialista, que se alastrou pelo pa�s a partir principalmente do ambiente acad�mico, repete ao p� da letra a velha miragem do "racismo cient�fico" do s�culo 19, que acreditava na fantasia de uma desigualdade essencial e insuper�vel entre as ra�as.
Naquela �poca, os te�ricos do "racismo cient�fico" defenderam a tese totalmente sem p� nem cabe�a (que agora vemos retomada) de que era poss�vel branquear a popula��o brasileira atrav�s da imigra��o e da miscigena��o, j� que neste processo prevaleceriam sempre os genes da "ra�a superior" —a branca, naturalmente.
Em "Sur les M�tis au Br�sil" (sobre os mesti�os do Brasil), texto apresentado em 1911 no primeiro Congresso Internacional das Ra�as, realizado em Londres, o antrop�logo Batista de Lacerda, do Museu Nacional, chegou at� a fazer suas contas na ponta do l�pis. Segundo ele, o branqueamento do povo brasileiro estaria conclu�do na segunda d�cada do s�culo 21.
E sempre que recordo isso, lembro tamb�m uma deliciosa boutade do mesti�o brasileiro Chico Buarque de Hollanda, falando da obriga��o em que est�vamos de promover o casamento do goleiro Taffarel e da apresentadora Xuxa, a fim de tentar evitar a extin��o da ra�a branca no Brasil.
ATAQUES
Agora, como disse, os racialistas repetem o dogma que se revelou um fracasso hist�rico espetacular. E adiantam outros passos esdr�xulos, desde que a paranoia pol�tico-social tem seus pr�prios desenhos e suas pr�prias regras.
Com medo de um branqueamento final e total do povo brasileiro, essa turma parte para o ataque pesado. Dispara chumbo grosso contra rela��es amorosas e sexuais que envolvam pretos e brancos. E n�o � de hoje. J� na d�cada de 1970 esse discurso tinha aflorado com nitidez.
O pr�prio Abdias do Nascimento, que nunca olhava para si mesmo nem discutia seu pr�prio cotidiano, era discreta mas severamente criticado por diversos ativistas pol�tico-acad�micos do movimento negro, em consequ�ncia do seu casamento com uma branca americana, Elisa Larkin, autora do livro (bem ruinzinho, por sinal) "Pan-Africanismo na Am�rica do Sul: Emerg�ncia de uma Rebeli�o Negra" (1981).
E Abdias, embora defendesse a tese estapaf�rdia de que miscigena��o era genoc�dio, nunca se deu ao trabalho de analisar o seu caso pessoal. Sempre fez de conta que n�o ostentava uma ancestralidade mista —birracial, no m�nimo— e que n�o vivia com a mulher que vivia. Mas vamos deix�-lo de parte por ora.
O que quero salientar � o ponto a que chegaram nossos atuais "neonegros" (vale dizer, mulatos que sempre foram mulatos e hoje se apresentam como pretos retintos). J� faz tempo que, em seu af� de combater a mescla interracial, v�m falando de um tal de "amor afrocentrado", r�tulo ideol�gico que mais n�o � do que um eufemismo para a segrega��o er�tica.
Tem mais. Uma coisa � o fen�meno objetivo da mistura gen�tica, outra coisa s�o as ideologias da mesti�agem.
No passado, a mesti�agem brasileira ganhou leituras mistificadoras, senhoriais. Para se contrapor a isso, muitos cometeram um equ�voco prim�rio: em vez de rediscutir em profundidade a quest�o, resolveram elimin�-la, como um sujeito que, ao fechar a janela, acredita que a rua deixou de existir.
Mas continuamos mesti�os. E a mesti�agem n�o � indestac�vel da fantasia da democracia racial. Recusar-se a usar a no��o � como se recusar a falar de ra�a por causa do uso que os nazistas fizeram do conceito, combatendo ferozmente, ali�s, a mesti�agem. Se n�o entendermos nossas misturas, nunca entenderemos a n�s mesmos.
E � bom sublinhar que mesti�agem n�o � sin�nimo de harmonia. N�o exclui o conflito, nem a discrimina��o. A melhor prova disso � o Brasil. Aqui, uma coisa � certa. N�o pode existir del�rio ideol�gico maior, entre n�s, do que fantasiar a inexist�ncia de mesti�os. Mesti�os nascem diariamente de uma ponta a outra do pa�s.
Mas vamos finalizar. Se a mesti�agem diminui a popula��o negra, tamb�m diminui a popula��o branca. � curioso que "racistas cient�ficos" e racialistas atuais acreditem no contr�rio, que a miscigena��o branqueia, mas n�o escurece. A verdade � que o processo biol�gico n�o � (nem poderia ser) de m�o �nica, privilegiando magicamente os brancos.
Um estudioso negroafricano menos delirante, Kabengele Munanga, em "Rediscutindo a Mesti�agem no Brasil" (1999), vai ao ponto: "(...) a realidade emp�rica, crua, observada por todos, � a de que o Brasil constitui o pa�s mais colorido do mundo racialmente (...). Fica insustent�vel a cren�a no aniquilamento do contingente negro, por um lado, e no branqueamento completo de toda a popula��o brasileira, por outro (...). O colorido da popula��o desmente as previs�es do modelo".
Claro. A verdade � que, se um dia n�o houver nenhum negro no Brasil, tamb�m n�o haver� nenhum branco. E assim me vejo na obriga��o de repetir aqui uma observa��o (�bvia) que j� fiz in�meras vezes: se for pelo caminho da miscigena��o, o genoc�dio do negro ser� insepar�vel do suic�dio do branco.
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ANTONIO RIS�RIO, 64, antrop�logo, poeta e ensa�sta, � autor de "A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros" e "Mulher, Casa e Cidade" (Ed. 34).
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