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"Eu acredito em finais felizes", diz Michael Cunningham, autor de ‘As horas’

"Eu acredito em finais felizes", diz Michael Cunningham, autor de ‘As horas’

"A rainha da neve", o novo livro do escritor americano, chega às livrarias brasileiras

RUAN DE SOUSA GABRIEL
30/10/2015 - 08h04 - Atualizado 03/11/2015 13h15

Poucos dias antes do Natal de 1844, o escritor dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875) publicou A rainha da neve, um conto de fadas sobre o triunfo do bem sobre os poderes gelados do mal. No conto, uma criatura mitológica fabrica um espelho que só reflete aquilo que é feio e distorce tudo o que é bom e belo. Esse espelho se quebra em milhões de pedacinhos que penetram nos corações dos homens e transformam seus olhos em espelhos que só veem o que é mal.

O escritor americano Michael Cunningham recorreu à história infantil de Anderson para nomear seu novo romance, que acaba de chegar às livrarias brasileiras. A rainha da neve (Bertrand Brasil, 252 páginas, R$ 35) acompanha a história de Tyler e Barrett, dois irmãos quarentões que vivem no Brooklyn, em Nova York. A ação se estende da reeleição de George W. Bush, em 2004, à eleição de Barack Obama, em 2008. Tyler é um aspirante a músico que se esforça para escrever uma canção de amor para sua noiva, Beth, que tem câncer. Em busca de inspiração, ele se entrega à cocaína. Barrett acaba de levar o fora do namorado por mensagem de texto e relê Madame Bovary, de Gustave Flaubert, pela enésima vez. Uma noite, encontra a transcendência por acaso, quando vê, no céu, uma luz misteriosa que ele interpreta como um sinal divino.

O enredo do livro em quase nada lembra o conto de fadas dinamarquês. Ao não ser nas paisagens invernais e numa cena em que um floco de neve se aloja no olho de Tyler. A rainha da neve é o sexto romance de Cunningham, que venceu prestigiado Prêmio Pulitzer pelo romance As horas, cuja adaptação hollywoodiana contou com Meryl Streep e deu um Oscar a Nicole Kidman. Por e-mail, Cunningham conversou com ÉPOCA sobre seu novo livro, a política americana e sua relação com a transcendência.

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O escritor Michael Cunningham (Foto: Divulgação)

ÉPOCA – A rainha da neve é o título de um conto de fadas de Hans Christian Andersen, mas a história dos irmãos Tyler e Barrett não é uma versão contemporânea da história infantil. Por que você escolheu esse título para o seu livro?
Michael Cunningham –
Antes de escrever a primeira linha do livro, eu já sabia que o título seria A rainha da neve, mas não sabia o quão fiel eu seria à história de Hans Christian Andersen. Eu fui atraído pelas palavras “neve” e “rainha”, que tem múltiplos significados em inglês. Snow (neve) não remete apenas a uma nevasca na véspera de Natal, mas também é uma gíria para cocaína. E queen (rainha) é um sinônimo um pouco depreciativo de gay. No meu livro, eu me apropriei de alguns aspectos do conto de fadas de Anderson, que é uma das poucas histórias infantis sobre o desespero, no qual os personagens têm de ser resgatados física, emocional e psicologicamente.

ÉPOCA – E por que escrever sobre a relação entre irmãos?
Cunningham –
Honestamente, não sei. Você não vai ficar surpreso ao ouvir que alguns autores são guiados por impulsos misteriosos que nem eles mesmos compreendem. Eu sou um desses autores. Sou atraído por relações amorosas – e até românticas – que não envolvem um componente sexual; ou seja, relações que ficam de fora do escopo de quase todos os livros sobre amor. Por razões que não sou capaz de explicar, eu me interesso pelo amor que dispensa perguntas como “eles vão se apaixonar?”, “eles vão se casar?” ou “eles vão viver felizes para sempre?”. Como o amor entre dois irmãos. Tirando esse tipo de pergunta do caminho, é possível abordar questões como idealização, rivalidade e as maneiras como a adoração e a inveja se misturam.

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ÉPOCA – Tyler era bonito e talentoso e Barrett era inteligente, mas nenhum deles se dá bem na vida e eles acabam se refugiando nas drogas e na religião. Os seus personagens (como Madame Bovary, o livro favorito de Barrett) buscam a transcendência para compensar a banalidade da existência?
Cunningham –
A maioria dos livros que eu admiro – e Madame Bovary é um dos meus favoritos – envolve um tipo de busca pela transcendência, que é uma das mais atraentes qualidades humanas. Minha gata, por exemplo, não tem ideia do que seja transcendência. Ela só pensa em comer e dormir. Eu adoro a nossa habilidade humana de imaginar o que há além deste mundo. Uma das razões por que Emma Bovary é atemporal é que, por trás dos seus desejos mais prosaicos, havia algo mais profundo. O destino dela foi trágico porque ela acreditou nos romances açucarados que lia. Ainda que a própria Emma não soubesse, por trás daquelas ilusões egoístas, havia um desejo por transcendência, por uma vida melhor, mais completa e menos tediosa. Quem não quer ler sobre uma pessoa assim?

"A rainha da neve", de Michael Cunningham (Foto: Reprodução)

ÉPOCA – Os seus personagens sempre passam por maus bocados ao longo dos seus livros, mas sempre conquistam um final feliz ou, no mínimo, alguma esperança. Por quê?
Cunningham –
Eu acredito em finais felizes. Eu acredito na continuidade da vida, ainda que alguns dos meus personagens não sobrevivam ao final do livro. A vasta história humana continua, ainda que alguns indivíduos desapareçam. Fico feliz que notem que meus personagens enfrentam muitas dificuldades antes do final feliz. Ainda que eu acredite em finais felizes – talvez seja mais preciso dizer que eu acredito em continuidade, o que implica em “finais felizes” – eu só acredito no final feliz quando ele vem apesar das piores coisas que podem acontecer. Se não fosse assim, seria sentimental e sem valor. Seria um insulto aos meus leitores e àqueles que sobreviveram a catástrofes ainda piores do que as enfrentadas por meus personagens.

ÉPOCA – Ainda que os personagens de A rainha da neve sejam muito críticos do governo George W. Bush, que é chamado de “o pior presidente da história” várias vezes ao longo do livro, eles têm pouca esperança de que Barack Obama seja eleito. Qual a sua opinião do governo Obama?
Cunningham –
Eu nem sempre concordo com as opiniões políticas dos meus personagens, mas, nesse caso, nós temos a mesma opinião. Bush destruiu a economia americana e declarou guerra aos países errados, só para citar dois exemplos. Apesar disso, parece que os americanos acharam que seria uma boa ideia conceder um novo mandato ao presidente que cometeu esses atos. E, quatro anos depois, esses mesmos cidadãos elegeram um afro-americano dono de uma inteligência genuína e do que pareciam ser princípios éticos inabaláveis. O governo Obama acabou sendo um balaio de gatos, mas eu quis começar o romance com a reeleição daquele que pode ter sido o pior presidente da história americana, e terminá-lo com a eleição de um homem negro humano e idealista, num país marcado pelo racismo. Por que não situar a ação de um romance num período de mudança histórica tão profunda?

ÉPOCA – As eleições presidenciais americanas, que acontecem no ano que vem, deixariam Tyler e Barrett muito nervosos com a possibilidade de Donald Trump [pré-candidato conservador do Partido Republicano] se tornar presidente. O que está achando da corrida presidencial?
Cunningham –
Tyler e Barrett estariam com tanto medo de um governo Trump quanto eu. É fácil dizer que ele não tem condições de ser eleito – muita gente diz isso –, mas eu me lembro que nós dizíamos a mesma sobre [Ronald] Reagan [presidente entre 1981 e 1989] e Bush... Eu acho que as pessoas são excessivamente críticas de Hilary Clinton [ex-primeira-dama e pré-candidata do Partido Democrata], mas eu entendo que muitos tenham receio de que ela esteja agindo mais por cálculo político do que por convicção. Eu admiro Bernie Sanders [pré-candidato socialista], mas acho difícil que ele consiga se eleger.

ÉPOCA – O senhor já escolheu seu candidato?
Cunningham –
Ainda não escolhi o meu candidato, mas já posso afirmar que não será nenhum dos republicanos. Não que não vote em republicanos por princípio. Mas eu não jamais votaria em qualquer candidato que negue direitos humanos fundamentais e ofereça tudo aos ricos e nada aos pobres, posições que têm caracterizado os postulantes republicanos.

ÉPOCA – Como é o seu processo de escrita?
Cunningham – 
Cada escritor trabalha de um modo, é claro. Há os que já conhecem o enredo em detalhes antes de começar a escrever. Eu costumo começar com alguns personagens e um vago pressentimento da história que vai se desenrolar. Para mim, a ficção só consegue ganhar vida se há um elemento de espontaneidade na escrita. Muito planejamento produz uma qualidade um tanto mecânica, como se os meus personagens fossem funcionários do livro e tivessem o trabalho de seguir um mapa que conduz ao final da narrativa.

ÉPOCA – Em As horas, o seu livro mais famoso, o senhor se debruçou sobre a vida de três mulheres. Já em A rainha da neve, as mulheres são personagens secundários e a narrativa é protagonizada por homens. É diferente escrever personagens homens e personagens mulheres?
Cunningham – 
Não é diferente. Muitas mulheres elogiam minha habilidade de escrever personagens femininas convincentes. Sempre fico feliz ao ouvir esse tipo de comentário, mas geralmente respondo: “por que você acha que escritores homens teriam dificuldade para criar personagens femininas complexas e convincentes?”. Colocar-se no lugar dos outros é um aspecto fundamental do trabalho do escritor. Mas eu sei que há diferenças. Andar sozinha à noite numa cidade escura é uma experiência diferente para uma mulher do que é para mim, por exemplo. A diferença se deve a questões culturais. Ainda que não sejamos todos iguais, é sempre possível se colocar no lugar do outro.

ÉPOCA – O senhor é cético como Tyler ou acredita em sinais e milagres como Barrett?
Cunningham – 
Eu me pareço mais com Barrett do que com Tyler. Eu nunca recebi um sinal como Barrett, mas já vi fenômenos inexplicáveis, misteriosos e contrários às leis da física. Minhas experiências transcendentais são um dos poucos assuntos que eu não discuto. São muito pessoais.








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