• Thiago Andrill
Atualizado em
Divulgação Ministério da Saúde  (Foto: Ministério da Saúde)

O Ministério da Saúde realizou uma audiência pública nesta terça-feira (Foto: Ministério da Saúde)

O Ministério da Saúde debateu em Brasília em audiência pública na manhã desta terça-feira (28) o manual Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento, feito pela própria pasta. A discussão se dá uma semana após a menina de 11 anos, vítima de estupro com gravidez decorrente, passar por um aborto em Santa Catarina, e dias depois de a Suprema Corte dos Estados Unidos (EUA) ter revogado a lei que estabelecia o procedimento como um direito no país.

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Durante mais de cinco horas, e em um jogo de se posicionar radicalmente contra ou a favor da lei como existe, os participantes da audiência trouxeram suas impressões acerca da cartilha; alguns com perspectivas que quebraram a dominante dicotomia.

Feminista pró-vida”, e por isso contra o aborto, a obstetra e ginecologista Luciana Lopes ressaltou que acredita que a prática seja ruim e que a educação, aliada posteriormente à adoção, se apresenta como uma forma de lidar com o assunto. Uma das últimas a ser ouvida, a deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP) afirmou que fica desgostosa em saber que dinheiro público foi usado para um evento que "prega a misoginia". "Por que esse governo não gasta essa energia e dinheiro atrás dos estupradores e não das meninas?”, questionou.

A hiperssexualização de corpos infantis na mídia foi parcialmente colocada por alguns como a responsável por casos de estupros de menores, assim como houve o questionamento da legalidade do aborto, apesar de previsto por lei em três cenários.

O debate acontece por aqui enquanto em países próximos como Argentina, Colômbia, Chile, México e Uruguai, a legalização da prática é ampliada nos últimos anos, garantido às pessoas que engravidam informação e o direito aos seus próprios corpos.

A juíza Joana Ribeiro Zimmer, que está sendo investigada por dificultar o aborto da criança vítima de estupro na Justiça catarinense, foi convidada. O Ministério afirmou que ela não confirmou presença.

Com 71 páginas, e publicado em 8 de junho, o documento trata a conduta de profissionais da saúde em casos de interrupção da gestação. A audiência foi instaurada por conta da repercussão negativa do manual. O Ministério abriu a consulta pelo e-mail da Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS), comandada desde junho de 2020 por Raphael Câmara Medeiros Parente. Integrante do Conselho Federal de Medicina, Raphael é médico do departamento de Ginecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e conhecido por sua posição contrária ao direito ao aborto.

O texto traz afirmações como a de que todo aborto, independente do contexto, é criminoso no Brasil. Contudo, o mesmo documento afirma - assim como médicos, juristas e políticos que participaram do evento - que o Supremo Tribunal Federal autoriza a prática em caso de fetos anencéfalos, estupro e risco à vida da gestante; decisão de 2012 da corte.

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Dessa forma, é colocado que não existe aborto legal quando, na verdade, as três situações estão acertadas juridicamente no país, do ponto de vista do Direito Penal. “Não existe aborto ‘legal’ como é costumeiramente citado, inclusive em textos técnicos”, diz o Ministério no manual. “O que existe é o aborto com excludente de ilicitude. Todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez por risco materno.”

Proteção de ferro

O Ministério da Saúde amanheceu nesta terça cercado por alambrados de ferro, para dificultar o acesso de possíveis manifestantes. Foi reforçado pela pasta que o esquema de segurança foi montado com o objetivo de evitar incidentes.

A audiência foi aberta com a fala do secretário Raphael Câmara Medeiros Parente, também presidente da sessão (Foto: Marcello Casa; Jr./ Agência Brasil)

A audiência foi aberta com a fala do secretário Raphael Câmara Medeiros Parente, também presidente da sessão (Foto: Marcello Casa; Jr./ Agência Brasil)

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A audiência foi aberta com a fala do secretário Raphael Câmara Medeiros Parente, também presidente da sessão. Ele falou por quarenta minutos e empregou termos como “matar bebês na barriga” em menção ao aborto. O médico também indagou se a prática é uma questão de saúde pública.

“Após tudo isso que falamos, vem a pergunta: é um problema de saúde pública? Essa questão fica para quem quiser comentar na audiência pública, mas vamos nos basear em números e não em versões”, declarou. Segundo dados do Ministério da Saúde, o procedimento é a quinta causa de morte materna no Brasil.

"Por definição, um problema de saúde pública é algo que tem impacto na sociedade medido por mortalidade aumentada, morbidade, custos do tratamento para a sociedade e potencial epidêmico em caso de infecções. O número de mortes por aborto nos últimos sete anos foi de 411, o que representa uma média de cerca de 58 mortes maternas por ano", traz a cartilha.

Em poucos dias de mobilização, mais de 100 entidades da sociedade civil se manifestaram contra o novo guia do Ministério da Saúde contrário ao aborto legal. A declaração, assinada pela Anis - Instituto de Bioética - e pela Cravinas - Clínica de Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) - foi assinada em conjunto com diversas entidades da saúde, jurídicas, científicas, universitárias e movimentos sociais.

"No documento, foram apontadas as ilegalidades, equívocos e desconformidade com as evidências contidas no guia do Ministério da Saúde, além de solicitar o adiamento da audiência", diz o comunicado no Instagram do Cravinas.

As instituições reforçam que a situação é grave.  "Os dados disponíveis se limitam aos óbitos por abortos e às internações por complicações de aborto. Entretanto, apesar da subnotificação, a análise do Sistema de Informação (SIM) revelou que foram registrados 770 óbitos com causa básica aborto entre os anos 2006 e 2015, ou 1 morte a cada 4 dias." Ambas destacam que a pasta deixa evidente o seu “descompromisso” com as mulheres.

"Como obstetra, para mim não dá essa sociedade que acha que é normal matar bebês na barriga com 7, 8, 9 meses. Eu não quero fazer parte dessa sociedade"

Raphael Câmara

“Como obstetra, para mim não dá essa sociedade que acha que é normal matar bebês na barriga com 7, 8, 9 meses. Eu não quero fazer parte dessa sociedade”, ressaltou Raphael Câmara. “Dizer que as mulheres pretas morrem mais por aborto, do ponto de vista dos números oficiais do Ministério da Saúde, não se reflete”, declarou em outro momento de sua fala.

"Só a lei define o que é crime"

“Quando a cartilha afirma que todo aborto é crime, ela vem em total dissonância à doutrina do Direito Penal. O conceito de crime envolve tipicidade [que a conduta conste no Código Penal como delito] e ilicitude [conduta humana contrária a um direito]. Quando não há excludente, temos também o ponto da culpabilidade [vontade culposa] do agente”, afirmou a defensora pública da união, Daniela Corrêa, em sua fala.

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“Se a lei diz que não é crime, não podemos falar em linguagem técnica que é, mas apenas sem punibilidade. A questão da punibilidade faz menção à anistia [quando as consequências jurídicas são excluídas em uma conduta contrária a um direito], não para este fim”, complementou a defensora pública. “Precisamos garantir a liberdade a partir da necessidade de estabelecer o que é um crime.”

Daniela ainda enfatizou que o artigo 124 do Código Penal, que pune o aborto provocado, ao contrário de outras falas sustentadas na discussão pública, não engloba o "aborto legal" – uma expressão pautada em manuais e doutrinas. “O aborto legal é o permitido por lei. Existe nos livros de Direito Penal desde 1940. Não há incongruência na utilização dessa terminologia. Pelo contrário, dá visibilidade às hipóteses de aborto previstas pela legislação.”

Por fim, Daniela destacou que a cartilha serve para orientar profissionais da saúde na questão da interrupção da gravidez - quando prevista por lei - e que esta não pode dar um sentido diverso daquele estipulado pela legislação. “Em questão de crime, só a lei define o que é crime.”

Argumento de eugenia

Tendo em vista os três cenários que contemplam a legalidade do aborto no país, para o ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Ives Gandra Filho, quando as exceções são consideradas, “partimos para uma questão de eugenia.”

Outras personalidades também reforçaram que no terceiro e mais recente cenário, o de feto anencéfalo, haveria uma brecha para que bebês com possibilidade de nascerem com síndrome de Down, e diferentes tipos de deficiência física, fossem “mortos”.

Porém, a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal em 2012 prevê o aborto no caso de má-formação do tubo neural do bebê durante o desenvolvimento, o que o faz ser natimorto ou sobreviver algumas horas, ou dias, após o nascimento. Este cenário não se aplica a pessoas com síndrome de down e variados tipos de deficiência física citadas na audiência pública.

Em caso de estupro

A deputada Janaina Paschoal (PRTB-SP) relembrou à sessão que, quando se formou em direito em 1996, a mulher que havia sido estuprada precisava abrir um boletim de ocorrência e um requerimento de autorização judicial para poder abortar – hoje, não há necessidade. “A palavra da mulher vítima de estupro passou a valer para este fim”, afirmou.

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A deputada enfatizou que depender de uma autorização judicial e de uma investigação poderia tornar a possibilidade prevista na lei lenta. “Quando a autorização saía, a pessoa já estava com oito meses de gestação, o que tornava o procedimento inviável”, continuou.

“Haja visto esse resgate histórico, é incoerente que possibilitemos interrupções em fases avançadas. Jurídica e sistematicamente é insustentável permitir essa tal de interrupção, a partir do estupro, em fases avançadas”, acresentou Janaina. Não há referência, no artigo 128 do Código Penal, ao tempo de gestação máximo em que o aborto pode ser aplicado, tanto em caso de estupro quanto para salvar a vida da gestante.

Janaina voltou ao assunto da legalidade da prática e declarou que não achava prudente a “insistência” do Ministério de ter, ou não, aborto legal – sendo que, por lei, ele o é nas situações já citadas. “Não é oportuna essa discussão em um material voltado a médicos, porque mesmo entre profissionais do direito, não há consenso. Não estou falando do aborto em si, mas do conceito de crime.”

Condições médicas

Segundo o representante da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o doutor José Paulo Júnior, a mulher precisa ser a definidora de seus direitos a partir do recebimento de informação de qualidade. Em relação ao tempo de 20 semanas que tem sido debatido socialmente por conta do caso da menina estuprada em Santa Catarina - lembrando novamente que a lei não estipula, neste cenário, um prazo -, José afirmou que, a depender das condições médicas disponíveis e de outras questões, pode variar.

“Se eu trabalho em um hospital sem condições, a minha possibilidade de trabalho é quase nenhuma e isso tem que ser levado em conta. Quando pensamos nos motivos que levam uma mulher a interromper, seja por estupro ou anencefalia, temos que pensar o que aquela mulher recebe como informação em relação ao futuro daquela vida", declarou. "A discussão de um bebê que pode nascer com 300 ou 700 gramas tem que contemplar o ponto de que ele vai se constituir em uma criança com pouca ou nenhuma chance de interagir com outras crianças, entre variadas questões de saúde”, disse José Paulo Júnior.

“Defendemos e sempre defenderemos as leis brasileiras e temos que colocar na questão a viabilidade e qualidade de vida. A mulher precisa ter a melhor qualidade de informação possível para exercer seu direito, dentro da lei, de solicitar ou não a interrupção de sua gestação.”

Para Lia Machado, representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), se o aborto legal fosse de pleno conhecimento da sociedade, mais mulheres que se encaixam nos cenários previstos buscariam o procedimento. “Precisamos avançar a discussão do aborto legal para que as mulheres procurem mais cedo”, declarou na audiência pública.

Já para a deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ), independente das definições legais, o aborto é “sempre um homicídio.” “Não adianta suavizar a linguagem na tentativa de mascarar o ser humano dentro do ventre”, destacou.

"Bando de negacionistas"

À sessão, a deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP) afirmou que o Ministério da Saúde foi apossado por “um bando de negacionistas”, que foram responsáveis por um genocídio – em menção às consequências da covid-19 no país - e que fica desgostosa em saber que dinheiro público foi usado para um evento que prega a misoginia.

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“Aqui se promove a investigação das estupradas e não dos estupradores. Apenas 2% deles são condenados. Por que esse governo não gasta essa energia e dinheiro atrás dos estupradores e não das meninas?”, declarou a deputada federal, que reforçou que 70% das mulheres estupradas no Brasil têm menos de 18 anos.

"Há gasto público para fazer uma ‘caça às bruxas’ às meninas deste país. Eu não quero um Brasil que ensine ao meu filho que as meninas são as responsáveis por essa situação"

Sâmia Bomfim

Sâmia também declarou que irá à Justiça para revogar a cartilha. “Há gasto público para fazer uma ‘caça às bruxas’ às meninas deste país. Eu não quero um Brasil que ensine ao meu filho que as meninas são as responsáveis por essa situação.”

“As esposas de secretários, e suas amantes, podem pagar procedimentos caríssimos, agora, as mulheres pobres e pretas, não”, afirmou sobre os riscos corridos por mulheres em situações de vulnerabilidade social que abortam em clínicas clandestinas precárias.

“Hoje, estamos falando de algo que existe há 80 anos no Brasil - a possibilidade de aborto quando há risco de vida da gestante - e que está sendo desrespeitado por aqueles que promovem esse evento.”

Por fim, a deputada declarou que o Brasil não é um “quintal do obscurantismo e do bolsonarismo” e que todos os espaços serão ocupados para que a misoginia institucional seja denunciada. “Em outubro [próxima eleição], as senhoras e senhores serão derrotados nas urnas”, afirmou.

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“Que as mulheres e as meninas possam viver sem violência e que os equipamentos públicos sejam voltados para protegê-las. A lata do lixo da história espera pelos senhores.”

Nos minutos finais da audiência pública, diferentes participantes reforçaram que a discussão foi anunciada com pouco tempo de antecedência, o que dificultou a presença de algumas autoridades, especialistas e organizações, como a de ONGS que defendem os direitos reprodutivos das mulheres. Além disso, algumas integrantes reforçaram que a ocasião era para debater o aborto que já é legal, não a legalização, em outros cenários, ou a sua criminalização.