Julián Fuks

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Opinião

O colo como esconderijo, abrigo contra as tristezas do mundo

Entre as tantas conveniências de um bebê, pouco se tem ressaltado seu papel de anteparo social para um pai por vezes tímido, ensimesmado. Fala-se com razão que um bebê aconchegado no colo pode ali encontrar seu lugar no mundo, sua casa, sua cama, seu esconderijo. Destaca-se menos o que ele oferece em contrapartida, o ligeiro desvio no olhar dos outros, o antídoto contra a insensatez de se estar em público, o sentido para uma existência que talvez se intuísse vazia. Bem acomodado rente ao peito, ocupando por completo um braço, um bebê pode funcionar ainda melhor que uma cerveja para que um homem se sinta em paz no espaço, num bar qualquer, num encontro entre conhecidos.

Pessoalmente, nunca tinha vivido nada parecido até que me tornei pai, até que minhas filhas passaram a habitar os meus braços, por longas horas a cada dia, em anos sucessivos. Sabe-se que o bebê se confunde com a mãe nos seus primeiros tempos, pouco percebe seus limites, desconhece a fronteira entre os corpos até o dia incerto em que começa a se distinguir. Com um pai o movimento pode ser inverso: seus corpos se estranham num primeiro momento e então vão pouco a pouco se fundindo, vão inventando uma unidade improvável, a cabeça colando ao ombro, as pernas aderindo ao quadril. E então dá-se o mesmo desfecho: um dia as filhas se cansam do descanso, lançam-se ao chão com ímpeto aventuresco e já não voltam senão por breves lapsos, doravante insuficientes.

Minha mais nova libertou-se há pouco, deixou-me sozinho com estas ruminações um pouco bestas. Tem quatro anos e já decidiu se emancipar de mim, escapando vida afora com seu riso desabrido. Ao menos tem a generosidade de retornar de quando em quando, já não tanto ao colo, que deve julgar anacrônico, preferindo se aproximar com brincadeiras mais sutis. Ainda se diverte sobre meus ombros, pairando acima do mundo, ainda se prende às minhas costas quando apressamos um trajeto, também tem gostado de caminhar sobre meus pés, na mais antiga diversão entre pais e filhas. Às vezes envolve minha cabeça com seus braços, cola a orelha em minhas têmporas e diz que quer ouvir meus pensamentos. Eu me empenho então em alongar qualquer raciocínio silente, para que ela fique ali o máximo tempo possível.

A mais velha chegou a outro grau de maturidade. Aos seis anos, quase sete, já não precisa matar em si mesma o apego pelo pai, já sabe que pai e mundo não rivalizam, não precisam ser inconciliáveis. Pede meu colo algumas vezes, tenta se encaixar como se encaixava quando bebê, mas os corpos já não o admitem, sobram ossos contra ossos, estamos ambos um pouco sem jeito. Os dois temos consciência de que esse é um gesto apenas nostálgico, uma simulação de colos passados, que estou fingindo ser um pai que já não sou, que ela está fingindo ser a filha que já não é. Ainda assim seguimos, eu a contenho nos braços por alguns minutos, carrego-a a um destino indiferente, mas estamos ambos com um meio sorriso, misto de ironia e prazer.

Só em uma situação recupero de fato o velho sentimento, volto a ser o pai pleno fundido às minhas filhas, em paz no espaço, redimido da minha existência porventura vazia. Vale-me muito quando estou triste, mas triste de não ter jeito. Acontece quando elas adormecem longe de suas camas, em casa alheia, no banco do carro, no sofá da sala. Então me cabe recolher cada uma delas com o antebraço, acomodar sua cabeça em meu ombro, sentir seu peito palpitar contra meu peito, muito suavemente. Por um átimo estamos entregues a essa que alguém já disse ser a mais essencial das experiências, esse íntimo abraço, eu comovido com a rediviva paternidade corporal, elas de todo relaxadas, ainda tomadas por imagens oníricas, habitando um mundo que flutua entre o sono e a vigília. O colo delas é então minha Pasárgada.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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