• Laura Reif
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Senta com talento (Foto: Thuyla Azambuja)

Senta com talento (Foto: Thuyla Azambuja)

“Sentadona, sentandona, sentadona/Fala que é sem sentimento/Mas quando eu sento apaixona”, canta Luísa Sonza no hit de mais de 123 milhões de reproduções no Spotify “sentaDONA” – assim mesmo, com as duas últimas sílabas maiúsculas. A “sentada”, ato de “flexionar as pernas até apoiar as nádegas em assento”, decifra o dicionário, não é exclusividade dos discos de Luísa. Se você deu atenção às músicas mais tocadas no país recentemente, se deparou com uma safra de letras que tratam o sentar. Presente no funk desde os primórdios mais machistas do gênero (vulgo os anos 1990 aqui no Brasil), o termo e suas variações foram cooptados pelas mulheres da cena, que passaram a usá-los em suas criações, literalmente transgredindo o significado da coisa. Se “senta” já foi verbo imperativo com conotação de objetificar mulheres, agora, na voz e no corpo delas, provoca o patriarcado.

Além de Luísa, outras grandes do showbiz pregam a palavra da sentada: Anitta, Pocah, Rebecca, Ludmilla, Lexa e mais. Não à toa, “sentar” passou a fazer parte do imaginário coletivo. Só no TikTok, a #sentada devolve mais de 70 milhões de resultados. A fisioterapeuta Andrezza Cocchiarella (@conselhosdeafroditeoficial no TikTok) e a mestra em dança pela Universidade Federal da Bahia com pesquisa em dança e sexualidade Sofia Seraphim (@sofiashiiu, na mesma rede), de 28 e 27 anos respectivamente, são famosas na rede por dominarem e ensinarem a arte de sentar “com talento”, como diria a cantora Rebecca.

“O poder da mulher assusta”, diz Sofia, que coleciona 290 mil seguidores na rede vizinha e cobra R$ 497 por dez dias de aula, que incluem mentoria de autoestima, exercícios de movimento, técnicas de sentada e alguns bônus para entrar no clima, como contos eróticos. “Criei uma metodologia. Para muitas das mulheres, o quadril é um tabu, mesmo que a gente tenha ritmos para rebolar. Ainda somos sexualizadas e há as que sintam vergonha de explorar isso”, observa.

As professoras brincam que sempre foram as consultoras de sexo das amigas e achavam natural falar sobre o tema, especialmente por atuarem em áreas que envolviam o corpo. Ao notarem as dores em comum das mulheres de seus círculos sociais, acreditaram que era preciso falar para um público maior. Andrezza também direcionou os estudos para a área e cursa pós-graduação em Sexualidade e Saúde, na Unyleya. Apesar das semelhanças, as duas só se conheceram após virarem criadoras de conteúdo.

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Sofia estudou em Minas Gerais e hoje vive na cidade onde cresceu, Catanduva, no interior de São Paulo. Andrezza fala com mais de 2 milhões e meio de seguidores e é do interior do Rio de Janeiro, da Região dos Lagos. Ela, que cobra R$ 199,90 pelo pacote de aulas em vídeo, com direito a exercícios, conselhos e mais de “20 técnicas de sentada pensadas para todos os corpos e encaixes”, logo de cara cita o funk como força motriz que tornou a sentada tão poderosa. Sofia concorda: “Criei até uma playlist para minhas alunas chamada ‘Senta Concentrada’”. A lista reúne 56 músicas no Spotify. E mais do que técnicas para destravar o quadril, as professoras destravam traumas e a libido de suas alunas, muitas  recém-separadas.

Sofia Seraphim  (Foto: @sofiashiiu)

Sofia Seraphim (Foto: @sofiashiiu)

Vânia, de 32 anos, conversou com a reportagem por telefone enquanto cuidava dos dois filhos, de 3 e 8 anos, que pediam pela atenção da mãe enquanto ela compartilhava as conquistas do curso. Depois de seis anos de casamento, se viu solteira e com um dilema: nunca ter gozado – ponto em comum com outras alunas de sentada. “Temos o costume de deixar nosso prazer na mão do parceiro, mas podemos ser nós as donas dele.”

A maior parte das alunas das professoras é mulher cisgênera e heterossexual. Outras se declaram bissexuais e contam que aplicam as técnicas com mulheres, mas todas as entrevistadas lembram que o ponto de partida é sentar sozinha, se tocando e praticando a posição. Elas também comentam sobre sexo casual com homens cis e lamentam que não tinham o conhecimento que têm hoje, sendo donas do próprio prazer sem depender de um ato falocêntrico e, muitas vezes, frustrante.

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“A Sofia ensina percepção de toque e propõe exercícios gostosos, como criar um clima para você mesma. Pode ser uma luz diferente, uma música, usar um óleo, acender uma vela. Nas aulas de toque consciente você percebe as reações do seu corpo e conhece várias opções de prazer. Não é só aplicar uma técnica, parecendo matemática. A questão é você”, conta a advogada Camila*, de 31 anos, que tinha receio em fazer a sentada. “Sou obesa e tinha insegurança justamente em estar colocando o peso do meu corpo inteiro em cima de uma pessoa”, explica, e lembra que fingia cãibras para fugir da posição. “Tinha pavor.”

Ela se beneficiou com exercícios de alongamento, que mostraram sua capacidade de mobilidade e flexibilidade. “Sexo não é só penetração – e ela se torna até dispensável em alguns momentos. Dá para explorar outras partes do seu corpo e da parceria”, diz.

Andrezza destaca a técnica do “coconut”, na qual a pessoa com clitóris que senta replica o formato das letras da palavra com o quadril. “Consiste em fazer o movimento circular sempre com um atrito ali, porque muito do nosso prazer está na estimulação do clitóris”, explica.

 Andrezza Cocchiarella  (Foto: @conselhosdeafroditeoficial)

Andrezza Cocchiarella (Foto: @conselhosdeafroditeoficial)

“Percebi quanto a Andrezza é didática e leva o trabalho a sério”, avalia a psicóloga Juliana*, de 32 anos. “Fazer o curso foi uma consequência da confiança que senti nela. Agora, passei a ensinar mais sobre o que gosto para as pessoas com quem me relaciono. Até com amigas de anos precisamos dizer se ainda gostamos de sair à noite para beber ou se preferimos sair mais cedo e curtir o dia no parque, certo? Por que seria diferente com o sexo?”, questiona. Ela, uma mulher negra, não quis entrar em detalhes sobre a objetificação do corpo preto na sociedade, tema sensível a muitas mulheres.

Decodificando o tesão

O significado da sentada vai além do ato sexual em si, sendo também um comando de dança. “A grande acusação contra o funk é que ele não tem uma inventividade, um pensamento crítico e artístico. Sempre apontaram a repetição dessa palavra. ‘Toda hora é sentar, sentar, sentar.’ O MC não escreve que a mulher faz o quadradinho sem ter visto ela fazendo. Mulheres negras, faveladas, dançam assim e inspiram os MCs. Isso precisa ser dito”, acrescenta a roteirista e diretora criativa da Afrofunk Rio, Taísa Machado, também conhecida como Chefona Mermo.

Ela acredita que o funk ainda tem mudanças sociais para realizar, mas que, com a possibilidade de viralizar e se popularizar cada vez mais, já estamos vendo um pouco do enorme poder que ele tem sobre questões como corpo e sexualidade. “É interessante que intelectuais, formadores de opinião, fisioterapeutas e pessoas ligadas à saúde tenham reconhecido, de fato, essa prática e conseguem se divertir com ela. E não só apontar esse movimento como subproduto cultural”, diz.

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O gênero musical fura a bolha e se une a outros ritmos, brincando com a sexualidade a partir dos movimentos do corpo. “Acham ousadia que a gente decodifique o sentimento de tesão. Quando a galera fala que é algo machista, é porque é difícil aceitar mulheres que escolhem entrar nessa vibe. Da bunda, do rebolado. Já tivemos discussões feministas que ajudaram o movimento a andar para a frente. O grande elefante na sala, porém, é a objetificação do corpo da mulher negra, mas a dança empodera as pessoas. Quando a gente tem a possibilidade de assumir movimentos que gostamos de fazer, nos sentimos poderosas e confiantes. Além de fazer provocação política, pois são corpos que estão sendo subjugados o tempo todo”, completa Taísa.

Senta com talento (Foto: Thuyla Azambuja)

Senta com talento (Foto: Thuyla Azambuja)

A psicóloga e doutora em Psicologia Médica e Social Joana Novaes é coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza da PUC-Rio e comenta sobre a reivindicação da autonomia do corpo feminino em meio a uma cultura onde ele é erotizado. “Em um primeiro momento, o feminismo não tem nada a ver com sexo. A mulher [branca] estava mais preocupada em escolher se queria ter um filho ou em sair para trabalhar. Nisso, as mulheres negras questionam: ‘Como assim, mas quem é que não trabalha?’ A mulher do quadradinho de oito é preta e pobre. Então a questão é falar sobre o corpo de classe para repensar os usos do corpo”, pontua e acrescenta: “Sobre a Anitta nem precisamos falar, não é? A Ludmilla também é ótima, e a sentada [nas vozes delas] é isso: você não está tomando ‘madeirada’, é você que está comendo [o outro] ali. Isso é bem diferente dos [funks] proibidões iniciais [dos anos 1990 e 2000]”.

Apesar da conquista desse espaço, mulheres que cantam livremente sobre dominar a parceria com a sentada ainda acabam tachadas como vulgares. Luísa Sonza foi uma das que bateram de frente com os haters que fizeram campanha de dislikes em seus vídeos com a música “Intere$$eira”. “Puta, vagabunda, interesseira. Eu fazendo meu trabalho e escutando só besteira”, enumera na letra os adjetivos pejorativos que mais lhe foram atribuídos nas redes sociais.

Nadar contra a corrente pode ser um trabalho árduo, mas a proporção que a sentada tomou fez com que o empoderamento sexual chegasse a mulheres que nem sabiam direito do que se tratava a coisa. A recepcionista Cristina* assistiu sua vida virar do avesso ao terminar um casamento de 40 anos, aos 59. Com as duas filhas adultas, casadas e se vendo em um relacionamento sem sexo há mais de dez anos, decidiu que era “hora de viver”. “Na época, disseram para mim: ‘Bem no final da carreira?’ Hoje, com 61 anos, digo ‘minha carreira vai começar agora’”, conta.

Senta com talento (Foto: Thuyla Azambuja)

Senta com talento (Foto: Thuyla Azambuja)

Ela descobriu a sentada por acaso, nas redes sociais, e se inscreveu no curso de Sofia determinada a “reaprender a transar”. Após realizar uma bateria de exames ginecológicos e ver que estava tudo ok, partiu para as aulas e descobriu que nunca havia gozado na vida. “Modéstia à parte, sempre fui muito cantada. Mas nunca fiz nada, afinal, era casada”, diz. Ela recorda que cresceu achando que sexo era um pecado e, por esse motivo, até então, seu único parceiro havia sido o ex-marido. Depois de se sentir segura, praticar sozinha e com “brinquedinhos”, tomou iniciativa para chamar um homem de seu trabalho para sair.

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“Ele tinha 37 anos, a idade da minha filha mais velha”, lembra e dá risada. “Apliquei o que aprendi no curso e foi fundamental para minha confiança”, diz e acrescenta que, apesar de não ter atingido o orgasmo com o novinho, valeu ainda assim “muito a pena”. Agora, está namorando há oito meses com um homem de 62 anos, conquistou o sonhado orgasmo e está muito feliz, obrigada.

“Por ele, estaríamos casados. Pedi para ficar como ‘P.A’. Sabe o que é isso? Pinto Amigo!”, se diverte. “Descobri que existem muitas maneiras de sentir prazer. Qual o problema? São tabus que vão nos colocando na cabeça. Falei: ‘Vou pagar pra ver’. Paguei e vi.”

* As entrevistadas pediram para que seus nomes não fossem publicados