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otan Guerra da Ucrânia

Política e Putin estragam festa dos 75 anos da Otan

Eleições nos dois lados do Atlântico e avanço russo na Ucrânia desafiam aliança

São Paulo

A reunião de cúpula que irá celebrar os 75 anos da Otan começa nesta terça-feira (9) com um incômodo cheiro de queimado no ar. Ele vem da realidade na Ucrânia, onde forças russas avançam, e também metaforicamente, da turbulência política nos Estados Unidos e na Europa.

Não era, nos planos do anfitrião americano, Joe Biden, para ser assim. Mas em vez de uma demonstração de força para asseverar o senso de missão retomado da aliança militar ocidental —cortesia do mesmo inimigo que ensejou sua criação em 1949—, o que se vê é um inventário de problemas à mesa.

Pessoas se aglomeram e seguram uma mangueira para tentar apagar o foto em ruína fumegante de um prédio
Voluntários trabalham no resgate a vítimas do hospital infantil Ohmatdit, atacado em Kiev - Roman Pilipei/AFP

Em Washington, sede do encontro, Biden enfrenta crescente pressão para abandonar sua candidatura à reeleição após implodir sua imagem com o desempenho pífio no debate com Donald Trump, em 27 de junho.

O democrata é o líder de fato da aliança e comanda 70% de seu gasto militar. Nessa condição, retomou o investimento político no clube que havia sido abandonado nos anos de Trump no poder (2017-2021).

Biden é o maior apoiador da Ucrânia de Volodimir Zelenski, tendo doado a Kiev cinco vezes mais em ajuda de defesa do que a Alemanha, segunda colocada no ranking do germânico Instituto para Economia Mundial de Kiel.

Já Trump diz que "acabará com a guerra em um dia", sugerindo tirar o plugue da tomada do apoio. Plano vazado por seus assessores condiciona Kiev a aceitar negociar com Putin.

Para complicar, o contrapeso europeu na Otan também vê a política bagunçar as expectativas. A Alemanha viu o crescimento da ultradireita, que é praticamente pró-Rússia, nas eleições parlamentares europeias de junho.

Na França, o presidente Emmanuel Macron trucou ao convocar um pleito legislativo antecipado para enfrentar a ascensão da ultradireita na mesma disputa europeia. A Reunião Nacional de Marine Le Pen ficou em terceiro lugar no domingo (7), mas só para ver grupo liderado pela ultraesquerda vencer.

A expectativa na França é de instabilidade, e no papel é o presidente que comanda defesa e política externa. Mas resta evidente que está enfraquecido ou inviabilizado o papel de líder europeu, prometendo até caças para a Ucrânia, que vinha sendo trabalhado por Macron.

Já o novo premiê britânico, Keir Starmer, fará sua estreia no palco internacional com apenas quatro dias no cargo. Ele é um apoiador da Ucrânia, como o antecessor conservador Rishi Sunak, mas seu foco deverá ser a conturbada situação econômica do Reino Unido.

Some-se ao caldo o aumento da intensidade no campo de batalha. Nesta segunda (8), Moscou promoveu um dos mais mortíferos ataques neste ano, com ao menos 41 mortos e 38 mísseis disparados —quase o total da semana anterior em todo o país invadido por Putin em 2022.

A briga entre republicanos e democratas no Congresso protelou em mais de seis meses o envio de armas americanas novas para Kiev, e mesmo elas não têm dado conta dos avanços recentes dos russos no leste do país. São ganhos graduais, mas constantes desde que a contraofensiva de Zelenski fracassou em 2023.

O atraso foi um aperitivo do que virá se Trump for eleito. A própria Otan abandonou o plano de criar um seguro contra o republicano e deverá aprovar polpuda ajuda de R$ 240 bilhões em 2025 para Kiev, mas não renová-la automaticamente como queria o secretário-geral, Jens Stoltenberg.

O norueguês, que comanda sua última reunião anual antes de passar o bastão para o holandês Mark Rutte em outubro, tem o que apresentar. Na sua gestão, após ter Macron decretando a morte cerebral da Otan, a guerra galvanizou a aliança.

A adesão da Finlândia, que assim como a Suécia abandonou a neutralidade histórica, dobrou a fronteira da Otan com a Rússia, uma derrota estratégica para um Putin que justificava a invasão da Ucrânia pelo temor dessa proximidade.

Numa vitória tardia para a retórica de Trump acerca da leniência europeia, dos agora 32 membros da Otan, 23 acabarão 2024 gastando acima de 2% de seu PIB com defesa —meta estabelecida em 2006 que, em 2014, só era cumprida por 3 dos então 28 integrantes do clube.

Além da ajuda bilionária, o convidado especial Zelenski deverá sair da reunião com o anúncio de entrega de mais defesa aérea ocidental, sua prioridade. Os primeiros caças F-16 americanos, prometidos no ano passado, devem começar a chegar à Ucrânia neste mês, de forma limitada.

Na cúpula do ano passado, na Lituânia, o presidente ucraniano ficou contrariado pela negativa em formalizar um processo de adesão de seu país à Otan, algo torpedeado pessoalmente por Putin na reunião de 2008, em Bucareste.

O russo ainda ia a encontros do tipo naquele ano, quando a guerra contra a vizinha Geórgia deixou clara sua disposição ante a expansão a leste dos rivais. Isso evoluiu para o recurso constante à ameaça de uma Terceira Guerra Mundial, nuclear, com a Otan agora.

Zelenski chegará com o não à adesão contratado e deverá ouvir a cantilena usual de "caminhos e pontes" para a admissão. Restará a ele descobrir se o ritmo da renovada ajuda da Otan será maior do que a cadência da artilharia russa.

Com a emergência ucraniana, pouco espaço deverá ser dedicado à China. Os EUA vinham insistindo na inclusão de Pequim no rol de vilões, mas prioridades comerciais da Europa por ora falam mais alto, ainda que aqui e ali sejam dados sinais —como a expedição franco-germano-espanhola em curso no Pacífico.

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