Helio Gurovitz

Pode entrar, a porta de "Ulisses" está aberta

Pode entrar, a porta de "Ulisses" está aberta

Apesar de ter sido sempre considerado difícil, o livro de James Joyce é perfeitamente legível e tem muito a dizer ao leitor comum

HELIO GUROVITZ
14/06/2015 - 10h02 - Atualizado 26/10/2016 15h44

Buck concelebra. Stephen educa. Stephen cogita. Bloom evacua. Bloom esfolia. Bloom comisera. Crawford prevarica. Bloom mastiga. Stephen explica. Dublin perambula. Boylan adultera. O cidadão coagita. Gerty deleita. Mina parturia. Bella emascula. Um marinheiro exagera. Nossos heróis urinam. Molly menstrua.

Eis, resumido em 39 palavras, todo o Ulisses, de James Joyce. Esse poema sumário, de autoria do irlandês David Butler, estará de uma forma ou de outra na mente daqueles que, nesta terça-feira, dia 16 de junho, celebrarão em todo o mundo o Bloomsday, dia de Bloom, data comemorativa criada em homenagem ao livro, a seu autor e ao personagem principal, Leopold Bloom. Ulisses narra, de uma forma absolutamente inovadora para a época, as 24 horas na vida de Bloom e do jovem professor Stephen Daedalus, em 16 de junho de 1904. A trama envolve uma aula dada por Stephen; a perambulação de Bloom por Dublin, o adultério de sua mulher, Molly, com o cantor Blazes Boylan; um parto; um enterro; discussões políticas num bar; heróis que defecam, urinam, se masturbam e frequentam um bordel da cafetina Bella Cohen. Considerada obscena e proibida, a obra teve de ser lançada em Paris, por uma pequena editora, em 1922 – evento que desencadeou uma novela de processos judiciais e edições rivais até hoje em curso. Por causa da inesgotável criatividade da linguagem de Joyce, Ulisses sempre foi considerado um livro difícil, coisa para intelectuais. Dezenas de autores – como Stuart Gilbert ou Harry Blamires – se propuseram a “guiar” o leitor pelo livro. O próprio Joyce afirmou que daria trabalho a gerações de acadêmicos na tentativa de decifrá-lo. Quem deixa de lado essa fama e apenas se dedica a ler as centenas de páginas de Ulisses descobre duas coisas. Primeiro, apesar da forma pouco convencional, o livro não corresponde à fama de intratável – é perfeitamente legível. Segundo, por mais que – fazendo jus à profecia de Joyce – seja celebrado quase como uma religião por legiões de acadêmicos, tem muito a dizer ao leitor comum. Seu enredo é fascinante, há passagens engraçadíssimas e algumas das mais belas páginas que a literatura já foi capaz de produzir.
 

LIVRO DA SEMANA Ulisses, James Joyce |  Editora Alfaguara,  912 páginas,  R$ 93 (Foto: Divulgação)

A primeira coisa que impressiona o leitor é a quantidade de temas e vozes que se entrecruzam na narrativa. Cada capítulo ecoa um episódio da Odisseia de Homero, é narrado de um ponto de vista singular, tem uma linguagem própria, faz referência a um órgão do corpo, a uma arte: política, teologia, arquitetura, mecânica, medicina, economia, religião, história – “um pesadelo de que a humanidade tenta despertar”, nas palavras de Stephen – e toda sorte de atividade humana. Joyce viveu a maior parte da vida longe de Dublin, cidade cujos locais descritos e decifrados minuciosamente ao longo daquele dia se tornaram atrações turísticas. Se você visitar Dublin no dia 16 de junho, ficará surpreso com a alegria e a celebração do povo irlandês, que tem como heróis escritores, alguns dos maiores da língua inglesa – de Jonathan Swift a Bernard Shaw; de William Butler Yeats ao próprio Joyce. A recíproca também é verdadeira. Os heróis de Joyce são gente comum, do povo. Ele enxerga o extraordinário em vidas ordinárias, como as de Bloom, Molly ou Stephen. Joyce despe seus personagens de tudo aquilo que esconde sua essência. Ao fim, resta-lhes apenas a humanidade. É difícil encontrar algum leitor que não se identifique com algum, nalgum episódio, nalgum momento específico daquele 16 de junho.

A diversidade de Ulisses acaba por se concentrar em dois grandes temas. O primeiro – “a palavra conhecida por todo homem” – é o amor. Em todas as suas formas, da mais física e sensual à mais espiritual. Joyce é um escritor incomum na cultura ocidental, incapaz de separar corpo e alma nas ações humanas. A vida, para ele, são os dois, ou uma coisa só – e o amor é a maior prova disso. O segundo tema de Ulisses é a paternidade. Bloom e Stephen se encontram e desenvolvem, no pouco tempo que passam juntos, um improvável carinho mútuo, dadas as origens e visões de mundo completamente diferentes. A transmissão de pai para filho é, para Joyce, o que garante a sobrevivência da nossa espécie. Mas a palavra final de Ulisses cabe a uma mulher, Molly. O extenso monólogo sem pontuação, em que ela menstrua antes de adormecer, se encerra com um inequívoco “sim”. Entre tantos escritores imersos em discursos depressivos, ecos da morte, da miséria e dos horrores humanos, Joyce se destaca como um dos maiores do século passado, segundo seu biógrafo Richard Ellmann, por ter dito “sim à vida”. Não é pouco. “Seus heróis são difíceis de admirar, seus livros não são fáceis de ler”, escreve Ellmann. “Ele não quer nos conquistar, mas quer que o conquistemos. Não há convite – mas a porta está aberta.” Não tenha medo. Pode entrar, que Ulisses é seu. 








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