Vida

William Trevor, o tradutor do drama humano

William Trevor, o tradutor do drama humano

Aos 86 anos, aclamado como “maior contista vivo da língua inglesa”, o irlandês William Trevor finalmente é publicado no Brasil

VINÍCIUS GORCZESKI
15/08/2014 - 07h59 - Atualizado 15/08/2014 07h59
RECLUSO William Trevor em 2012 e seu livro A história de Lucy Gault, que chega agora ao país. “Meus romances são a união de muitos contos”, diz ele (Foto: Effigie/Leemage)
A história de Lucy Gault (Foto: divulgação)

O escritor argentino Julio Cortázar escreveu que o texto apaixonante arrebata o leitor como um boxeador derrota o adversário, progressivamente. A ideia é que a boa leitura acumula seus efeitos golpe a golpe sobre quem lê. “O romance ganha sempre por pontos, enquanto o conto deve ganhar por nocaute”, disse. O conto perfeito “é incisivo, mordente, sem trégua desde as primeiras frases”. Infelizmente, a reiterada predileção das editoras por histórias que vencem o leitor por pontos costuma deixar alguns dos mais habilidosos nocauteadores da literatura à margem do mercado brasileiro.

Agora, a obra de um deles, o irlandês William Trevor, será editada pela Biblioteca Azul, selo da Globo Livros. “Trevor é um contista da gema”, diz Carlos Henrique Schroeder, criador do Festival Nacional do Conto de Florianópolis, Santa Catarina. Ele começou a ler Trevor na década de 1990, para nunca mais parar. “Ele usa o cotidiano para jogar luz sobre a vida. O lançamento de seus contos, no ano que vem, é um acontecimento.”

Neste ano, chegam três obras – romances. Trevor se define como contista que, por acaso, também escreve romances. Ele considera as histórias longas que fez como uma “reunião de muitos contos”. É o caso de A história de Lucy Gault, finalista do Booker Prize e do Whitbread Prize, sua primeira obra a chegar ao Brasil, traduzida por Elisa Nazarian. Num texto ágil, Trevor conta como a garotinha Lucy arma um jeito de ficar na terra onde crescia, em meio à guerra da independência irlandesa, na década de 1920. Suas atribulações causam profundas mudanças para ela e para sua família. Para setembro, está prevista A jornada de Felícia, que é considerado o melhor romance de Trevor. Love and summer, ainda sem título, deverá sair em novembro. Contos completos chega em 2015.

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A publicação de Trevor ocorre num momento de valorização mundial do conto. Graças à premiação da contista canadense Alice Munro com o Nobel de Literatura em 2013, o conto e os contistas subitamente ganharam visibilidade. “Foi uma grande vitória. Colocou o gênero em alta”, diz Schroeder. Para a escritora Noemi Jaffe, da Casa do Saber, a conquista de Munro atraiu atenção para esse pedaço da literatura. “Isso mudará o mercado no mundo inteiro, e o Brasil tende a acompanhar, por estar cada vez mais integrado ao mercado mundial”, diz ela.
 

RECONHECIMENTO A contista canadense Alice Munro em Victoria, Canadá. Por vencer o Nobel de Literatura no ano passado, ela ajudou a valorizar o conto no mercado editorial (Foto: Kim Stallknecht)

Discretamente, a onda mercadológica do conto já chegou aqui. A Companhia das Letras lançou, no ano passado, Tipos de perturbação, da renomada americana Lydia Davis, até então inédita no país.  Neste ano foram publicados os trabalhos de Pablo Palacio, equatoriano morto em 1947, até então inédito no Brasil, e do premiadíssimo americano George Saunders. Em 2015, também sairão 40 stories, do americano Donald Barthelme (Rocco, ainda sem título), e Meus documentos, único livro de contos do chileno Alejandro Zambra (Cosac Naify). The collected stories, de John Updike (ainda sem tradução), será lançado pela Biblioteca Azul.

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Trevor odeia aparecer. Numa das raras vezes em que falou à imprensa, em 1989, foi interpelado por uma repórter da Paris Review sobre como fazia para trazer à superfície os dramas humanos na ficção: “Como você sabe tanto sobre a maneira de essas pes­soas viverem?”. Trevor, com 60 anos na época, respondeu: “É uma maneira interminável de recordar”. Em outra entrevista, dada 20 anos depois ao jornal inglês The Guardian, falou de si mesmo: “Costumo dizer não a qualquer coisa que não seja apenas escrever”.

A fama de recluso veio com seu romance The old boys, lançado em 1964, logo após se mudar para a Inglaterra. Ele tinha 36 anos e escolheu trocar os holofotes por uma vida dedicada aos livros. Batia à máquina de escrever pela manhã. À tarde trocava a escrivaninha pelo jardim – rotina hoje abandonada por problemas de saúde. Publicou 18 romances e novelas e 17 coletâneas de contos, entre 1967 e 2009. A maior parte trata de irlandeses comuns. São histórias tristes sobre a culpa, a fé, e como o “cidadão pequeno” lida com a esperança e a falta dela. Sua ambição é tornar o provincianismo irlandês universal. Faz isso observando seus objetos à distância, mantendo com eles uma intensa empatia.

Por trazer à tona momentos luminosos de seus personagens, Trevor tem sido  comparado a James Joyce – irlandês como ele e seu inspirador. Numa resenha de 1975 da coletânea Angels at the Ritz, o escritor Graham Greene (1904-1991) disse que se tratava de “uma das melhores coletâneas de contos, senão a melhor, desde Dublinenses, de James Joyce”. O ensaísta americano Ron Hansen fez outra comparação monumental. “Embora possa soar herético, acho que Trevor é superior ao bom doutor russo.” Ele se referia ao mestre universal da narrativa curta, o russo Anton Tchekhov. Em tom levemente mais contido, a revista The New Yorker, para quem Trevor escreveu assiduamente, disse que ele é “o maior contista da língua inglesa vivo”. O afeto da crítica tem se refletido na multiplicação de prêmios. Ele foi vencedor ou finalista de 20 prêmios literários. Seu nome liderou as apostas para o Nobel de Literatura de 2012, afinal entregue ao chinês Mo Yan. Sem problemas. Trevor continua a ser o Muhammad Ali dos contistas contemporâneos.








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