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Donna Tartt é um gênio ou escreve mal?

Donna Tartt é um gênio ou escreve mal?

Escritora bissexta, a americana volta a entusiasmar o público e a dividir a crítica com um estilo comparado ao de Charles Dickens

PAULO NOGUEIRA*
05/09/2014 - 11h36 - Atualizado 05/09/2014 11h36

De dez em dez anos, a escritora Donna Tartt assombra os meios literários dos Estados Unidos com o fulgor de um cometa. O visual ajuda: cabelo de asa da graúna, pele de porcelana, silhueta modiglianesca, roupa escura e aura aristocrática, ela lembra um cisne negro e esfíngico. Com apenas três obras, virou um titã no panteão das letras americanas, embora tenha só 1,51 metro – a altura exata da Lolita de Vladimir Nabokov, como ela própria faz questão de lembrar.

Nascida há 50 anos em Greenwood, Mississippi, Tartt debutou na cena literária em 1992, com o romance A história secreta, situado numa faculdade da Nova Inglaterra, onde seis alunos fascinados por Nietzsche se envolvem num crime como um típico “ato gratuito” da filosofia existencialista. Desde a estreia Tartt combinava a narrativa de pedigree literário com a novela policial popular, que só quer saber quem matou o morto. A primeira tiragem do livro, de 75 mil exemplares, se esgotou em três dias. Hoje, está editado em 34 países e já vendeu centenas de milhares.

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Dez anos depois, lançou O amigo de infância, recebido com indiferença. Ele levou os críticos a se interrogar se Tartt era daqueles autores de uma proeza só. Para provar que estavam errados, ela consumiu 11 anos escrevendo O pintassilgo, um romance em que acompanhamos o crescimento físico, moral e psicológico de Theo Decker. Uma espécie de náufrago da vida, como o Ismael de Moby Dick, Decker é um menino nova-iorquino de 13 anos, cuja mãe foi morta num atentado terrorista.

Lançado nos EUA no final do ano passado, O pintassilgo foi acolhido com êxtase. Os direitos para a adaptação cinematográfica já foram comprados. Edições sucessivas se esgotaram num piscar de olhos. Ao todo, o livro já vendeu 2 milhões de cópias impressas ou digitais. Por sete meses, se empoleirou na lista dos best-sellers do New York Times e, em abril, embolsou o prêmio Pulitzer de ficção – o mais badalado do país. A crítica chegou a comparar Tartt a grandes mestres da literatura de língua inglesa, como atesta o panegírico de Michiko Kakutani, também vencedora do Pulitzer, há 31 anos chefe da seção literária do New York Times: “Esta obra gloriosamente dickensiana mostra quantas oitavas emocionais Donna Tartt consegue alcançar, como narradora consumada que é”.

A consagração de Tartt como possível sucessora dos grandes mestres da literatura despertou duas questões que os homens de letras (escritores, críticos, acadêmicos) adoram esgrimir, quase desde a invenção do alfabeto. Uma é o fim do romance, cuja extinção foi proclamada no século XX por gente da estirpe de Walter Benjamin, Ortega Y Gasset, Norman Mailer, Naguib Mahfouz, Philip Roth, Jonathan Franzen e Zadie Smith (os cinco últimos são eminentes romancistas contemporâneos).

A outra questão é a rixa entre ficção literária e ficção comercial, que Umberto Eco resumiu há décadas sob a dicotomia “apocalípticos e integrados”. Foi aí que o bicho pegou. Mais precisamente, numa longa reportagem publicada no número de julho da revista Vanity Fair, com uma piadinha meio besta no título: “It’s Tartt – But is it Art?” (“É Tartt, mas é arte?”). Para refutar a opinião canônica do New York Times, a Vanity Fair recrutou três outros pesos pesados da crítica: a New Yorker, o New York Review of Books e a Paris Review. James Wood, resenhista da New Yorker e talvez o ensaísta mais respeitado da atualidade, cuspiu fogo. “O arrebatamento com que O pintassilgo foi recebido é mais uma prova da infantilização da nossa cultura: um mundo no qual adultos circulam com Harry Potter sob as axilas”, escreveu.

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IMORTAL OU PERECÍVEL? A escritora Donna Tartt em retrato de 2003. Seu romance O pintassilgo foi considerado uma obra-prima (Foto: Grant Delin/Corbis/Latinstock e divulgação)

No New York Review of Books, a crítica Francine Prose afirmou sobre a prosa de Tartt: “Ninguém se importa mais se um romance é ou não bem escrito?”. O editor da Paris Review, Lorin Stein, foi impiedoso: “Hoje, até o New York Times tem medo de dizer que um livro popular é uma bela droga”.

A controvérsia, apesar de divertida, saudável e útil, não é nova. A crítica literária não é uma ciência exata. Está impregnada de subjetividade. Já suspirava George Steiner, um dos hermeneutas mais prestigiosos de todos os tempos: “Quem seria crítico, se pudesse ser escritor?”. Naturalmente, quando egos tão voláteis estão em jogo, assoma a questão da inveja. Como confessou o escritor americano Gore Vidal: “Toda vez que um amigo meu faz sucesso, morro um pouco”. Isso não quer dizer que gosto não se discute. Significa apenas que devemos ir devagar, pois a história da literatura ensina que inúmeros santos eram de barro: quem se lembra ou lê Pontoppidan, Eucken, Heyse, Lagerkvist, Deledda, Agnon ou Martinson – todos Nobel de Literatura e hoje anônimos?

Não que devamos subscrever o método do livro A história da literatura sem as partes chatas, recentemente publicado no Brasil. Ele classifica obras-primas por critérios de acessibilidade e diversão. O maniqueísmo do “entretenimento versus arte” é filisteu, pois implica que a “literatura séria” exclui o excitante, o espirituoso, o divertido; numa palavra, o prazer da leitura.

Convém recordar que o próprio Dickens – invocado por Kakutani para louvar Tartt – foi espinafrado por seu par Henry James, que o chamou de “superficial”. O escritor francês André Gide, também Nobel de Literatura (1947), rejeitou a edição do manuscrito de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, agora considerado o supremo romance do século XX. Gide nunca se perdoou pela gafe. E, já que James Wood falou em Harry Potter, a saga do bruxinho de J.K. Row­ling foi recusada por 12 grandes editoras – antes de dar no que deu. O critério das vendas tampouco ajuda. Cervantes e Dickens, esses colossos literários, foram best-sellers arrasa-quarteirões em suas épocas – e continuam sendo. Franz Kafka, outro gênio consensual, jamais será.

A crítica ao estilo imperfeito de Tartt merece ser examinada. Mesmo que fosse verdade, inúmeros escritores do cânone mais inexpugnável claudicaram na elegância da prosa. Compensaram com tramas fascinantes. Novamente, Dickens é o caso exemplar. Sim, as frases de Tartt não são daqueles aforismos que obrigam o leitor a parar e balbuciar: “Uau!”. Mas as cenas e a fabulação reembolsam tal lacuna com uma dinâmica narrativa perfeitamente funcional. Escrever simples é dificílimo. Escrever complicado é fácil.

O crítico do jornal inglês The Guardian, que aprovou o romance de Tartt, resumiu a polêmica com as seguintes perguntas: O pintassilgo é um livro que mexe tanto com críticos quanto com leitores? Sim. É um romance problemático? Sim. Merece elogios da crítica, apesar da opinião de James Wood? Sim. As pessoas que leem um ou dois livros de ficção literária por ano devem ler O pintassilgo? Se elas quiserem. Quem determina o que é literatura? Muita gente diferente. Como sempre acontece, as próximas gerações demarcarão lugar de Tartt no cânone literário.

*O escritor Paulo Nogueira é autor de oito romances, entre eles O amor é um lugar comum.
Viveu em Portugal por 25 anos








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