'O Brasil � desafinado, tem as s�labas t�nicas fora dos tempos fortes', afirma Caetano Veloso
Aos 74 anos, os compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil refletem sobre cultura e pol�tica nos 50 anos do tropicalismo, o movimento que, em sua vertente musical, aglutinou Tom Z�, Gal Costa, Nara Le�o, Os Mutantes, Torquato Neto, Rog�rio Duarte, Capinan, J�lio Medaglia e Rog�rio Duprat.
"Tropic�lia ou Panis et Circensis", disco que reunia esses artistas, saiu em 1968. J� no ano anterior, contudo, Caetano e Gil haviam se destacado no Festival da M�sica da Record, com "Alegria, Alegria" e "Domingo no Parque", respectivamente.
Naquele mesmo 1967, a pulsa��o tropicalista se fizera sentir tamb�m no teatro (na montagem de "O Rei da Vela" pelo Oficina), no cinema ("Terra em Transe", de Glauber Rocha) e nas artes visuais (pelas m�os de H�lio Oiticica, com a obra "Tropic�lia", exposta no Rio de Janeiro em abril).
Em entrevistas concedidas de forma independente � Folha, Caetano e Gil discutem o legado vanguardista do movimento, o avan�o do conservadorismo no mundo e os equ�vocos da esquerda.
Caetano respondeu �s perguntas por e-mail, em meio a agenda de shows com a cantora Teresa Cristina. Distante do �nimo celebrat�rio, afirma que seus "projetos e sonhos [para o Brasil] s�o de grandeza", o que motiva desconfian�a em rela��o ao governo Temer: "Esses ajustes dos golpistas que prometem pouco a poucos e a prazo longu�ssimo n�o sugerem nada disso. Principalmente quando parecem prometer somente aos poucos que j� t�m relativamente muito".
O compositor comenta ainda o desejo de voltar a fazer cinema e a dessintonia entre velhice e liberdade.
Rodrigo Sombra/Folhapress | ||
Caetano Veloso em sua casa no Rio |
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Folha - Em outro momento comemorativo, nos anos 1990, voc� demonstrou desconforto com a celebra��o da tropic�lia e disse "a luta continua". Cinquenta anos depois da eclos�o do movimento, o que move seu �nimo anticelebrat�rio?
Caetano Veloso - A impress�o que me ficou desse epis�dio (de que n�o lembro claramente) foi que "a luta continua" era uma maneira alternativa de celebrar, n�o representava propriamente desconforto com o fato de haver a celebra��o.
Eu me sinto hoje mais anticelebrat�rio do que ent�o, eu acho. Toda a turn� com Gil [2015/2016] foi de celebra��o. Gostei imensamente dos shows, mas cada projeto novo de celebra��o me d� pregui�a.
O Carnaval da Bahia tinha [neste ano] o tropicalismo como tema. N�o topei nada. Mas na sexta-feira, quando Gil e Moreno [filho de Caetano] foram cantar no Pelourinho, decidi ir, quis ir, fiquei contente de ter ido.
O imagin�rio tropicalista tinha na obra de Oswald de Andrade (1890-1954) uma �ncora. Por que M�rio de Andrade (1893-1945), tamb�m da linha de frente do modernismo, n�o foi mobilizado pelo movimento?
Eu ouvia falar em M�rio de Andrade desde o col�gio. Um colega do cl�ssico [ensino m�dio], Wanderlino Nogueira Neto, me disse l� por 1962 que havia uma figura mais interessante na Semana de Arte Moderna, Oswald de Andrade, mais an�rquico e provocativo.
Eu era menos organizado do que hoje em dia e nem sequer tinha lido nada de M�rio. Lia trechos que apareciam na escola. De Oswald, nada.
A Semana era uma dessas coisas de S�o Paulo que pareciam n�o contar, n�o existir ou n�o fazer parte do que importava no Brasil.
Oswald mesmo s� chegou at� mim na montagem d' "O Rei da Vela" pelo Oficina em 1967. Comentei com Augusto [de Campos] qu�o impressionado tinha ficado com a pe�a. Ele me disse que era uma das coisas menos importantes do Oswald e me passou obras do pr�prio: "Pau Brasil", os manifestos, o "[Mem�rias Sentimentais de Jo�o] Miramar", tudo. Foi uma revela��o.
Oswald parecia sintetizar o turbilh�o que vinha me passando pela cabe�a desde 1966, desde "Terra em Transe" [de 1967]. Li e reli "Miramar" e "Serafim Ponte Grande", mas continuei sem aguentar "Macuna�ma".
Hoje, o que mais penso � em como a homofobia de Oswald n�o me causou repulsa (nem a Z� Celso), enquanto tudo que h� de veado em M�rio nunca me atraiu.
Sua gera��o contracultural ficou marcada por conquistas no campo dos direitos civis e das liberdades individuais. Como voc� percebe a virada conservadora em v�rios pa�ses, de Trump a Temer?
Era natural. Esperava por ela. Mas a realidade sempre surpreende. Muitas vezes, voltam � minha mem�ria as palavras de Rog�rio Duarte [m�sico e artista gr�fico respons�vel pela identidade visual da tropic�lia] quando J�nio [Quadros] venceu a elei��o para a Prefeitura de S�o Paulo contra um Fernando Henrique favorito, em 1985. "Eu gostei. Gosto do que acontece." Era um nietzscheanismo que me fascinava.
Quando olho para as figuras de Temer, parecendo sa�do de 1953 –e, como disse a "Economist" num artigo favor�vel a ele, com o gestual de um m�gico de palco–, e de Trump (um pop retr�grado), me lembro do "gosto do que acontece".
Mais prosaicamente, �s vezes tor�o para que os ajustes do governo Temer deem certo, s� porque n�o gosto de ver o Brasil n�o funcionar. Mas meus projetos e sonhos s�o de grandeza, de ver brotar no Brasil uma for�a que libere a criatividade de todos os homens e mulheres que nasceram falando portugu�s na Am�rica e desenhe uma ordem social que ilumine o mundo.
Esses ajustes dos golpistas que prometem pouco a poucos e a prazo longu�ssimo n�o sugerem nada disso. Principalmente quando parecem prometer somente aos poucos que j� t�m relativamente muito.
O Brasil � meio desafinado, tem o ritmo frouxo e as s�labas t�nicas fora dos tempos fortes. A PF explode um esc�ndalo que nos leva a crer que s� comemos carne podre e os estrangeiros a fugirem de n�s, no dia em que faz tr�s anos que a Lava Jato alimenta devaneios de puritanismo. Os nordestinos veneram Lula enquanto esbo�am atra��o por Bolsonaro. Fernando Henrique � visto no mundo de Renan e Juc�.
Todo esse namoro da esquerda com as pautas das liberdades individuais soa estranho. Era o que nossa gera��o queria. Mas era mais bonito e mais efetivo quando era tudo junto e misturado. A compartimenta��o enche o saco.
Caetano Veloso e Gilberto Gil - Tropic�lia
Voc� j� chamou o impeachment de Dilma Rousseff de "golpe em c�mera lenta". Como avalia o fortalecimento da direita? Onde a esquerda errou?
Um golpe paraguaio em c�mera lenta. Dilma n�o tinha talento. Gosto dela, mas seu governo foi ruim. O plano Dilmantega n�o ajudou o pa�s em nada. Podemos at� dizer que a esquerda errou ao referendar tudo o que Lula quisesse. Ele disse "Dilma"? Ent�o Dilma. Mas isso � s� um espirro. A esquerda vem de s�culos de erros: o esquema marxista de fatalidade hist�rica com est�gios definidos; as revolu��es que deram sempre em autocracias; a fantasia classe m�dia de que a classe m�dia � o inimigo.
Recentemente, voc� se debru�ou sobre a obra do antrop�logo Eduardo Viveiros de Castro. O que o atrai no pensamento dele?
Conhe�o Eduardo h� d�cadas. Gostei dele de cara. Ele tinha feito o trabalho sobre os �ndios Arawet�. Sou um apaixonado por "Tristes Tr�picos", do L�vi-Strauss, mas n�o sou da tribo dos antrop�logos.
Ler os livros de Viveiros de Castro agora (coisa que devo a outro Eduardo, o Giannetti) foi uma experi�ncia intensa. Eu tinha lido um texto dele, "Quem Tem Cu Tem Medo" [refere-se a "O Medo dos Outros"], de onde at� tirei a frase "virar jaguar" para a letra de "O Imp�rio da Lei". Achei eloquente, instigante e engra�ado, mas n�o vi o tamanho do engenho intelectual que � a cabe�a de Eduardo.
Agora, ao terminar de ler, de enfiada, "A Inconst�ncia da Alma Selvagem" [Cosac Naify], "Metaf�sicas Canibais" [idem] e "H� Mundo por Vir?" [Cultura e Barb�rie], fiquei assombrado com a intelig�ncia dele, com a enorme erudi��o que alimenta as refer�ncias, com a vivacidade de sua prosa e a beleza dos argumentos.
O mais l�cido seguidor das modas p�s-estruturalistas (nunca ningu�m me fez gostar mais de Deleuze do que ele), Eduardo � tamb�m o "claro instante" [express�o de L�vi-Strauss] em que o jogo vira. Continuo do lado de "O Mundo desde o Fim", de Antonio Cicero, do "Self Awakened" de Mangabeira [Unger], do Quarto Imp�rio de MD Magno [psicanalista], do am�lgama de Jos� Bonif�cio [o Patriarca da Independ�ncia] e do "Samba dos Animais" de Jorge Mautner, mas tudo tem de passar pela experi�ncia de ter lido Viveiros.
Em 2017, seu "Verdade Tropical" [misto de livro de mem�rias, autobiografia e ensaio] faz 20 anos. Que aspectos da vida brasileira estimulariam novo esfor�o ensa�stico?
"Verdade Tropical" mereceria alguma coisa ao chegar a essa idade. Eis uma celebra��o que eu acolheria com �nimo. Mas, afora a ideia de que sa�sse uma nova edi��o, por causa desse gancho –coisa em que a editora [Companhia das Letras] nem parece ter pensado–, qualquer celebra��o relativa a isso, de minha parte, teria que ser mais uma errata, uma s�rie de corre��es ou revis�o de argumentos.
Por muito tempo, voc� se declarou ateu. Esse sentimento segue inabalado?
Nunca foi propriamente um sentimento. Ou, pelo menos, s� �s vezes aparece assim. Foi rea��o contra a hipocrisia e respeito pela felicidade de ser.
Nunca fui ateu inteiramente: sempre fa�o o sinal da cruz quando o avi�o vai decolar, mantenho as fotos da imagem de N. Senhora da Purifica��o que minha m�e me deu para p�r em cada casa que tenho tido, acho fortes os pensamentos de Mangabeira [Unger] sobre as grandes religi�es serem esfor�os humanos para encarar nossa condi��o mais efetivos e abrangentes do que as filosofias. E crio supersti��es para aguentar o total descontrole do futuro.
Mas adoro o ate�smo. Detesto quando ele � tomado como proibido, quando figuras p�blicas n�o podem se dizer ateias.
O cinema ocupa um lugar relevante em suas conversas, ensaios e can��es. Depois da experi�ncia de "O Cinema Falado" (1986), ainda pulsa o desejo de filmar?
Sim. � algo que fica recalcado. O desejo ainda pulsa e vai pulsar at� o fim. Quando sento na [sorveteria] Cubana, no alto do Elevador Lacerda, quando vejo mo�as como Priscila Santiago [Miss Bahia 2013] nas ruas da Bahia, quando penso no encontro com Marco Polo [ex-dono de uma barraca de coco na praia do Porto da Barra] na minha volta de Londres –principalmente quando me lembro de imagens de filmes que vi nas telas de tantos cinemas–, tenho nostalgia de uma vida dedicada ao cinema.
Na juventude, a leitura de Sartre teve peso grande em sua forma��o. "As Palavras" (Nova Fronteira) repercutiu em sua vis�o de mundo. Como se v�, hoje, em rela��o � busca de liberdade? Sente-se mais livre?
Achava "As Palavras" o melhor livro j� escrito. Rog�rio Duarte comentava que isso dava a dimens�o da minha ignor�ncia. A liberdade que saltava dos textos de Sartre e Simone de Beauvoir ecoava em meu esp�rito. Depois aprendi outras dificuldades. Agora, entrando na velhice, aprendo outras limita��es. Ningu�m � mais livre com menos elasticidade e menos equil�brio.
CLAUDIO LEAL, 35, � jornalista
RODRIGO SOMBRA, 30 anos, � jornalista e fot�grafo
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