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Em novo livro, John Boyne celebra a perda de poder da Igreja Católica na Irlanda

Em novo livro, John Boyne celebra a perda de poder da Igreja Católica na Irlanda

Irlandês, o autor de "O menino do pijama listrado" conta que sofreu abuso sexual na infância e escreve sobre o catolicismo em seu país natal

ARIANE FREITAS E RUAN DE SOUSA GABRIEL
19/02/2016 - 08h00 - Atualizado 19/02/2016 09h44

John Boyne precisou de 15 anos e 12 romances para enfim escrever a respeito de seu país, a Irlanda. Lançado em 2014, o romance Uma história de solidão chega agora ao Brasil e apresenta um tema atual e controverso – o abuso infantil. O autor se tornou mundialmente conhecido com o livro O menino do pijama listrado (lançado no Brasil em 2009), que vendeu mais de 5 milhões de cópias no mundo e virou filme. Conta a história de dois meninos, um judeu e um filho de um general nazista, que se tornam amigos mesmo separados pela cerca de um campo de concentração.

John Bolyne e o livro.Uma história de solidão.O autor celebra a perda de poder da Igreja Católica (Foto: AP)


 

Uma história de solidão (Foto: Reprodução)


 

Em Uma história de solidão, Boyne mergulha na Irlanda, mas passa ao largo de clichês como lindas paisagens e o povo musical e festivo. O escritor combina ficção e toques autobiográficos para relatar a história do padre Odran e seu embate com a própria consciência. Independentemente de ser pessoalmente culpado, o sacerdote tem de enfrentar a reprovação da população ante a crise da Igreja Católica, gerada pelos casos de pedofilia. O drama dos casos começa a fazê-lo duvidar da própria fé. “Minha intenção nunca foi fazer um ataque ou uma defesa, e sim um estudo de como a Igreja tem tratado não só a sociedade, mas aqueles que trabalham dentro de seu próprio sistema”, afirma Boyne.

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A Irlanda tem um histórico incomum em sua relação com o catolicismo e o avanço nos costumes. No censo de 2011, 84% da população se declarou católica romana. Das escolas irlandesas, 97% são controladas pela Igreja. Ainda assim, foi o primeiro país do mundo a aprovar em um referendo o casamento entre pessoas do mesmo sexo, em 2015. A Igreja perdeu as brigas do divórcio (aprovado tardiamente em 1995) e dos métodos contraceptivos (tornados legais em 1985). Os casos de abuso infantil vêm sendo combatidos como problema institucional, e não apenas uma sequência de eventos isolados de mau comportamento individual. Não poderia ser mais oportuno o momento de chegada do livro de Boyne. Nele, a vida do padre Odran e suas angústias servem para explicar as mudanças na Igreja e na cabeça dos fiéis.  “Parecia que minha imaginação sempre me levava para fora da Irlanda. Senti que não deveria escrever sobre meu próprio país, até que tivesse uma história que eu realmente quisesse contar sobre ele”, afirma o autor de 45 anos. “A maioria de meus livros não foi estritamente pessoal. Não trouxe para eles a minha própria vida. Com este, pude trazer um pouco de minhas experiências pessoais.”

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Boyne estudou na mesma escola mencionada no livro, a Tenerue College, e diz ter sofrido abusos psicológicos e sexuais. “Fui submetido a abusos naquela escola, e as ações de muitos dos professores em meu romance são baseadas naqueles que encontrei na vida real”, afirma. Boyne cresceu em um ambiente tão católico como os descritos nas páginas do livro. “De um lado, tinha um vizinho padre. Do outro, uma casa com oito freiras.”

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O debate sobre os casos de abuso sexual acobertados pela Igreja ganhou novo fôlego nos últimos tempos. O papa Francisco vem tratando do tema em suas viagens – embora seja criticado por nada ter feito de concreto contra os agressores, nem para impedir novos casos. O tema também teve espaço no cinema em 2016. O longa-metragem Spotlight foi indicado ao Oscar de Melhor Filme. Conta a história verídica de um grupo de jornalistas do The Boston Globe que investigou como a arquidiocese da região encobria casos de pedofilia. No filme, como no livro de Boyne, muitos dos padres responsáveis pelos abusos sexuais eram transferidos ou recebiam licença em vez de ser denunciados e punidos.

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A pesquisadora Lisa McGonigle, especialista em literatura e cultura popular na Irlanda, conclui que a Igreja Católica vem perdendo seu monopólio no país desde a década de 1960, quando começaram a surgir algumas escolas seculares e aumentou a penetração de meios de comunicação de massa, como a televisão. “O poder da Igreja Católica está instável há muito tempo, mas os escândalos sobre abuso sexual aumentaram isso. Agora, aqueles que eram considerados árbitros da moral são vistos como hipócritas”, afirma. Para ela, as mudanças em curso no país mostram quanto a Irlanda evoluiu nos últimos 20 anos. “Em 1995, o referendo sobre o divórcio foi aprovado com uma margem muito pequena, 50,28% dos votos. Já no referendo sobre o casamento igualitário, em 2015, o sim venceu com 62%. É um avanço enorme.”

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Boyne concorda que o país está avançando. Apesar do sofrimento que relata em sua infância, hoje ele afirma se sentir feliz com sua origem. “Nunca senti tanto orgulho de ser irlandês como quando o casamento igualitário foi aprovado no referendo. Foi um momento em que uma nação inteira ficou em pé, dizendo que não será mais governada pela Igreja Católica.”








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