A notícia de que o primeiro transplante de útero bem-sucedido no Reino Unido foi realizado no Hospital Churchill, em Oxford, foi saudada como o “amanhecer de uma nova era” na medicina reprodutiva.
A receptora é uma mulher de 34 anos que nasceu sem útero, e a doadora é sua irmã mais velha, que já tem filhos. A operação foi financiada pela Womb Transplant UK, uma instituição de caridade que angaria fundos para pesquisas sobre os transplantes de útero e que procura fazer desse procedimento outra opção para tratar a infertilidade “nos próximos anos” – isso junto com ferramentas já usadas, como medicamentos, fertilização in vitro e "barriga de aluguel". No entanto, embora o procedimento possa ter potencial transformador para algumas mulheres, há considerações éticas a levar em conta.
O que o procedimento envolve?
O transplante de útero é um procedimento complexo em que uma equipe de cirurgiões remove o útero da pessoa doadora e uma segunda equipe o transplanta para a pessoa receptora. Ambas as etapas do procedimento são operações sérias que duram muitas horas, e pacientes permanecem no hospital por vários dias.
Tanto quem doa quanto quem recebe passa por amplo aconselhamento antes do transplante para garantir sua adequação psicológica. Posteriormente, a receptora deve tomar medicamentos que suprimem o sistema imunológico, evitando que seu corpo rejeite o novo órgão.
Assim que a receptora termina de “usar” o útero, ela é submetida a uma nova cirurgia para removê-lo, para que os medicamentos imunossupressores possam ser descontinuados.
Desde os primeiros transplantes de útero bem-sucedidos em 2012, já foram realizados cerca de 100 procedimentos em todo o mundo, levando ao nascimento de cerca de 50 bebês. Equipes na Suécia e nos Estados Unidos foram particularmente bem-sucedidas no pioneirismo da técnica.
Quem pode se beneficiar disso?
As potenciais beneficiárias do transplante de útero são mulheres que, por razões médicas, não podem engravidar. Cerca de uma em cada 5 mil mulheres nasce sem útero, e muitas outras em idade fértil têm os seus úteros removidos devido ao câncer, miomas, prolapso ou menstruações extremamente abundantes.
Embora as mulheres sem útero ainda possam ser mães genéticas – se os embriões criados a partir dos seus óvulos forem gestados e nascidos por "barrigas de aluguel" –, os transplantes de útero lhes dão a oportunidade de carregar seus próprios bebês e dá-los à luz.
Quão seguro é o transplante de útero?
O procedimento é considerado clinicamente seguro para quem doa e quem recebe, e há muitos dados – de mais de 50 anos de transplante de outros órgãos – sobre a segurança de medicamentos imunossupressores para os fetos de receptoras.
O transplante de útero envolve uma cirurgia séria e um tempo de recuperação significativo, mas o mesmo acontece com muitos outros tipos de cirurgia que são concebidos não para salvar vidas, mas para melhorar a sua qualidade. No entanto, a maioria das outras cirurgias que não salvam vidas não envolvem um doador vivo submetido a um procedimento altamente invasivo com um longo período de recuperação.
Há também algumas evidências de que as mulheres que se submetem à histerectomia – mesmo quando ela não desencadeia a menopausa – podem sofrer de depressão como resultado.
É claro que o aconselhamento pode ajudar a alertar potenciais doadoras sobre esses riscos e pode garantir que o consentimento delas é bem informado. Mas o aconselhamento não consegue eliminar os riscos, e o consentimento por si só não é suficiente para tornar ético um procedimento.
Outro tipo de preocupação com segurança pode surgir em torno do fornecimento de úteros para transplante. Há relatos alarmantes de mercados ilegais de órgãos e de pessoas vulneráveis sendo traficadas para obtenção dos seus órgãos, inclusive no Reino Unido. Quando o transplante de útero se tornar mais difundido, poderão surgir preocupações semelhantes sobre esse órgão.
De forma menos dramática, à medida que o transplante de útero se tornar mais comum, as mulheres poderão sentir uma pressão sutil para doar a familiares elegíveis (muitos dos transplantes até hoje envolveram familiares). Elas até podem exercer essa pressão sobre si mesmas.
Quanto custa esse transplante?
O primeiro transplante de útero no Reino Unido não foi financiado publicamente: uma instituição de caridade cobriu parte do custo de £ 25 mil [cerca de R$ 153 mil] e os cirurgiões doaram o seu tempo. No entanto, conforme o procedimento se tornar mais popular, poderá haver apelos para a sua disponibilização no Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido, incluindo (quando a técnica estiver suficientemente desenvolvida) para pacientes que são mulheres trans; e isto, sem dúvida, gerará controvérsia.
Estamos idealizando a biologia?
Muito tempo, experiência, custos e riscos estão envolvidos em dar um novo útero a uma mulher. Corremos o risco de idealizar a experiência biológica?
Pessoas cujos corpos não conseguem gerar um feto podem vivenciar a maternidade de outras maneiras. Precisamos ter cuidado para que, ao irmos tão longe para tornar possível a experiência gestacional, não estejamos criando uma hierarquia em que essa realidade seja vista como o "padrão de ouro", com a “mera” maternidade genética e social desvalorizada.
Devemos também ter cuidado para não fomentar expectativas excessivamente idealizadas sobre a gravidez e o parto, que podem estar longe da experiência gratificante que pacientes transplantadas claramente esperam. A gravidez pode ser uma experiência desconfortável e que gera ansiedade; e, para algumas mulheres, é traumática, trágica ou seguida de depressão pós-parto. A expectativa de que isso necessariamente melhorará a vida não é realista.
* Mary Neal é professora-adjunta em Direito na Universidade de Strathclyde, no Reino Unido. Especialista em direito e ética médica, ela tem focado suas pesquisas recentes particularmente na lei e na ética do aborto e da morte assistida, na objeção de consciência nos cuidados de saúde e nas questões materno-fetais.
Este artigo foi originalmente publicado em inglês no site The Conversation.