• Silvia Chakian
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O planejamento familiar é direito fundamental que encontra respaldo no artigo 226, parágrafo 7º, da Constituição Federal, que obriga o Estado a propiciar todos os recursos para o seu exercício. Também a Lei 9.263/96 define o planejamento familiar como o conjunto de ações que compreende assistência à concepção e contracepção; atendimento pré-natal; assistência ao parto, puerpério e ao neonato; controle e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e dos cânceres cérvico-uterino, de mama, de próstata e de pênis.

(Foto: Colagem Pamella Moreno)

É dever do Estado assegurar o exercício do planejamento familiar (Foto: Colagem Pamella Moreno)

Portanto é dever do Estado, por meio do Sistema Único de Saúde, assegurar o exercício do planejamento familiar, necessário para que a mulher possa decidir, por exemplo, se quer ter filhos, quantos e em qual momento da sua vida. Cabe aos equipamentos do SUS fornecerem, como método de contracepção: camisinha masculina e feminina, anticoncepcional oral ou injetável (mensal e trimestral), dispositivo intrauterino de cobre-DIU, diafragma, implante subcutâneo, pílula do dia seguinte como anticoncepção de emergência e, ainda, acesso a laqueadura.

Recentemente nosso Congresso aprovou inclusive importantes alterações à lei do planejamento familiar, dentre as quais a redução da idade mínima para esterilização voluntária, de 25 para 21 anos; a possibilidade de a laqueadura ser feita no parto; e a exclusão da necessidade de consentimento expresso do cônjuge, para a esterilização.

Não obstante se tratar de direito fundamental previsto constitucionalmente, o acesso ao planejamento familiar ainda é sistematicamente negado a milhões de pessoas no nosso país, criando obstáculos à emancipação efetiva das mulheres, principalmente aquelas que mais sofrem com a vulnerabilidade social: negras e pobres. Seja em razão das relações sociais estruturadas a partir das desigualdades de gênero, classe, raça; seja em razão da fragilidade histórica e persistente do Estado na efetivação das doutrinas de proteção integral e prioridade absoluta de crianças e adolescentes; seja, especialmente, em razão do atraso ao reconhecimento das mulheres como sujeito de direitos, e tabus que revestem os debates sobre educação sexual no Brasil.

Não à toa a ativista americana Loreta Ross cunhou em 1990 a expressão “justiça reprodutiva” para evidenciar a contradição de acesso a direitos sobre gravidez garantidos a mulheres de diferentes raças e classes sociais, tendo defendido na ocasião que termos como “pró-vida” ou “pró-escolha” não refletem as opções limitadas de mulheres negras e pobres, que sequer têm acesso à informação ou métodos de contracepção.

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Segundo informações do Instituto Planejamento Familiar – IPFAM, o acesso ao planejamento familiar é condição para: diminuição dos índices de pobreza; redução da criminalidade e violência doméstica; diminuição da mortalidade materno-infantil; melhoria das condições da primeira infância; aumento do grau de escolaridade; maior acesso ao mercado de trabalho; e maior eficiência dos gastos públicos, já que os métodos de contracepção são significativamente mais baratos que os impactos de uma gravidez indesejada para o sistema de saúde e sociedade em geral.

É passada a hora de deixarmos a hipocrisia que permeia os debates sobre descriminalização do aborto de lado para encararmos o fato de que pouco ou quase nada se faz em termos de políticas públicas para impedir que ele ocorra, porque estamos imersos num contexto de negação histórica e persistente de acesso ao planejamento familiar nesse país. O que também abrange a falta de estímulo à participação e inclusão do público masculino nessas ações, tanto relacionadas aos métodos de contracepção, como de esterilização voluntária, como a vasectomia, não havendo justificativa para que permaneçam restritos à pílula e à laqueadura da mulher. A garantia de acesso ao planejamento familiar é condição necessária à autonomia integral das mulheres, sendo pressuposto de uma vida livre, independente e digna. Negá-lo constitui evidente forma de violência contra elas.