• Gabriela Bardusco (@gabibardusco)
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Bia Marcelino (Foto: Divulgação/Victor Balde)

Bia Marcelino (Foto: Divulgação/Victor Balde)

Prioridades: essa é a palavra de ordem para uma vida equilibrada e que siga as coisas que julgamos importantes. Mas, por crescermos em uma sociedade capitalista, sempre fomos condicionados a pensar que para sermos felizes, na verdade, precisamos ter sucesso no trabalho e uma vida financeiramente estável - porém, essa regra claramente não se aplica à todos. 

Beatriz Marcelino, por exemplo, chegou à conclusão que, para ser realmente completa, necessitava entregar seu eu à uma trajetória com propósito e que fosse catalizadora da transformação.  

A fundadora da Reviva, organização que nasceu como ONG em 2013  e que hoje também é uma rede de varejo com os lucros direcionados à projetos sociais, desde sempre acreditou que ajudar o próxima seria sua destinação nesse plano. "[Minha criação] foi muito política, muito voltada para o olhar da desigualdade. É algo até congênito, não sei nem explicar quando foi que eu pensei [em criar a ONG], pois foi muito automático. Quando eu fiz 18 anos, compartilhava essa ideia com amigos de que temos uma responsabilidade como ser humano, uma responsabilidade cívica também. Outra coisa é por vivermos em um país tão desigual e em um mundo tão desigual, onde pouquíssimas pessoas detém mais de 50% dos recursos", a jovem de apenas 25 anos relembra em conversa exclusiva com a Vogue Brasil.

Bia Marcelino (Foto: Divulgação)

Bia Marcelino (Foto: Divulgação)

O que começou como distribuição de marmitas para moradores de rua em São Paulo, hoje se transformou em uma rede de apoio que abrange não só as problemáticas brasileiras, como também os diversos desafios enfrentados na África, continente com o qual Bia sempre teve uma ligação forte. "Quando eu fui para Moçambique foi o momento que tive a certeza disso, porque sabe quando você vive nesse imaginário e você pensa no fazer? Eu sonhava muito com África, daí consegui ir para Moçambique e tive uma sensação de compreensão. Aquela compreensão de quem você é, da sua missão e de que não há espaço para fazer outra coisa", conta ainda. 

Sobre o sonho envolto nisso tudo? Ela explica: "Trabalho em lugares de extrema pobreza e, quando você vê uma criança que come hambúrguer do lixo, é impactante. Um dos projetos que toco fica localizado em uma escola dentro de um lixão, e meu sonho era que essas crianças pudessem ter acesso a comida limpa dentro de casa. Como é mais difícil levar para dentro dessas casas, hoje eles possuem acesso a comida limpa na escola, uma comida com dignidade assim como qualquer ser humano deve comer. Depois, meu sonho foi que essas crianças tivessem algo a mais além disso, que elas conseguissem oportunidades. O Rio de Janeiro não dá oportunidade para as pessoas de conquistarem sua independência e dignidade, então eu sonho com essa autonomia, que essas pessoas possam ocupar a zona sul, um shopping onde tenho loja que é só de gente riquíssima, que elas possam ocupar esses espaços seja como dono de loja, gerente, ou na posição que elas queiram estar. É muito forte você ver uma criança pegar um suco do lixo e olhar para sua vida e ver como não é a mesma. Meu sonho era muito grande e começou a se restringir a essas lutas pequenas, vamos dizer assim. Elas são grandes, mas comparadas ao todo, são mais permissivas, como dar a uma criança uma educação de qualidade".

Bia Marcelino (Foto: Divulgação/Ju Lubini)

Bia Marcelino (Foto: Divulgação/Ju Lubini)

"Em Moçambique, a realidade da violência e desigualdade social é muito menor, pois estamos falando de uma miséria extrema, onde o rico tem dificuldade para ter água encanada. A infraestrutura do país é outra visão. Onde trabalho no Rio, fica a trinta minutos do Leblon, um dos metros quadrados mais caros do país. Em Moçambique não tem para onde fugir, não existe o sudeste para você tentar um emprego. É todo mundo preso naquilo, plantar para comer. Daí não tem água, chove acaba com tudo porque não tem estrutura... Por isso, meu projeto lá é com a mesma ideia do outro, mas voltado também para a realidade deles e o que eles precisam, como alfabetização e a independência da mulher. Hoje a mulher é responsável por toda a estrutura da sua casa, não é reconhecida e ainda é submissa. Em Moçambique é mais fácil trabalhar essa questão da mulher, onde eu posso dar um emprego para ela ao invés de um homem. Eu sempre falo isso, se tiver que escolher a prioridade vai ser sempre da mulher. E nisso, elas transformam seus lares. Transformar a vida de uma mulher não é a mesma coisa que a de um homem, que muitas vezes larga a família e vai viver por ele, é você dizer para ela que em sua casa e ao seu redor vai ser transformado também. Esse posso dizer que é o meu sonho pessoal, que trago para Reviva", completa. 

O percurso de Bia, até então, não só mudou expressivamente as vidas das pessoas com quem a Reviva trabalha através dos projetos, como também a sua própria. Depois de adotar duas crianças africanas, Faisal e Muneza, a filantropa passou à enfrentar um desafio que jamais achou que encararia, o da maternidade. Hoje, além dos meninos, ela ainda passa por sua primeira gestação e reflete sobre os caminhos adiante, ainda muito incertos: "Ainda não consegui pensar em como vai ser a prática dessa rotina. Primeiro porque, quando as pessoas me veem com dois filhos pretos, elas perguntam: ‘E quando você vai ter o seu?’. Já começa ai... A gente fala de adoção e as pessoas levam como um tipo de apadrinhamento, sabe? Mas eu escolhi ser mãe de adoção, não escolhi ser mãe de gerar, apesar de estar nessa situação agora também. Mas o Faisal e o Muneza são meus filhos".

Bia Marcelino (Foto: Divulgação/Victor Balde)

Bia Marcelino e Faisal (Foto: Divulgação/Victor Balde)

Então questionada sobre como descreveria o ato da adoção em suas próprias palavras, ela responde enfática: "Acredito que, como um ato de amor, ela ainda é uma responsabilidade e um compromisso".

Quem conversa com a Bia percebe como ela é apaixonada pelos seus ideiais e como acredita de fato em uma transformação comunitária através do olhar para o próximo. Ela também sempre destaca a ideia de uma vida com próposito. Para a reportagem, ela explica o que isso significa para ela: "Viver além de si mesmo". 

Abaixo, leia a entrevista completa com Bia Marcelino:

Bia Marcelino (Foto: Divulgação/Ju Lubini)

Bia Marcelino e Muneza (Foto: Divulgação/Ju Lubini)

Você fundou a Reviva em 2013. O que te motivou a dar esse passo? Como surgiu a ideia?


Isso foi com base na minha criação, que foi muito política, muito voltada para o olhar da desigualdade. É algo até congênito, não sei nem explicar quando foi que eu pensei, pois foi muito automático. Quando eu fiz 18 anos, compartilhava essa ideia com amigos de que temos uma responsabilidade como ser humano, uma responsabilidade cívica também. Outra coisa é por vivermos em um país tão desigual e em um mundo tão desigual, onde pouquíssimas pessoas detém mais de 50% dos recursos...Então, posso dizer que veio da minha criação. E quando eu fui para Moçambique foi o momento que tive a certeza disso, porque sabe quando você vive nesse imaginário e você pensa no fazer? Eu sonhava muito com África, daí consegui ir para Moçambique e tive uma sensação de compreensão. Aquela compreensão de quem você é, da sua missão e de que não há espaço para fazer outra coisa. Eu já tinha isso, mas a certeza e convicção veio mesmo quando fui para Moçambique pela primeira vez, que foi nesse mesmo ano, em 2013.

Em que momento a sua história – e consequentemente a da Reviva – se encontra com a África? Como algo que começou como distribuição de marmitas aqui em São Paulo se estendeu até esse continente literalmente localizado do outro lado do mundo?


Foram coisas distintas. A Reviva veio da necessidade da contribuição na sociedade. Como eramos bem jovens, começamos com moradores de rua pois era uma situação mais permissiva financeiramente falando. Os processos são mais simples e ai conseguíamos realizar uma vez por semana, ou a cada duas semanas, a distribuição. Já a ida para a África, na verdade, era um sonho meu desde criança. Eu lembro até quando saiu aquele filme ‘A Masai Branca’, que é uma história verídica de uma dinamarquesa que foi viver no Quênia, eu tinha 10 anos e sonhava com África, achava que ia casar com um africano, morar lá em uma vilazinha, em uma aldeia e tal. E nesse ano de 2013, eu conheci uma organização que faz um trabalho humanitário e ai foquei na ideia de realizar esse sonho. Claro, meus pais contribuíram muito para que isso também se realizasse, mas a Reviva já existia. Com esses meus amigos todos, a gente fazia bazar, tenho uma tia que doava roupa, a gente arrecadava roupa para levar para a periferia e fazer bazar com peças de um real, e ai eu ia juntando dinheiro, fazia torta para vender, fiz várias coisas para conseguir realizar esse sonho que, ao mesmo tempo, eu não sabia que ia dar certo com a Reviva, né? Na época, era difícil se imaginar em um outro continente, além dos medos que as pessoas impõem, de que a África é terra sem lei e esses esteriotipos. Então, quando eu fui não foi com a Reviva, foi com essa outra organização, mas eu voltei com o objetivo de trazer para a Reviva o desenvolvimento comunitário. À partir daí foi quando a gente deixou de lado essas pessoas que trabalhávamos na rua... meu pai continuou com esse trabalho, pois ele sempre gostou muito desse contato com pessoas e, por uma questão particular mesmo, ele por muito tempo ainda ia nas ruas, conversava com as pessoas, as levava para centros de recuperação que apoiamos financeiramente até hoje, mas nós já tínhamos um outro olhar. O comunitário que não se enquadrava mais naquele trabalho que fazíamos de entregar roupa e marmita.

Você é uma pessoa privilegiada. De que maneira ter tido contato com a dura realidade de Moçambique te moldou? Qual a importância desse momento na sua vida como pessoa e como profissional?


Eu venho de uma família de classe média, meu pai e meus avôs, pais do meu pai, são pessoas pretas, minha mãe é bem branca então eu sou dessa cor mais clara, mas meu pai teve uma criação branca. A família dele não se reconhece preta até hoje, embora a tataravó dele ter sido escrava, açoitada, enfim, a família renega tudo isso e eu acabei herdando essa criação branca, até por conta da situação financeira que ele tinha. E disso, veios muitos privilégios. Ter um pai que virou para mim e falou: ‘Olha, não vai fazer o que o mercado diz que é para você fazer, vai cuidar da Reviva que eu vou te dar um apoio em casa para isso’. Eu sempre falo que a pior coisa que a gente pode sofrer – quem tem esse tipo de trabalho que eu tenho – é o comodismo. Quando você está em uma classe média que te proporciona muitas coisas, você acaba vivendo para si mesmo. É uma luta para sua vida, para o que você quer. E quando eu fui para Moçambique, foi a oportunidade que eu tive de renegar o que eu poderia viver. Não vou dizer herança financeira, mas essa herança que carregamos do privilégio – embora eu ainda esteja sob esse privilégio. Meu avô, o pai da minha mãe, foi preso político, foi sindicalista com o Lula lá em São Bernardo, não chegou a ser comunista mas era completamente contra coisas materiais, comprar casa, carro, juntar bens, ele sempre distribuiu, então era sempre esse conflito. Um conflito entre a família do meu pai e da minha mãe. Até que Moçambique me clareou essa questão. Foi um clareamento mais moderno, onde eu não posso abrir mão de tudo, eu preciso do capital para transformar as pessoas. Porque os ricos não fazem, quem tem não faz. Então, eu preciso desses recursos para manter financeiramente o que hoje eu faço, para conseguir atingir essa transformação. Mas, particularmente, eu abri mão de muitas coisas. Eu lembro que fiquei um ano usando a mesma saia, o mesmo sapato, entrei em uma questão até psicológica que foi difícil sair e encontrar o equilíbrio. Entrei nisso e só usava o sapato rasgado, comecei a dar aquelas roupas que eu tinha, abri mão de muitas coisas relacionadas a vaidade, até que encontrei esse equilíbrio e pude perceber hoje quem eu sou, o que eu almejo. Tenho uma vida muito boa dentro desse privilégio todo que eu herdei e desse trabalho que tenho, que também posso dizer que é um privilégio, mas foco no que eu almejo. Eu não almejo uma estabilidade financeira, por exemplo. Coisas que antes eram prioridades e hoje não significa nada.

Coordenar uma ONG não é um trabalho fácil, principalmente no Brasil. A Reviva, além de tudo, possui o diferencial de ser uma rede de varejo de expressão, com lojas dispostas em importantes centros comercias do país. Como foi viabilizar essa ideia? Da onde surgiu a inspiração de transformar o projeto em, de fato, um negócio?


Isso foi muito difícil, existiu muita relutância. Eu sou completamente contra esse consumismo louco da nossa sociedade, onde as pessoas compram sem pensar, então demorou muito para que eu pudesse enxergar que nossa saída financeira era isso. Eu ficava devendo para as pessoas, para aqueles parentes com um pouco mais de dinheiro que você acaba pedindo um pouco emprestado mas que não estão nem aí para a causa em si. Daí comecei a ter uma revolta de perceber que as pessoas não faziam genuinamente aquele gesto, o que foi cansativo. Eu ficava pensando em como viveríamos disso, tipo, será que vou ter que trabalhar fora e ter um projeto que é tipo uma caridade, que faço uma vez por ano? Porque trabalhar no mercado tradicional e ajudar pessoas ao mesmo tempo não é tão fácil. Mas tínhamos uma pessoa na ONG, que passou rapidamente por lá, mas que sempre falava de produtos. Acabamos criando uma camiseta certa vez, não lembro exatamente como chegamos na ideia da camiseta, mas começou a dar certo. Daí fomos, já abrimos a primeira loja no shopping como ONG, onde vendíamos também muitos quadros de fotografias humanitárias, até que, depois do primeiro Natal que pegamos e que foi muito bom, eu pude perceber que é o caminho. Eu relutava muito, queria algo democrático porque as pessoas comuns, um segurança, uma senhora da faxina por exemplo, nunca conseguiram comprar uma peça que eu vendo. Então, eu ficava nessa luta com a minha mente política, de ‘eu preciso também vender para pobre’. Mas fui obrigada a também virar essa chave, pois não podemos lutar todas as lutas. Foi difícil conseguir compreender que o ser humano não é soberano, não existe uma soberania em mim que fosse me permitir fazer tudo. Eu tive que escolher um público, vender para a Classe A, e usar essa grana para transformação das outras pessoas, que é o nosso público alvo. Hoje tenho crianças que estudam na escola, que são filhos de segurança, filhos de pessoas que trabalham com faxina, então, ao invés de vender para eles, a gente luta para transformar o mundo dos filhos deles, que eles possam ser além.

Também existe uma busca minha interna por uma coerência. Acho que hoje você ter um varejo, dentro de um shopping, ou você trabalha com mão de obra escrava de produtos importados, ou você vai demorar para fazer dinheiro – como é o nosso caso! Não consigo pensar em vender produtos de mão de obra escrava e para isso não consigo vender para pessoas pobres, pois meu custo de compra é altíssimo. Hoje eu compro uma xícara no preço que grandes lojas de decoração vendem. Então, quando montamos de fato a Casa Reviva como um negócio, nós sentamos para entender qual seria nossa coerência de discurso com a prática. Você fazer dinheiro com mão de obra paquistanesa, qualquer um faz – comprar por centavos e vender por 500% a mais é muito fácil. Por isso grandes lojas reportam faturamentos milionários. Hoje, trabalhamos com pequenos produtores, que são pessoas que vivem do artesanato e que fazem parte de um ecossistema de viver apenas com aquilo, sabe? Às vezes tem fornecedor aqui que fala: ‘Eu não quero vender mais do que eu vendo, para mim está bom produzir só isso, porque também não acredito em ter tanto mais dinheiro’. Então, somos um varejo que tem vários obstáculos para conseguir se manter em pé: fornecedores que não querem crescer, custo que é super alto, e a questão do privilégio já que hoje trabalho com maioria de pessoas brancas. Para 2022, estamos fechando um compromisso de realizar uma abertura maior para marcas de pessoas pretas, mas que também está muito ligado à desigualdade, porque você não pode simplesmente largar seu emprego para fazer cerâmica, por exemplo, isso é uma questão de cor, de classe social. Quem larga tudo para fazer planta seca? Essa pessoa tem dinheiro guardado, tem estabilidade. Então, temos esse olhar muito forte hoje, começamos a confrontar essas questões que para mim é muito importante, sou mãe de dois filhos pretos africanos, por isso essa questão de cor e essas pessoas habitarem todos os espaços para mim passou de ser uma luta pessoal e coloquei como uma questão que toda empresa deve lutar.

Bia Marcelino (Foto: Divulgação/Ju Lubini)

Bia Marcelino e Muneza (Foto: Divulgação/Ju Lubini)

De que maneira o dinheiro arrecadado com as vendas é distribuído aos projetos tocados pela ONG?


Não trabalhamos com lucro, porque a minha responsabilidade com os projetos não é ser só sobre dinheiro. Então, o meu custo de impacto, hoje, é uma despesa administrativa. Na prática, tenho esse coletivo de pequenos produtores, deles eu compro e coloco minha margem em cima, essa margem que coloco em cima é para pagar os impostos e, depois, cobrir todos os custos de despesas daquele espaço. E ai, entram as nossas marcas próprias, por isso criamos a ‘Voz’, uma marca de moda, e a ‘Sinta-se em Casa’, uma marca de bem-estar. Essas marcas entram meio que de graça nesses espaços, então elas não são responsáveis por pagar um aluguel, ou funcionário, só o imposto que incidi da produção. O impacto financeiro vem das marcas próprias: quanto mais roupa eu vendo, mais eu consigo expandir o horizonte da transformação comunitária que realizamos. A gente fala que o coletivo de produtores mantém a estrutura, para que a ‘Voz’ e ‘Sinta-se em Casa’ tragam o impacto financeiro. Criamos uma rede onde nem tudo é responsável por pagar tudo, eu preciso que tenha uma saída ali.

Qual o principal objetivo e sonho da Reviva, e de que maneira você pretende atingi-lo?


Meu sonho é gigante. Trabalho em lugares de extrema pobreza e, quando você vê uma criança que come hambúrguer do lixo, é impactante. Um dos projetos que toco fica localizado em uma escola dentro de um lixão, e meu sonho era que essas crianças pudessem ter acesso a comida limpa dentro de casa. Como é mais difícil levar para dentro dessas casas, hoje eles possuem acesso a comida limpa na escola, uma comida com dignidade assim como qualquer ser humano deve comer. Depois, meu sonho foi que essas crianças tivessem algo a mais além disso, que elas conseguissem oportunidades. O Rio de Janeiro não dá oportunidade para as pessoas de conquistarem sua independência e dignidade, então eu sonho com essa autonomia, que essas pessoas possam ocupar a zona sul, um shopping onde tenho loja que é só de gente riquíssima, que elas possam ocupar esses espaços seja como dono de loja, gerente, ou na posição que elas queiram estar. É muito forte você ver uma criança pegar um suco do lixo e olhar para sua vida e ver como não é a mesma. Meu sonho era muito grande e começou a se restringir a essas lutas pequenas, vamos dizer assim. Elas são grandes, mas comparadas ao todo, são mais permissivas, como dar a uma criança uma educação de qualidade.

Em Moçambique, a realidade da violência e desigualdade social é muito menor, pois estamos falando de uma miséria extrema, onde o rico tem dificuldade para ter água encanada. A infraestrutura do país é outra visão. Onde trabalho no Rio, fica a trinta minutos do Leblon, um dos metro quadrados mais caros do país. Em Moçambique não tem para onde fugir, não existe o sudeste para você tentar um emprego. É todo mundo preso naquilo, plantar para comer. Daí não tem água, chove acaba com tudo porque não tem estrutura... Por isso, meu projeto lá é com a mesma ideia do outro, mas voltado também para a realidade deles e o que eles precisam, como alfabetização e a independência da mulher. Hoje a mulher é responsável por toda a estrutura da sua casa, não é reconhecida e ainda é submissa. Em Moçambique é mais fácil trabalhar essa questão da mulher, onde eu posso dar um emprego para ela ao invés de um homem. Eu sempre falo isso, se tiver que escolher a prioridade vai ser sempre da mulher. E nisso, elas transformam seus lares. Transformar a vida de uma mulher não é a mesma coisa que a de um homem, que muitas vezes larga a família e vai viver por ele, é você dizer para ela que em sua casa e ao seu redor vai transformado também. Esse posso dizer que é o meu sonho pessoal, que trago para Reviva.

No meio de todos os desafios do empreendedorismo e filantropia, você ainda se tornou mãe ao adotar duas crianças africanas, Faisal e Muneza. A maternidade estava nos seus planos? Em que momento esse grande passo se tornou palpável em sua vida?


A maternidade jamais foi um plano. Eu e a maternidade somos ainda bem distantes uma da outra, embora eu já seja mãe. Mas foi um encontro. Com o Faisal, em especifico, foi mais uma responsabilidade, ele estava muito doente. Levei ele para o médico e disseram que ele estava em um nível de desnutrição que não tinha outra consequência a não ser a morte. As pessoas já não morrem mais por fome, você tem uma vida desgraçada por não comer, mas elas não vivem um ano e morreu por fome, porque não comeu. No caso, ele estava nessa realidade. Conversando com o médico, ele disse que era pediatra naquela cidade há mais de 20 anos e que nunca tinha visto uma criança naquela situação. Então, por muitas doenças, pela falta de comida que o corpo não conseguia combater, ele foi ficando muito mal. Quando eu o encontrei ele tinha nove anos e ele tinha tamanho de quatro. Usava roupa de uma amiga minha que tinha um filho de quatro anos. E ai, quando a mãe da Leia, que é uma moçambicana que veio para o Brasil estudar pelo Reviva e que considero sua família como sendo minha, eu falei: ‘Mama, o médico falou que se a gente devolver ele para a vó ele vai morrer. Por mais que proporcionemos a condição financeira, ela ainda cuida de muita gente, e ele não vai ter a condição que ele precisa hoje’. Ai ela falou: ‘Não, então vou cuidar dele como meu filho’. Ela e Papa Alberto reuniu a família e comunicou que tinham ganho mais um irmão, que ele seria seu segundo filho homem. Isso foi por um ano, quando eu voltei no ano seguinte para os trabalhos, minha mãe já vinha me falando que essa criança tinha o propósito de ser meu filho. Ai eu: ‘Magina, agora que estou conseguindo essa independência, viver, um filho vai me prender etc’, essas coisas que quando você não tem um suporte realmente acontece. Mas daí ele me chamou de mãe, não no sentido de Mama, como todo mundo chama, era um mãe tipo ‘te vejo como minha mãe’. À partir daí começamos a construir esse laço, que foi muito difícil para mim, a maternidade na minha vida, a construção de ser mãe. Só não foi mais difícil que gerar, que é pelo que estou passando agora. Mas tive muito apoio da minha mãe, dos meus pais, da minha homeopata... E o Faisal sempre demandou muita atenção na saúde, consegui trazer ele para cá, já faz dois anos, ele ainda tem muitos problemas mas agora que ele está com uma saúde super forte, está grande, com 15 anos, mas ele ainda é pequeno, tem tamanho de 11 etc.

E o Muneza foi diferente. Eu já era mãe do Faisal, já estava me relacionando com o Vitor que hoje é meu marido, e também tinha essa questão: eu era mãe do Faisal, meu companheiro não era pai do Faisal, e o Muneza foi quem trouxe para nós esse laço. Trabalho em um campo de refugiados em Moçambique e acabei conhecendo a família desesperada, que saiu do Burundi fugida de guerra, a mãe foi estuprada por mais de seis homens para salvar, literalmente, os filhos, porque iam matar os filhos e ela ficou na casa para eles fugirem. No rosto dela você consegue ver o quanto ela sofreu. E ela tem cinco filhos e o Muneza tem uma deficiência nos pés, então a gente se dispôs a cuidar dele, senão ele não ia andar e ia ser uma pessoa com deficiência em um país miserável. Era a pior das situações. Então, decidimos cuidar dele. No dia que a família ia embora foi impressionante porque ele começou a dizer que queria ficar comigo para a mãe biológica. A gente se olhou e o meu marido falou: ‘Olha, eu senti a paternidade chegar na minha vida com o Muneza, o que trouxe o vínculo com o Faisal’. E a gente amou o Muneza, assim como dizem, como tivesse saído de mim e então fui falar com a família. Porque ele tem uma família, que vive em um campo de refugiados, mas ele tem uma família e como se adota uma criança com uma família? Daí fui contar para o pai dele o que eu estava sentindo e ele respondeu: ‘Nós somos uma pátria, a África, livre. Vocês do ocidente não são livres, vocês se apegam as pessoas como se elas fossem suas e não deixam viver o melhor que pode acontecer. Nós não. Eu amo tanto o meu filho que sou capaz de entregar ele para você, para ele viver o melhor que a vida pode proporcionar, porque eu sei que a maneira como eu criei ele, ele nunca vai esquecer de quem eu sou, de que fui que fiz ele, e dos irmãos também. Então, quando ele puder ele vai voltar e transformar a minha vida e a vida dos irmãos dele’. Com tudo isso que ele falou eu comecei a chorar porque eu pude entender que existe muitas formas de ser mãe. Essa forma que temos no ocidente mesmo, que é uma coisa de diversos níveis, mas lá é algo profundo, onde você gera e é livre ao mesmo tempo. Você faz, foi você quem fez, mas a pessoa é livre. E foi o vínculo que nos trouxe, comigo e com o meu marido, essa questão de ser pais. E agora estou grávida, que também foi uma grande luta. Eu sou muito difícil de fazer o que eu não acredito, se eu tenho que fazer algo que eu não acredito, eu não faço. Essa gravidez não foi nenhum pouco planejada, foi um grande acidente, assim como eu falo, irresponsabilidade na verdade. Sou a favor do aborto e só segui com a gestação porque o Faisal pediu. Eu fui conversar com ele, porque eu ser branca, meu marido branco, gerar um filho branco com dois filhos pretos, eu só penso quando forem parados pela polícia. O branco não vai ser, e os pretos vão, sabe? Essa violência que tem no nosso país. Meu filho já sofre racismo quando vai em uma loja minha, o segurança manda voltar achando que é menino de rua. Então, como você carrega um filho nessa mesma situação? Onde o branco não vai passar e o preto passa?

Bia Marcelino (Foto: Divulgação/Victor Balde)

Bia Marcelino e Faisal (Foto: Divulgação/Victor Balde)

Como tem sido para você estar à frente da criação de duas crianças negras? Quais tem sido os maiores desafios e as maiores alegrias dessa relação?


É bem conflituoso quando você só ouvia falar dessa questão do racismo, e derepente se pega vendo seu filho passar por essas situações. Já vi racismo com outros relacionamentos que eu tive, pois já namorei com pessoas pretas, e até com as crianças que a gente trabalha, que são na maioria crianças pretas, mas quando é seu filho é uma outra coisa. Dá uma raiva, você não saber o que fazer, porque o segurança que abordou seu filho também é preto e está em uma instituição branca. Então, o que você faz? Bate nele ou no dono do shopping? É muito maior que só aquele momento que ele passou. É bem difícil pelo fato de eu buscar que ele se veja. Meu filho é uma criança africana e nunca sofreu racismo na terra dele, porque lá não existe isso, além de ele ter crescido com referências pretas, nós não adotamos um bebê que ia viver em uma família branca a vida toda. Por isso, ele tem muitas referências. Hoje a gente ainda busca muito os amigos da escola, espaços que ele possa ter pessoas pretas, conversei muito com eles sobre isso e ele disse que tem a referência dele, o africano não se perde em quem ele é, e isso é uma das coisas mais maravilhosas de ser mãe do Faisal. Por isso segui com a gestação, porque ele me pediu. Ele se vê tanto meu filho que me falou: ‘Como você pode negar uma vida que vai ser meu irmão?’. Depois disso, o vínculo materno que criamos é impressionante. Já tínhamos isso, mas depois do bebê mudou completamente a nossa relação, nossa relação como família, a questão dele fazer planos de viver mais no Brasil e outras várias questões. Como a mãe dele morreu quando ele tinha dois anos, ele não foi criado com os irmãos. E o pai também é inexistente... então, acho que ele se ver com um irmão que é dele, ele pode entender a família.

Criar filhos de raças diferentes é algo que te preocupa? Como você tem lidado com esse novo desafio?


Eu mais sofro do que penso no que vou fazer em relação a isso. Ainda não consegui pensar em como vai ser a prática dessa rotina. Primeiro porque, quando as pessoas me veem com dois filhos pretos, elas perguntam: ‘E quando você vai ter o seu?’. Já começa ai... A gente fala de adoção e as pessoas levam como um tipo de apadrinhamento, sabe? Mas eu escolhi ser mãe de adoção, não escolhi ser mãe de gerar, apesar de estar nessa situação agora também. Mas o Faisal e o Muneza são meus filhos. Essa pergunta que as pessoas fazem é ridícula. Então, eu tenho sofrido muito, uma questão que minha médica também fala que é hormonal, onde vou sofrer três vezes mais. Daí só fico pensando em como vai ser. Foi por isso que eu não queria, que relutei tanto, que conversei com o Faisal e expliquei tudo. Até comprei um livro de uma mãe que gerou um filho branco e um filho preto, teve dois relacionamentos e tem filhos de cores diferentes. Eu nem consegui ler ainda porque quando eu começo só choro pensando na desgraça que isso pode ser. Estou tentando ler algumas coisas, mas está muito difícil porque não tem informação de como criar filhos de raças diferentes. 

Bia Marcelino (Foto: Divulgação)

Bia Marcelino e Muneza (Foto: Divulgação)

Adotar é um ato de amor. Nas palavras da Beatriz, como você descreveria a adoção?


Eu sempre ouço as pessoas falarem, quando vão falar de amor, que é além do amor. Bom, eu não consigo entender o além do amor, porque o amor para mim é tudo, ele rompe todas as barreiras, dá suporte, enfim, ele é milhões de coisas. Eu posso dizer que o processo de adoção que eu fiz com o Faisal, por exemplo, não foi uma coisa simplesmente linda como as pessoas postam. Não é algo fácil... não estou nem dizendo o processo burocrático, estou dizendo você entender e viver. Você não esteve com a criança ali nove meses na barriga, entendeu? Onde você está se preparando para ser mãe. Então, ela é complexa, mas ao mesmo tempo acho que ela é de responsabilidade de todas as mulheres. Você pensar que só pode ser mãe ao gerar é errado. A adoção é de grande responsabilidade, porque existem aquelas pessoas que não possuem a oportunidade de concretizar a criação do seu filho, gera e dão, ou são retirados por diversos problemas sociais, e a adoção chega para algumas pessoas e acho que deveria chegar para todo mundo. Todo mundo deveria adotar uma criança, principalmente as pessoas estéreis, que não podem gerar. Acredito que, como um ato de amor, ela ainda é uma responsabilidade e um compromisso. A gente não pode simplesmente descartar essas crianças que estão na adoção. Temos uma responsabilidade sob essas crianças como uma comunidade.

Para finalizar, para você, o que é uma vida com proposito?


Viver além de si mesmo. Tem uma frase de uma camiseta que a gente tem nas nossas lojas que fala: “Se já somos tão nossos, porque não ser um pouco o outro”.