Tubo de Ensaios

Por Daniel de Barros

Daniel Martins de Barros é professor colaborador do Departamento de Psiquiatria da FMUSP, Doutor em Ciências e Bacharel em Filosofia pela USP

As histórias de origem dos personagens da mitologia grega não são coisa de criança. O nascimento do Minotauro é uma dessas narrativas que causam desconforto, para dizer o mínimo. Tudo começou quando Minos disputava com os irmãos o trono de Creta e pediu ajuda para Poseidon.

O deus dos mares lhe enviou um touro, que posteriormente deveria ser sacrificado em sua honra, provando que os deuses estavam ao lado de Minos e lhe garantindo o trono.

Contudo, o novo rei ficou tão encantado com o animal que se recusou a sacrificá-lo, despertando a ira de Poseidon. Como castigo, ele fez a agora rainha Pasífae, esposa de Minos, apaixonar-se pelo touro.

Aí começam os detalhes pitorescos: para conquistar o animal, ela pediu ajuda do engenhoso Dédalo, que construiu uma vaca de madeira coberta com couro, dentro da qual Pasífae se escondeu para ter relações com o touro. Daí nasceu um ser meio homem, meio touro, o Minotauro.

Não é uma cena agradável de imaginar. Relações com animais intuitivamente nos parecem erradas, como demonstrou na década de 1990 o psicólogo social Johnatan Haidt. Em sua investigação sobre como decidimos o que é certo e errado, ele apresentava a voluntários alguns cenários moralmente desafiadores e pedia que dissessem se havia alguma transgressão ali, e, se sim, o porquê.

Uma das histórias era sobre um homem que toda semana comprava um frango congelado, mas, antes de prepará-lo, tinha relações com aquela carcaça. Nunca contou para ninguém, nunca teve problemas por conta disso, não tinha arrependimentos, seguia sendo um cidadão funcional, produtivo, estimado pela comunidade. Quase todo mundo achava que estava errado, porém, como a narrativa é construída, tornava difícil para as pessoas justificarem a razão.

Isso porque, segundo Haidt defende, nossos julgamentos morais são intuitivos — simplesmente sentimos que as coisas são certas ou erradas; todo o raciocínio moral é posterior, apenas para justificar o que cremos.

A tese é interessante, contudo, controversa. Se o raciocínio fosse meramente um serviçal das intuições, estaríamos condenados a ficar presos em eventuais erros de avaliação e impedidos de evoluir em nossos critérios de certo e errado. A deliberação racional é fundamental para superar preconceitos, e uma das grandes responsáveis pela dissidência, que faz avançar a sociedade.

As palavras ética e moral, afinal de contas, vêm dos termos grego e latino para os costumes, a forma como as coisas são; se não raciocinássemos, não progrediríamos eticamente. E os exemplos de coisas que eram aceitas, mas hoje nos soam como inconcebíveis, dão conta de que a humanidade pode não avançar em linha reta, mas é capaz de progredir.

Tais avanços nunca foram muito rápidos, seguindo na velocidade – geralmente vagarosa – de difusão e aceitação de ideias pela sociedade. Isso até as redes sociais dominarem o cenário. Com as pessoas hiper conectadas, uma nova dinâmica de espalhamento das ideias surgiu, aumentando a velocidade com que elas são dispersas e absorvidas. Isto é, dentro das bolhas em que circulam. Fora delas o ritmo segue lento, quando não em sentido até inverso, com ideias opostas brotando de mensagem em mensagem.

A criação dessas subdivisões estanques de pessoas reforçando mutuamente suas visões de mundo em alta velocidade dificulta o estabelecimento dos diálogos cadenciados e reflexivos necessários para criar consensos que avancem a sociedade. Uma nova percepção que talvez representasse um progresso civilizatório se torna objeto de disputa ideológica; a partir daí, em vez da ideia ser examinada, passa a ser cegamente defendida ou atacada, com ambos os lados acreditando ter o dever de eliminar qualquer oposição.

O mesmo acontece com ideias péssimas para humanidade. Em vez de sumirem por não se sustentarem logicamente, elas ganham um exército lutando a seu favor.

Testemunhamos assim a primazia das intuições emocionalmente carregadas sobre qualquer chance de racionalidade no debate público. Tentativas de chamado ao diálogo são condenadas de parte a parte como uma traição ao grupo e qualquer questionamento se torna necessariamente uma provocação.

Parece uma reação um tanto infantil, se pensarmos bem: espernear exigentemente impossibilitando a conversa, abafando a voz de quem não concorda. Tolos somos nós, portanto, se continuarmos entrando nessa cilada. O melhor a fazer é ignorar a gritaria até que seja possível sentar e conversar. Ou até que todos cresçam.

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