Julián Fuks

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Opinião

Das estranhezas do corpo humano e a impermanência do que somos

De tempos em tempos, não saberia dizer de quantos em quantos, volto a descobrir como se fosse a primeira vez. Aconteceu anteontem: lendo para a minha filha um livro simples sobre o corpo humano, descobri de novo que somos seres transitórios, que antes mesmo de partirmos do mundo nossa existência é instável, dúbia, incerta, que quase tudo o que acreditamos que compõe o nosso corpo morre e nasce continuamente.

Trilhões de células surgindo em algum ponto interno, trilhando camada por camada seu caminho corpo afora, para então se atirarem de nós e se tornarem pó: eis a pele. Nossa última capa, aquela que encontra o outro, é morta. Quem nos toca, quem acaricia o nosso rosto, quem afaga os nossos cabelos, quem entrelaça seus dedos nos nossos dedos, toca algo de fenecido em nós, toca o que alguma vez fomos.

Trezentos milhões de células nascem em nosso corpo a cada minuto: a cada minuto lutamos para reexistir em ritmo frenético. Especula-se, ainda que equivocadamente, que a cada sete anos o corpo se renovaria quase por completo. Que chance única para se tornar outro, para se desvencilhar de mágoas, turvações, tristezas. Se quase nada do que sou estava em mim há alguns anos, então por que eu deveria permanecer fiel aos meus hábitos, meus vícios, minhas manias, por que estaria condenado a ser sempre eu mesmo? E, ainda assim, talvez me caiba repetir eternamente os meus erros. Se sou outro a cada momento, como julgar que aprendi, alguma vez, alguma coisa?

E, no entanto, o livro seguia a explicar, algumas células não se renovam, nunca se regeneram, nos constituem a vida inteira. Há algo que permanece: células musculares cardíacas e neurônios em nosso cérebro. O coração e a mente, isso pouco me surpreendeu. Já há séculos a humanidade suspeita que seria isso o que melhor nos define, que no coração e na mente moraria aquilo que se quis chamar de alma. É neles que vivo eu, é neles que minha filha vive, me confortei, considerando que não somos assim tão perecíveis.

Minha filha reclamou do silêncio, acho que me distraí enquanto lia, me perdi um tanto nesses devaneios. Pedi que me perdoasse, sem saber bem por quê. Pedi nova chance na leitura, em nossa descoberta conjunta do corpo humano e suas estranhezas. Pedi com tranquilidade absoluta, com a certeza de que muitas vezes ainda o descobriremos, já novos, já outros, ela e eu.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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