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‘Demandismo’ ou litigância predatória na mira do STJ

Audiência pública discutirá como definir uma tese de aplicação geral para magistrados lidarem com crescimento do assédio processual

STJ
Edifício sede do STJ / Crédito: Divulgação/STJ

A criatividade humana move o mundo. Para o bem e para o mal. O ajuizamento de ações em massa, idênticas, sem um conteúdo preciso, sempre narrando situações hipotéticas contra um mesmo réu, na expectativa de que “se colar, colou” é uma dessas criações humanas desenvolvidas para o mal.

Demandismo ou advocacia predatória ou assédio processual, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), consiste na provocação do Poder Judiciário mediante o ajuizamento de demandas massificadas com elementos de abusividade ou fraude.

Trata-se de prática que veio crescendo desapercebidamente no meio jurídico, mas que, agora, ante o volume que tomou, passou a ser objeto de atenção por parte da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por meio de seus Tribunais de Ética que examinam e julgam processos administrativos disciplinares contra os advogados, e por parte do Poder Judiciário, que começa a tomar uma ação organizada para coibir essa prática em âmbito nacional.

Nesse sentido, a recente convocação pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) para uma audiência pública, com início em 4 de outubro, para discutir o Tema de Recurso Repetitivo 1.198, que tem por fim definir uma tese de aplicação geral a todos os processos sobre a “possibilidade de o juiz, vislumbrando a ocorrência de litigância predatória, exigir que a parte emende a (petição) inicial com a apresentação de documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas em juízo.”

O resultado positivo da audiência orientará o magistrado, com base no Poder Geral de Cautela previsto no artigo 330, quarto parágrafo do Código de Processo Civil, a inibir uma ação predatória assim que receber a inicial, mediante a determinação da juntada de documentos para complementar a inicial com procuração específica indicando claramente o tipo de ação a ser ajuizada e o nome do réu, comprovante de residência do autor, e documentos que ele, juiz, entenda necessários para a propositura da demanda.

Aliás, isolada e pontualmente, temos visto esse tipo de ordem judicial quando, por exemplo, o magistrado, ante um pedido de concessão dos benefícios da Justiça Gratuita, determina ao autor a juntada de extratos bancários ou holerites dos últimos três meses, de sua carteira de trabalho, da última declaração de imposto de renda, enfim, de alguns documentos que, minimamente, possam justificar o pedido.

Mas, como dissemos, trata-se de ordem judicial pontual, de iniciativa isolada de um ou outro magistrado. Ocorre que o chamado demandismo ou advocacia predatória se sofisticou. Não se trata mais apenas de ações de massa, com petições padronizadas, de conteúdo genérico, e sem fundamentação idônea.

Houve uma evolução dos métodos. Temos visto, no âmbito das companhias aéreas, que passou-se a adotar uma prática de pulverização das ações. Melhor explicando: antes, uma família que reclamava de um overbooking, por exemplo, ajuizava uma única ação.

Hoje, as ações são pulverizadas de acordo com o número de familiares gerando um número maior de ações. O mesmo se diga em relação à perda de um voo de ida e volta. Antes, ajuizava-se uma única ação reclamando ambos os trechos, hoje, certamente para aumentar as chances de ganho financeiro, a prática predatória consiste em ajuizar uma ação para o trecho de ida e outra para o trecho de volta.

O processo judicial eletrônico, o alcance nacional da publicidade nos aplicativos de internet, a facilitação da postulação com a inversão do ônus da prova e a concessão das benesses da justiça gratuita, desprovida de documentação idônea, são facilitadores ao ajuizamento de ações de massa por um mesmo advogado, a um baixo custo e sem a necessidade de provas.

O ajuizamento irresponsável de centenas ou milhares de ações repetidas visando a condenação de grandes empresas, como instituições financeiras e companhias aéreas, em verba honorária de sucumbência e em indenizações por danos morais está abarrotando o Poder Judiciário, em prejuízo de uma célere e boa prestação da tutela jurisdicional, e encarecendo o custo financeiro do processo.

A propositura indiscriminada de ações é fomentada pelo fato de que as ações indenizatórias se tornaram um business lucrativo. Não se visa mais a solução do problema do consumidor, o que muitas vezes foi inclusive solucionado pelos fornecedores de serviço, ainda que tardiamente, mas sim a indenização de danos morais. E mais, esse direito (em regra, direito da pessoa física), muitas vezes é cedido (por meio de cessão de crédito) às Law Tecs (pessoa jurídica), o que desvirtua totalmente o instituto.

Soma-se a isso que as ações são propostas sem que antes seja dada às empresas a oportunidade de resolver amigavelmente a situação. Podemos afirmar que grande parte das demandas são promovidas sem que antes os consumidores procurem as empresas para uma solução.

Afinal esses consumidores estão sendo cada vez mais buscados ativamente por advogados predadores, pelos mais diversos meios, mas principalmente os digitais, sob a promessa de indenizações exacerbadas, em vez de resolver diretamente com as empresas.

Nesse sentido, os advogados predadores estão estimulando demanda judiciais e movimentando o Poder Judiciário sem que as empresas tenham sequer negado o atendimento ou a resolução das situações de cada consumidor. Não há resistência alguma.

A continuar tal litigância desmedida, não haverá funcionários nem juízes suficientes para dar conta de tanta demanda. A iniciativa do STJ decorre exatamente dessa constatação: o demandismo prejudica a celeridade processual, encarece o processo, causa danos à sociedade e, sem sombra de dúvidas, deixa os produtos ou serviços mais caros com o repasse desse altíssimo custo.

Como o Poder Judiciário não pode se recusar de julgar, o demandismo acaba impondo ao Judiciário que trabalhe para uns poucos cujos interesses são evidentemente escusos. Ao que tudo indica, um grande abuso de direito.

O resultado favorável da audiência a ser realizada pelo STJ convocará a magistratura nacional a combater, com base no Poder Geral de Cautela, a prática indiscriminada do “ato ilícito de abuso processual”, nas palavras da Ministra Nancy Andrighi (REsp 1.817.845-MS) que “ocorre quando configurada a má utilização dos direitos fundamentais processuais”.

Importante concluir louvando a iniciativa do STJ e observando que também se faz importante incluir nos debates a necessidade de uma atuação mais enérgica no aspecto punitivo, mediante a condenação da parte e dos advogados que atuam de forma temerária, nas penas da litigância de má-fé (artigos 5º, 80 e 81 do Código de Processo Civil), bem como com a expedição de ofícios aos órgãos competentes para apuração de eventual prática de crime e de infração ética (OAB).

Por outro lado, ainda vale refletir melhor sobre os motivos que levam tantos advogados a investir na indústria dos danos morais, assim como cabe aos Poderes Legislativo e Judiciário avaliar melhor a questão da lide resistida nas demandas promovidas sem que haja a possibilidade da empresa resolver amigavelmente.