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Guerra da Ucrânia União Europeia

Eleição interrompe plano de Macron de liderar a Europa

Presidente francês faz jogada de alto risco, Meloni vira referência improvável, e extremos brilham

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São Paulo

Emmanuel Macron foi dormir no sábado (8) com sua autoimagem de líder de uma França renovada à frente da Europa lustrada. Havia comandado as festividades dos 80 anos do Dia D, recebido o americano Joe Biden com pompas e até doado caças para a Ucrânia combater seu arquirrival Vladimir Putin.

O domingo (9) da eleição parlamentar europeia lhe garantiu sonhos intranquilos, reduzindo o presidente à condição algo pedestre de político nas cordas. Convocar eleições parlamentares antecipadas é a jogada mais arriscada de seu mandato.

Imagem de Macron em tela durante seu discurso após a derrota na eleição parlamentar europeia
Imagem de Macron em tela durante seu discurso após a derrota na eleição parlamentar europeia - Christian Hartmann - 9.jun.2024/Reuters

Pode dar certo, por óbvio, mas a votação consagradora da RN de Marine Le Pen sugere que a busca de uma imagem moderada para a filha do homem que simbolizou a ultradireita fascistoide europeia por décadas está dando certo.

Macron faz, com a eleição, uma última tentativa de colocar o espantalho ante os franceses. Mesmo que Le Pen não amealhe uma maioria, como pesquisas indicam, ela pode sair com mais poder, obrigando o presidente a coabitar com um Parlamento ainda mais hostil a ele.

Desde 2022, Macron não tem maioria, governando por meio de um controverso dispositivo que o permite driblar votações. Ele tem mandato até 2027 e não pode mais disputar a reeleição, arriscando virar um pato manco se a ultradireita ficar em posição de força —potencialmente colocando Le Pen perto do Palácio do Eliseu.

Em 1997, Jacques Chirac também dissolveu a Assembleia Nacional e foi obrigado a engolir cinco anos de coabitação com a maioria de esquerda. Quando o pleito presidencial de 2002 chegou, contudo, o premiê socialista Lionel Jospin foi tirado do segundo turno por Jean-Marie Le Pen, pai de Marine.

O impopular Chirac então surfou o pânico que emergiu no eleitorado francês e se reelegeu com facilidade no segundo turno. Essa parte da história Macron não poderá testar, dado que está no seu segundo mandato.

Com tudo isso, o presidente vê seu plano de se tornar a referência da Europa, ocupando o posto que deveria ser do cinzento premiê alemão, Olaf Scholz, abortado para tratar de questões mais urgentes em casa. O sistema dual francês ainda dá muito poder ao presidente, mas sua credibilidade saiu bastante arranhada.

Neste ano, o francês tomou para si o papel de principal rival de Putin e sua guerra. Sugeriu enviar tropas para Kiev e aumentou a ajuda militar no momento em que os Estados Unidos titubearam. O russo não se fez de rogado, lançou mão de exercícios de ataque nuclear e retórica inflamada. Não por acaso, o Kremlin disse nesta segunda (10) que acompanharia com interesse a eleição antecipada.

Até como um boxeador pronto para a briga o midiático Macron se vendeu, numa postagem de internet. Em vez de Putin, quem acertou-lhe um cruzado acabou sendo Le Pen, e o título de campeão europeu da temporada poderá acabar nas mãos improváveis de Giorgia Meloni.

A premiê italiana serve de modelo para Le Pen, aliás: surgiu como uma ameaça de ultradireita, cercada por radicais, e moderou bastante suas posições. Para quem temia um rompimento eurocético da sempre turbulenta Itália, Meloni entregou previsibilidade e até se opôs a Putin, visto com bons olhos no seu círculo de aliados.

Le Pen, que já teve associações obscuras com o Kremlin sob escrutínio, por sinal também distanciou-se do presidente russo nos últimos anos. Sua colega italiana, cujo partido liderou a votação local para o Parlamento Europeu, agora é a peça central para determinar a permanência ou não de Ursula von der Leyden à frente do braço executivo do bloco, a Comissão Europeia.

No mais, o pleito decantou o momento de ascensão da ultradireita pelo continente, embora isso precise ser temperado com particularidades locais. Ainda assim, a corrente política se consolidou em locais como Hungria e Áustria e avançou na Espanha.

Pela evidente associação histórica com o nazismo, o caso mais chamativo é o da AfD (Alternativa para a Alemanha, na sigla germânica). Além do segundo lugar no pleito europeu, a sigla deve ganhar em pelo menos 3 dos 8 estados que tiveram eleições locais.

O partido se alimenta de votos de protesto, não por acaso vencendo nas regiões da antiga Alemanha Oriental, mais pobres. O extremismo da AfD é mal disfarçado, tanto que nesta segunda vários candidatos radicais foram retirados da lista do partido para evitar impugnações, assim como a simpatia de vários de seus integrantes pela Rússia.

O fenômeno vale, em menor escala, do outro lado do espectro político. Um micropartido criado em janeiro a partir de uma costela do A Esquerda, a BSW (Aliança Sahra Wagenknecht na sigla alemã, batizada em homenagem à sua líder), ficou em quinto lugar nacional, com 6% dos votos projetados.

A BSW é uma salada de frutas ideológica: é de extrema esquerda econômica, ultraconservadora nos costumes, anti-imigração, contra políticas verdes e russófila, lembrando a admiração que Putin gera em setores da esquerda brasileira. Mais do que tudo, é um partido antissistema, como a AfD.

Ainda na Alemanha foi visto o derretimento do Partido Verde, que perdeu espaço em toda a Europa e voltou ao patamar de representatividade de 2014 no Parlamento Europeu.

Isso significa desafios adicionais à ambiciosa agenda de redução de emissão de carbono do bloco, que quer zerar a conta em 2050, e mostra a eficácia do discurso da ultradireita para o chão de fábrica no continente.

Por fim, como um nada menosprezível prêmio de consolação a quem preza estabilidade, resta evidente que, apesar dos impactos locais dos ventos eleitorais, a centro-direita segue firme no leme europeu.

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