Pe�a em cartaz em S�o Paulo rel� Garc�a M�rquez em chave farsesca
RESUMO Autora analisa o espet�culo "Solid�o", que est� em cartaz em S�o Paulo e � inspirado em romance de Garc�a M�rquez. Cr�tica destaca op��o da montagem pelo registro burlesco, que real�a o absurdo do enredo original e a caracteriza��o que se pretende fazer da barafunda sociopol�tica da Am�rica Latina.
O que se costuma chamar de realismo fant�stico seria, em algumas culturas, somente realismo, j� disse o encenador argentino Rafael Spregelburd, um dos expoentes do teatro de Buenos Aires. Ele se referia �s sociedades latino-americanas em que o ins�lito e o absurdo s�o moeda corrente, ocorr�ncias corriqueiras –vide os Congressos que legislam sobre mat�rias de interesse de seus integrantes.
Em contextos nos quais o sistema democr�tico representativo � posto em xeque e o patrimonialismo se afirma periodicamente como padr�o, a defini��o tradicional de realismo s� pode sucumbir.
Assim certamente intuiu Gabriel Garc�a M�rquez (1927-2014) quando escreveu "Cem Anos de Solid�o", romance que o grupo paulistano Folias d'Arte toma como ponto de partida para a montagem "Solid�o", em cartaz at� 23 de abril na sede da companhia.
Cem Anos de Solid�o |
Gabriel Garc�a M�rquez |
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Num galp�o quase prensado pelo concreto do Minhoc�o, no centro de S�o Paulo, a trupe reaviva a m�tica Macondo do escritor colombiano. A encena��o � regida pela desordem e por uma progress�o temporal n�o linear, afeita a idas e vindas.
Na transposi��o do livro para o palco, sobrevivem figuras ic�nicas (como o coronel Aureliano Buend�a e sua irm� Amaranta) e acontecimentos memor�veis, como os quatro anos de chuva. O grupo se serve do universo fabular m�gico do original e dos espectros que o habitam para abordar quest�es pol�ticas do presente que aproximam os pa�ses latino-americanos, sobretudo as consequ�ncias do passado colonial e dos regimes ditatoriais sobre as democracias vigentes.
N�o h� inten��o de reconstituir cenicamente a hist�ria dos Buend�a; fra��es de personagens habitam cenas desconjuntadas que apenas remetem � narrativa de Garc�a Marquez.
A dramaturgia ordena os fatos n�o "no tempo convencional dos homens", mas concentrando um s�culo de epis�dios cotidianos, de maneira que todos coexistam num mesmo instante, como o coronel Aureliano diz dos escritos premonit�rios do cigano Melqu�ades encontrados ao fim do livro.
Esse presente cont�nuo e sem localiza��o geogr�fica exata refor�a um encadeamento vago pr�prio da mem�ria e a sensa��o de eterno retorno –desta vez, como predisse Marx, como farsa.
A partir da matriz liter�ria, a encena��o incorpora outros signos, como a �rvore � qual foi preso "o primeiro da estirpe" Buend�a, �nico elemento fixo no palco, que deixa rastro visual semelhante a "Esperando Godot". Tamb�m h� uma alus�o ao mito de S�sifo, na imagem de um grande novelo carregado de um lado a outro do cen�rio, sem prop�sito claro ou sentido alcan��vel. Entretanto, as refer�ncias mais fortes v�m de um teatro popular de plasticidade dominantemente mambembe e burlesca.
ERUDITO E POPULAR
Essa concilia��o entre erudito e popular est� na raiz do grupo dirigido por Marco Ant�nio Rodrigues, que articula os dois segmentos para compor um teatro politicamente engajado contra a mercantiliza��o da vida (e da arte).
Ao se apropriar da Macondo de Garc�a Marquez, o que a trupe faz � mostrar o quanto as derivas l�gicas, os contrassensos que parecem ritmar o dia a dia do continente latino-americano n�o s�o circunstanciais, intermitentes, mas sim elementos estruturais das sociedades aninhadas nessa regi�o.
A suposta irracionalidade (ou passionalidade) latina, mal vista na compara��o com o modelo de racionalidade europeia, � celebrada na dramaturgia de S�rgio Roveri, que institui, ao menos naquele per�metro ficcional, a l�gica da "cumbia". O contagiante ritmo popular da Col�mbia, que mistura influ�ncias africanas, ind�genas e espanholas, abre e conclui o espet�culo, como a simbolizar a �ltima for�a que resta �quele povo na luta por seus direitos.
A encena��o � pontuada por analogias com a conjuntura sociopol�tica latina (entram em cena, por exemplo, o coronelismo e a esperan�a na for�a coletiva popular), convidando o espectador a efetuar suas pr�prias opera��es metaf�ricas.
Esses paralelos constituem um emaranhado de fios soltos, um caos farsesco de que a dire��o se vale para denunciar o rid�culo de uma sociedade que n�o se pode levar a s�rio, dado que � marcada por vulgaridade e infantiliza��o.
Se, como � sugerido em cena, o ritmo que se dan�a at� cansar o corpo � o mesmo que pode impelir � a��o, h� que considerar, de forma an�loga, as manifesta��es culturais (como o teatro) por sua pot�ncia de despertar os homens ou de lhes servir de son�fero –quando contribuem para o embrutecimento da sensibilidade.
As duas possibilidades (a do est�mulo � a��o e a do entorpecimento pela arte) duelam no palco de "Solid�o", onde a insist�ncia na atualidade da utopia mostra sua fragilidade.
Quando se brada que "nenhuma arma ou for�a poder� derrotar um povo que decide lutar por seus direitos", por exemplo, oculta-se qu�o complexo � alcan�ar um consenso a respeito do que sejam tais direitos e de como obt�-los.
COREOPOL�TICA
A pe�a encontra mais for�a na pot�ncia est�tica dos coros, do coletivo. A m�sica � usada como elemento agregador a possibilitar uma coreografia –esp�cie de "coreopol�tica" que une corpos e vozes em um movimento comum para a realiza��o de uma utopia.
Tal projeto c�nico-pol�tico passa pela reabilita��o da imagina��o como saber –de acordo com o fil�sofo italiano Giorgio Agamben, "hoje eliminada do conhecimento como sendo irreal, [a imagina��o] era para a Antiguidade o meio por excel�ncia do conhecimento", ao mediar entre o sens�vel e o intelecto.
Imagens indel�veis como a da mulher que come terra, a da virgem que costurou a pr�pria vagina ou a do homem nu carregando no colo um grande bloco de gelo representam o conjunto de solid�es que formam uma sociedade. Concatenados, esses fragmentos mostram como o salto de projetos individuais para ambi��es coletivas sempre esbarra na desraz�o do outro.
Em uma sociedade atravessada pela crise dos sistemas representativos e perceptivos, h� uma tend�ncia crescente em ver est�tica e pol�tica como indissoci�veis. N�o � toa, as ideias do fil�sofo franco-argelino Jacques Ranci�re est�o entre as mais repercutidas nos estudos sobre teatro, cinema e outras artes.
� a� que desponta uma das marcas distintivas do espet�culo do Folias dentro do panorama do teatro pol�tico que se faz hoje no Brasil. A perspectiva do grupo paulistano � menos europeia e mais p�s-colonial, enfatizando o papel da express�o popular e da cultura latino-americana como matrizes de um pensamento cr�tico sobre a sociedade.
Enquanto outras companhias enfrentam a crispa��o do pa�s com procedimentos documentais, historiogr�ficos, metalingu�sticos, pela disseca��o ou refuta��o dos discursos oficiais, o Folias responde a ela com uma f�bula farsesca, investindo na imagina��o ut�pica.
LUCIANA ROMAGNOLLI, 34, � jornalista, cr�tica de teatro e editora do site Horizonte da Cena
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