• Adriana Ferreira Silva
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Preta Ferreira (Foto: Divulgação)

Preta Ferreira: atriz, cantora e produtora cultural lança seu primeiro livro(Foto: Divulgação)


Minutos após deixar o palco de sua primeira palestra em São Paulo, Angela Davis abriu sua mochila e tirou de dentro dela uma fotografia de Preta Ferreira, mostrando-a aos que estavam no camarim do teatro do Sesc Pinheiros. Queria saber notícias. Àquela altura, todos tinham alguma coisa a lhe dizer sobre a publicitária, cantora, atriz, produtora cultural e ativista do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC) que, dias antes da chegada da norte-americana, no mesmo outubro de 2019, havia conseguido seu habeas corpus. A liberdade vinha após 109 dias de reclusão, em decorrência de uma acusação, baseada em denúncias anônimas, de que Preta estaria cobrando aluguéis de moradores de ocupações – algo que ela nega. Angela tanto fez que encontrou Preta. Foi à sua casa, festejou, foi festejada e, de pronto, lhe disse: “Quero saber em que posso ajudar”.

“Achei muito nobre ela me dizer isso”, lembra Preta. “A Angela ia me ver na prisão, mas, graças a Deus, não deu tempo. Seria egoísmo da minha parte fazer ela reviver essa dor, porque, eu estando presa, ela também se sentiria assim. Quando uma de nós vai, todas vamos”, diz Preta, lembrando do período em que Angela Davis foi encarcerada, nos anos 1970, acusada de homicídio e, posteriormente, inocentada num julgamento histórico. “Foi um encontro descontraído. Brinquei, fiz palhaçada, falei de amor. A gente sabe como é difícil ser presa injustamente. Não queria que fosse nada pesado.” Mais detalhes da visita ela não conta. Quer que as pessoas descubram os pormenores no livro Minha Carne - Diário de uma Prisão (Boitempo, 178 págs., preço a definir), no qual Preta narra suas memórias e o duro dia a dia na prisão, em meio a poemas e reflexões sobre o racismo e a desigualdade no país – num formato muito semelhante ao qual a própria Angela Davis recorreu em sua autobiografia.  

“Desde criança, sou muito da escrita. Assim que me levaram para o Deic [Departamento Estadual de Investigações Criminais], incrédula, me dei conta de que estava presa mesmo e que precisava escrever para as pessoas entenderem como é passar por isso injustamente. Mas também falo de amor, porque tentam mergulhar a gente no ódio, mas eu saí com o peito cheio de amor”,  diz ela. Terceira de uma prole de oito filhos, a baiana Preta nasceu Janice Ferreira Silva e ganhou do avô paterno o apelido pelo qual é conhecida. Entre as memórias de infância narradas no livro, são marcantes as que descrevem como observava sua mãe, Carmen, que, nas madrugadas, se escondia num canto para ler, longe dos olhos do marido, que tinha “ciúmes” dos romances. Quando Preta completou 10 anos, Carmen fugiu da violência doméstica. Tinha medo de ser assassinada. “Virei dona de casa e fui trabalhar, lavar roupa para colocar comida em casa e cuidar dos meus irmãos”, lembra. Cinco anos depois, Preta e os irmãos se juntaram à mãe em São Paulo. Foi quando se iniciou sua transformação: Carmen já era militante do movimento de moradia e levou os filhos para viverem na tradicional Ocupação 9 de Julho. “Foi esse movimento que me fez acreditar que eu podia ser uma preta acadêmica, fazer faculdade e empoderar outras mulheres. Graças a ele, sou quem me tornei hoje”, diz ela.

Angela Davis e Preta Ferreira: a ativista norte-americana visitou a brasileira em outubro de 2019 (Foto: Pamela Machado)

Angela Davis e Preta Ferreira: a ativista norte-americana visitou a brasileira em outubro de 2019 (Foto: Pamela Machado)

Preta formou-se em publicidade e fez carreira como cantora e produtora de elenco. Quando foi presa, envolvia-se em diversos projetos. “Eu estava produzindo um curta; tinha contrato assinado para atuar numa série da Netflix; ia fazer um intercâmbio em Nova York, que paguei em parcelas há muitos anos; e também me preparava para começar uma pós[-graduação]”, diz ela. Mas o cárcere não a calou. Graças a amigas famosas, como a cantora Maria Gadú, a produtora cultural Lua Leça, a arquiteta Monica Benicio, entre outras, sua voz reverberou. Na unidade onde ficou reclusa, transformou-se numa atração, recebendo visitas de políticos, militantes e da mídia. Uma das entrevistas que concedeu à época foi a Marie Claire, numa conversa que descreve como uma das “mais fortes”: “Até o diretor se emocionou”. Também se mobilizou para ajudar as companheiras de “cela especial” – Preta ficou na unidade destinada às presas com ensino superior. No diário, fala sobre muitas delas. Algumas, segundo ela, presas por injustiça ou cumprindo penas desproporcionais aos crimes cometidos. “Além da questão social, o que leva essas mulheres à prisão é o machismo. Elas vão parar nos presídios por causa dos homens”, diz Preta. “Quando digo que a gente tem de falar sobre necropolítica numa linguagem acessível é a isso que estou me referindo, porque pode acontecer com muitas de nós.”

"Quando fui presa, perdi muito. Mas não posso reclamar, pois estou recebendo o triplo. Muitas outras oportunidades estão vindo por aí e muitas portas vão se abrir. Este livro é uma delas""

Preta Ferreira

Colocou-se a missão de auxiliar essas mulheres, o que tem feito em parceria com a organização social Casa Verbo. “Ajudo as companheiras que saíram a terem uma verdadeira ressocialização. É muito importante pensar em como reinserir na sociedade quem nunca esteve verdadeiramente inserido”, defende Preta. Em paralelo, desdobra-se em mil: além das Lives do Povão, que faz em seu perfil no Instagram (@preferreira), para dar visibilidade a pessoas Brasil afora, entra em estúdio em breve para gravar o videoclipe da música “Meu Caminhar”, do disco em fase de  produção; atua em Receita de Garanguejo, curta que está na seleção do Festival de Cinema de Gramado; e escreve um segundo livro, sobre um garoto de 16 anos, filho de uma companheira de prisão, morto pela polícia com um tiro no peito. “Quando fui presa, perdi muito. Mas não posso reclamar, pois estou recebendo o triplo. Muitas outras oportunidades estão vindo por aí e muitas portas vão se abrir. Este livro é uma delas.”