• Manuela Azenha
  • Colaboração para Marie Claire
Atualizado em

Em um famoso reduto da boemia carioca, de repente e para o espanto de todos, entra Clarice Lispector. Era final dos anos 1960 e o bar Antonio's, na zona sul do Rio de Janeiro, reunia artistas e intelectuais como Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos. Quem costuma relatar essa história em entrevistas é o próprio Chico, na época com "uns 22 anos". Foi o primeiro encontro entre ele e a já renomada escritora, que hoje completaria cem anos.

Clarice Lispector por Maureen Bisilliat. Agosto de 1969 (Foto: Acervo IMS)

Clarice Lispector por Maureen Bisilliat. Agosto de 1969 (Foto: Acervo IMS)


Visceral, desconcertante, intimidadora, absolutamente singular. Os adjetivos quase sempre usados para descrever a mulher Clarice o são também para os seus contos e romances.

"Ficou todo mundo impactado com a chegada dela. Clarice era muito reclusa, quase não saía de casa. E era um ser exótico. Muito bonita, com traços orientais, as maçãs do rosto salientes. Lembro que dias depois ainda comentávamos a ida dela ao Antonio's. E quem não estava lá, lamentava ter perdido", contou Chico, por exemplo, para a revista Caros Amigos em 1998.

Mais tarde, Clarice convidou o músico para um jantar na casa dela. Amedrontado, Chico perguntou se podia levar dois amigos para acompanhá-lo: Vinicius de Moraes e o cronista Carlinhos de Oliveira. Clarice concordou, mas avisou que em sua casa não haveria bebida. O trio então tratou de beber o que podia no Antonio's e foi à casa da escritora. Passavam-se as horas, assim como o barato do uísque, e o papo não fluía. "Ela não intimidava só a mim, mas aos outros dois também", disse Chico.

Clarice então comunicou que estava cansada e os convidados entenderam que era hora de ir embora. Não houve jantar nenhum.

A estranheza, digamos assim, tanto no trato social quanto na produção literária, vem desde criança. Com 7 anos de idade, Clarice escreveu diversos textos e os enviou para o suplemento infantil do Jornal do Comércio, de Recife, Pernambuco, mas não conseguiu publicar nenhum. Mais tarde ela diagnosticaria o problema: "As outras crianças escreviam sobre fatos. Eu escrevo sobre sensações".

Primeira edição de

Primeira edição de "Perto do Coração Selvagem", de 1943 (Foto: Acervo Clarice Lispector / Instituto Moreira Salles)


Clarice publicou seu romance de estreia aos 24 anos, "Perto do Coração Selvagem" – era 1943 –, e com ele ganhou seu primeiro prêmio, o Graça Aranha. A crítica literária não tinha sequer vocabulário para analisar o livro. É o que reconhece Antonio Candido numa fala na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) de 2005, edição em que ela foi a escritora homenageada: "[Perto do Coração Selvagem] destoava das tendências que reinavam na literatura. Estávamos em um momento de neo realismo, movimento que fascinou o Brasil com o sentido mais documental do romance e uma linguagem mais direta. Por outro lado, havia um romance introspectivo, de análise interior dos problemas do homem. Clarice não era uma coisa nem outra, era uma coisa nova. Na época eu não tinha vocabulário para definir isso, mas hoje eu definiria da seguinte maneira: enquanto os outros livros davam a impressão de que a função comunicativa estava em primeiro plano, no de Clarice a função poética era o mais importante. A realidade, tanto interior quanto exterior, transformava-se em um caso de linguagem".

"Precisamos de Clarice para sair do isolamento – usando um termo tão próprio dos nossos dias –, mas um outro tipo de isolamento: o narcísico, o de não percebermos o outro"

Yudith Rosenbaum

Yudith Rosenbaum, professora de literatura brasileira da Universidade de São Paulo (USP) e autora dos livros "Metamorfoses do Mal: uma leitura de Clarice Lispector" e "Clarice Lispector", dá alguns exemplos do impacto de inovações linguísticas da escritora . Clarice juntava substantivos com adjetivos em combinações fora da ordem convencional, como "náusea doce", "horrível mal estar feliz", "nada vivo e úmido", "felicidade insuportável", "alegria difícil".

"Cada expressão dessa e o mundo treme, o mundo das coisas que são unidirecionais, dicotômicas. Ela bagunça tudo e faz a gente pensar. Mostra outras perspectivas. Clarice é do campo da desordem, quer perturbar, tirar o leitor da acomodação. Essa é a importância dela ainda hoje: precisamos de Clarice para sair do isolamento – usando um termo tão próprio dos nossos dias – mas um outro tipo de isolamento: o narcísico, o de não percebermos o outro. Ela põe em xeque o quanto nos sentimos senhores da nossa própria casa, que é a nossa psique. Nos põe diante do nosso desconhecido mundo interno e do desconhecido mundo do outro. Nos tira desse lugar anestesiado e alienado. Provoca perturbação, não vem para apaziguar, vem para nos acordar. Como se vivêssemos um sono meio sonso, como ela diz. Ela surpreende, espanta, faz isso com as personagens e nos leva à perplexidade".

Yudith comenta, por outro lado, da experimentação da linguagem da autora, algo que não se via naquele momento. "Ela trazia uma valorização da palavra, do signo linguístico, como se ele fosse portador de verdades e mundos que só poderiam vir à tona se tentasse reorganizar nossos códigos linguísticos. Fez  romances que começam com seis travessões, terminam com seis travessões, começam com vírgula, terminam com dois pontos; contos que começam com adversativa 'mas'. O que ela chama de 'amor' não é o que o senso comum chama de amor, o que ela chama de 'mal' também não."

. (Foto: Acervo Clarice Lispector / Instituto Moreira Salles)

(Foto: Acervo Clarice Lispector / Instituto Moreira Salles)


A professora destaca duas obras da escritora como principais marcos literários: "Laços de Família", de 1960, no gênero de contos, e o romance "A paixão segundo G.H.", de 1964.

"'Laços de Família' é uma obra inovadora e de uma atualidade enorme. De uma forma muito nova, ela conseguiu condensar a realidade da mulher brasileira, da família, do matrimônio e da vida cotidiana. Não é linear, nem cronológica, ela trabalha num tempo interior. Traz uma penetração profunda e microscópica, para a gente olhar as relações que nos aprisionam. Laços de afeto e de união, mas que constrangem, limitam, sufocam. São os dois lados da vida: as grandes paixões, mas também o sofrimento, o desamparo e as nossas carências. Nada dá conta desse desamparo constitutivo. Temos uma falta básica que nada é suficiente para suprir."

"Em termos de romance, 'A paixão segundo G.H.' é uma experiência absolutamente radical da literatura. É um mergulho, um assombro em termos de estrutura narrativa. A protagonista mergulha em si mesma, confronta seus fantasmas e preconceitos. Ela devassa essas camadas, perturba tudo o que quer ser visto como consolidado. Em termos sociais, Clarice viu muito, percebeu muito o que é o nosso país. Ela fala do Rio de Janeiro, da classe média no cotidiano mais prosaico, até que uma coisa trivial acontece e desmorona nosso sistema construído. Ela coloca uma personagem em situação aparentemente estável, mas em qualquer momento tudo pode ruir. A partir daí as coisas se revelam, abrem fendas nesse cotidiano massificado. Fendas são abertas com palavras que façam surgir algo que sempre escapa. Sempre escapa o que ela quer dizer. 'Ouve-me, ouve o silêncio. O que te falo nunca é o que te falo, e sim outra coisa.', ela dizia. A autora chama atenção para as entrelinhas, as lacunas e os intervalos. A escrita não vai dizer tudo, a escrita vai abrir-se para algo que o leitor tem que participar. Ela traz um caminho de consciência, a consciência do que eu não sei, do que eu não conheço em mim. Nesse sentido, ela é sempre contemporânea", diz Yudith.

Nascida Haya Pinkhasovna Lispector na Ucrânia, Clarice chegou com a família ao Brasil em 1922, com apenas 1 ano e 2 meses de idade, em Maceió, Alagoas. Logo mudaram-se para Recife, onde ela viveu até a morte da mãe, para depois ir ao Rio e cursar a faculdade de Direito. Lá conheceu o futuro marido, o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem ficou por 15 anos e pôde morar em diversos países. Ao divorciar-se, mudou-se para o Rio de Janeiro com os dois filhos e voltou a trabalhar como jornalista para complementar a renda – ocupação deixada de lado enquanto esteve casada.

Além de ser um dos maiores nomes da literatura brasileira, Clarice foi uma das primeiras jornalistas mulheres do país, afirma o norte-americano Benjamin Moser, autor da biografia "Clarice,", publicada em 2009. Ela começou a profissão em 1940, na Agência Nacional. "Esse é um fato esquecido da trajetória dela. Não tinham mulheres nas redações quando começou. Tem até uma carta de recomendação de um chefe dela que diz que, ao contrário da maioria das mulheres, ela sabia escrever".

. (Foto: Acervo Clarice Lispector / Instituto Moreira Salles)

(Foto: Acervo Clarice Lispector / Instituto Moreira Salles)


A jornalista Marina Colasanti foi editora do Jornal do Brasil e responsável pelas crônicas de Clarice. Em uma entrevista à TV Cultura, conta que ninguém na redação sabia lidar com a escritora. Se Clarice ligasse, logo transferiam a chamada para Marina atender. "Todo mundo tinha medo de falar com ela. Clarice fazia grandes pausas, aí quando você ia entrar na conversa, ela retomava. Não dava para saber se tinha terminado ou não".

Foi Marina quem apresentou Clarice à cartomante que a inspirou a criar Madame Carlota, personagem de seu aclamado livro "A hora da estrela". Ao jornal Estado de Minas, a jornalista diz que Clarice entrou em "delírio" quando soube da indicação da profissional e logo quis conhecê-la.

Sobre uma cartomante (não se sabe se a mesma que inspirou a personagem de "A hora da estrela"), a escritora Lygia Fagundes Telles relatou à TV Cultura uma história de um dia em que ela e Clarice estavam a bordo de um avião a caminho da Colômbia para um encontro de autores latinoamericanos. Lygia estava apavorada com a forte turbulência e Clarice falou na habitual seriedade, com a dicção de língua presa muitas vezes confundida com um sotaque: "Não tenha medo. Minha cartomante disse que eu vou morrer na cama". 

A expressão séria era outro marco de Clarice. Lygia contou nessa mesma entrevista que a amiga a admirava e sempre elogiava o que ela escrevia, mas a aconselhou: "Você só tem um defeito, ri muito. Os homens não respeitam mulheres que riem. Faça como eu e não ria".

Em setembro de 1966, aos 46 anos, um acidente muda a vida de Clarice. Adormeceu com um cigarro aceso e provocou um incêndio que destruiu o quarto e a deixou com graves queimaduras pelo corpo – em especial a mão direita, com a qual escrevia. Segundo cronologia do Instituto Moreira Salles feita por Nadia Gotlib, autora de "Clarice: uma vida que se conta", a mão só não foi amputada pelos médicos graças à intervenção de uma das irmãs da escritora, que pediu que esperassem mais um dia. Clarisse passou três dias entre a vida e a morte, e dois meses hospitalizada.

Nas palavras de Benjamin Moser, ela foi dormir jovem e acordou velha. "O impacto da queimadura foi brutal. Além da parte artística, ela era famosa pelo charme, pela beleza, pela força. Depois do incêndio, passou a ter dificuldades para andar, comer, dormir, precisava de uma companheira para tomar conta dela, ajudar nas compras. Foi uma noite que mudou tudo. Ela morreu 11 anos depois, com 56 anos, de câncer. Ela tinha apenas 46 anos quando isso aconteceu. Foi um divisor de águas na vida dela."

Assim como o jornalismo, a literatura, à época, naturalmente era uma área dominada por profissionais homens. O incômodo com relação a isso transparece em uma entrevista feita por Clarice com Lygia Fagundes Telles. "Antes de começar a entrevista, quero lembrar que na língua portuguesa, ao contrário de muitas outras línguas, usam-se poetas e poetisas, autor e autora. Poetisa, por exemplo, ridiculariza a mulher-poeta. Com Lygia, há o hábito de se escrever que ela é uma das melhores contistas do Brasil. Mas do jeitinho como escrevem parece que é só entre as mulheres escritoras que ela é boa. Erro. Lygia é também entre os homens escritores um dos escritores maiores", escreve Clarice na introdução do texto.

Clarice ter escrito literatura nos anos 1940 já é um grande feito, coloca Yudith. "O lugar da mulher como escritora é uma grande conquista. Uma dona de casa, com filhos, que abriu o espaço para ser uma escritora, se dedicar a isso, acreditar no seu ofício como algo essencial, prioritário. Não fazia nenhuma concessão. Ser escritora sentada na sala com a máquina de escrever no colo, a empregada passando, os filhos brincando. Ela mesma dizia que era uma dona de casa que escrevia. Esse era o ninho dela, a escrita convivia com a vida cotidiana dela."

Em uma entrevista que Clarice faz com o psicanalista, escritor e poeta Helio Pellegrino, a autora pergunta a ele: "Você quereria ter outras vidas? Era o meu sonho ter várias. Numa eu seria só mãe, em outra vida eu só escreveria, em outra eu só amava".