• Beatriz Accioly Lins*
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“Estupro culposo não existe”. Na tarde da última terça-feira (3), estas palavras de ordem foram protagonistas das principais redes sociais. Chegaram aos trending topics no Twitter, viraram figurinha compartilhada em forma de meme e incitaram uma série de reações de feministas, juristas, jornalistas e toda sorte de pessoas que comentam polêmicas povoadoras de debates digitais públicos. 

A frase é uma reação à repercussão do caso da modelo e influenciadora digital** Mariana Ferrer, que teria sofrido uma violência sexual ocorrida em 2018 dentro de uma boate de luxo em Florianópolis. Na mesma terça-feira, o The Intercept Brasil trouxe uma matéria sobre o caso, acompanhada de um vídeo de um dos momentos em que Mariana foi virulentamente interpelada pelo advogado de defesa do acusado durante audiência dada em setembro deste ano. Na matéria, há também uma análise da sentença. 

O caso de Mariana já é discutido há algum tempo em cantões do ativismo digital. A própria tornou o processo público alegando desconfiar de que a influência social e o status econômico privilegiado do acusado estariam impedindo o andamento das investigações. Mariana conta que, em dezembro de 2018, se viu dopada e violada em um dos camarotes da boate. Como provas, foram coletadas mostras de esperma de sua roupa, mensagens trocadas entre Mariana e suas amigas, bem como imagens de uma câmera de segurança. Todo o processo foi marcado por polêmicas e abordagens que colocaram Mariana em situações moralmente vexatórias. Em setembro deste ano, saiu o veredito em favor do acusado.

Na decisão da justiça, André de Camargo Aranha foi considerado inocente, tendo o magistrado responsável pelo caso concordado com o argumento do promotor do Ministério Público de Santa Catarina de que, diante do entendimento de que o réu não estaria ciente da incapacidade de Mariana em assentir a uma relação sexual, este não haveria tido a intenção de cometer um crime. Em outras palavras, André não percebera o estado alterado de Mariana. Por isso, canetou o juiz, esta seria uma situação análoga a um crime culposo, aquele em que não há “dolo”, jargão jurídico que descreve intencionalidade. Sem intenção, entende o magistrado, não haveria estupro.

Na chamada, a matéria do The Intercept Brasil chama a decisão judicial de uma inédita situação de “estupro culposo”. Ao longo do dia, diversos profissionais explicaram que esta figura não existe no direito brasileiro. E, de fato, a expressão não foi sequer utilizada na sentença. No entanto, a reportagem trouxe o termo como uma analogia para explicar a decisão judicial. 

Como pesquisadora em antropologia jurídica especialista em violências contra meninas e mulheres, foi com pesar, mas não surpresa que recebi a reportagem e a discussão decorrente acerca do “estupro culposo”. Em diversas situações ao longo de quase dez anos de pesquisas de campo entre profissionais do sistema de justiça, ativistas por direitos, legisladores e mulheres em situação de violência, encontrei falas, usos e retóricas que colocavam em prática a ideia de “estupro culposo”. Explico.

. (Foto: Getty Images/)

Protesto de mulheres na Avenida Paulista, São Paulo, em 2017 (Foto: Getty Images)

O imaginário social brasileiro sobre estupro é povoado por uma série de estereótipos e mitos do quê consistiria de fato em uma violência sexual. Via de regra, imagina-se que o estupro se dá no beco escuro, diante de um desconhecido e na presença de armas e violências físicas. Aqui, percebam, haveria uma clara intencionalidade do agressor em cometer uma violação. Esse cenário não é impossível. Contudo, os diversos levantamentos recentes que trazem estatísticas de violência sexual no Brasil são taxativos. Grande parte das situações de violação acontecem em casa, na faculdade ou em uma viagem entre amigos. Muitos dos agressores são conhecidos, amigos, parentes e, até mesmo, namorados e maridos. As situações descritas são muito mais complexas do que a imagem do beco escuro que imediatamente nos vem à mente.

O colega que continuou o ato mesmo diante do pedido da menina para que parasse. Aquela situação em que a moça estava tão bêbada que não conseguia esboçar claramente uma resistência diante da insistência do amigo. A mulher que sinaliza para que o namorado não continue, mas este não a escuta. Consentimento desrespeitado, invalidado ou sequer levado em conta como necessário. 

Variações destas cenas são, infelizmente, lugar-comum para quem trabalha diariamente com o assunto. Nestas circunstâncias, com frequência, o acusado, seus advogados e muitos dos seus defensores argumentam que não se trataria de um estupro, que jamais teria sido essa a intenção daquele rapaz, que não haveria tido violência física, que a menina poderia ter interrompido o ato em qualquer momento, que eles já haviam se relacionado antes, que ela mesmo havia conversado com ele normalmente depois do ato, etc. Você sabe do que estou falando, não?

Taí, o argumento de que, sem intencionalidade de violar não haveria violência sexual. O “estupro culposo” não existe na lei, mas é operado como uma retórica bastante comum para se atenuar condutas que não levam em consideração se aquela menina ou mulher de fato estava conscientemente consentindo para aquela interação.

Para haver violência sexual, basta que não haja consentimento de pelo menos uma das partes. Embora a frase pareça de fácil compreensão, na prática, ela ainda precisa que ampliemos e aprofundemos discussões sobre autonomia, direitos e critérios que diferenciem interações sexuais saudáveis, consentidas e mutuamente prazerosas de violação. Na lei brasileira, menores de 14 anos, deficientes intelectuais e pessoas momentaneamente incapacitadas não podem consentir para interações sexuais. Por isso, todo e qualquer ato nesta circunstância é um crime.

"Assim como a 'legítima defesa da honra', que nos anos 1970 e 1980 foi mobilizada para atenuar assassinatos de mulheres nas mãos de seus companheiros, o 'estupro culposo' pode não ser uma figura jurídica, mas é operado como forma de nomear argumentos comuns para deslegitimar denúncias e relatos de violação sexual"

Beatriz Accioly Lins

O promotor e o juiz do caso Mariana Ferrer entendem que o acusado não tinha como discernir se Mariana podia ou não consentir, tirando do réu a responsabilidade de se assegurar de que estava em uma interação sexual desejada, prazerosa e consentida. Ao invés de indagarem ao réu sobre a necessidade de se certificar que Mariana estaria em condições para consentir, jogam sobre ela o ônus de provar que não teria como demonstrar resistência. 

Assim como a figura da “legítima defesa da honra”, que nos anos 1970 e 1980 foi mobilizada para atenuar assassinatos de mulheres nas mãos de seus companheiros, o “estupro culposo” pode não ser uma figura jurídica, mas é operado como forma de nomear argumentos comuns para deslegitimar denúncias e relatos de violação sexual. A noção de “estupro culposo” demonstra a necessidade da ampliação do debate sobre consentimento afirmativo, positivo e consciente.

Protesto contra a cultura do estupro realizado na Avenida Paulista, São Paulo, em junho de 2016 (Foto: Fabio Vieira/FotoRua/NurPhoto via Getty Images)

Protesto contra a cultura do estupro realizado na Avenida Paulista, São Paulo, em junho de 2016 (Foto: Fabio Vieira/FotoRua/NurPhoto via Getty Images)

Não podemos exonerar moral e juridicamente um homem que não “percebeu” que a mulher não tinha como consentir. Deve ser dever de todos e todas que se engajam em práticas sexuais assegurar que todas as partes têm condição de consentir. Em outras palavras, para uma relação sexual acontecer, todos e todas têm que conscientemente dizer sim, bem como verificar se a outra pessoa envolvida também disse sim de maneira consciente.

Beatriz Accioly Lins* é doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, pesquisadora do NUMAS (Núcleo de Estudos Sobre os Marcadores Sociais da Diferença) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenadora de pesquisa no Instituto Avon.

**Errata: Mariana Ferrer nos procurou através do Instagram no dia 4 de janeiro de 2021 e pediu correções nos textos que citam seu caso. Editamos a profissão dela – que é modelo e influenciadora digital e não promotora de eventos como dissemos inicialmente – e o fato de que não foi Mariana que acusou André de Camargo Aranha. O indiciamento foi feito pelo MPSC.