• Camila Mazzotto*
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Com pesquisa sobre políticas públicas e endometriose no Brasil, estudante de 24 anos da UFRGS se tornou uma das doutoras mais jovens do Brasil (Foto: Acervo pessoal)

Com pesquisa sobre políticas públicas e endometriose no Brasil, estudante de 24 anos da UFRGS se tornou uma das doutoras mais jovens do Brasil (Foto: Acervo pessoal)

A estudante Manoella Treis estava finalizando um mestrado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) sobre políticas públicas e desastres socioambientais quando foi tomada por dores intensas na região abdominal. Era uma crise de endometriose, doença com a qual lidava há mais de uma década. O incômodo foi tão forte que se tornou o pontapé para o tema de seu próximo passo acadêmico: no doutorado, a cientista social decidiu que iria abordar a forma como a patologia é debatida pelo poder público no Brasil.

E o fez em tempo recorde: defendida em 29 de novembro de 2021, sua tese foi concluída em 19 meses — cinco a menos do que seria o prazo mínimo, de dois anos. O feito rendeu a Treis o título de mulher com doutorado mais rápido pela UFRGS. Segundo o RankBrasil, a pesquisadora de 24 anos tornou-se também a doutora mais jovem do país.

O que levou a gaúcha a mergulhar de cabeça no assunto foi ter identificado que faltavam projetos de lei robustos voltados às brasileiras com endometriose. Ela está longe de ser a única com a condição no país: estima-se que a doença atinja entre 7 milhões e 10 milhões de mulheres em período fértil por aqui. No mundo, elas são cerca de 175 milhões.

A endometriose é uma doença crônica em que o tecido que reveste o útero, o endométrio, cresce para fora do órgão, em regiões como ovários, intestino ou até mesmo na bexiga. A condição causa inflamação e desencadeia dores agudas — como as que Treis enfrentou na noite em que decidiu se aprofundar no tema.

Antes de dar início ao doutorado, a jovem fez uma pré-apuração em bases de trabalhos acadêmicos como Scielo e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para checar se outras pessoas já haviam pesquisado sobre políticas públicas associadas à doença. Mas se surpreendeu com o resultado: não encontrou quase nenhuma referência de estudo na área das ciências humanas.

“Eu queria estudar a endometriose numa perspectiva social-política. Encontrei algumas dissertações voltadas para a sociologia e uma sobre políticas públicas, só que mais voltada para o marketing”, relata a estudante, que é formada em Processos Gerenciais e mestre em Ciências Sociais. “Mas há poucas pesquisas que olham para a agenda governamental do país em torno da doença. Por isso, no sentido de olhar para a articulação por parte dos nossos políticos em relação à endometriose, essa tese é pioneira”, diz a GALILEU.

Políticas públicas voltadas às portadoras de endometriose são especialmente importantes porque, apesar de comum, a doença é considerada um problema de saúde pública subestimado. Se o acesso à informação a respeito da condição fosse ampliado, tanto por parte da população quanto da classe médica, estima-se que o diagnóstico das pacientes, por exemplo, poderia ser mais ágil.

O tempo médio do veredicto varia de sete a dez anos — Manoella foi diagnosticado após sete anos de sintomas. “Infelizmente, a endometriose ainda é uma doença negligenciada, silenciada e não é abordada em vários contextos dentro da nossa sociedade”, avalia a pesquisadora.

Brasil e Austrália

Treis fez um estudo de caso para comparar como essa pauta avançou na agenda governamental do Brasil e da Austrália ao longo dos anos. Enquanto o país na Oceania começou a discutir no congresso políticas públicas para mulheres com endometriose em 2017, o Brasil criou seu primeiro projeto de lei voltado para a conscientização social sobre a doença bem antes, em 2013. 

Mas a Austrália, referência em termos de investimento em pesquisas e projetos sobre o assunto, passou à frente do Brasil: ao final de 2017, o país deu início à formação de um plano nacional voltado para a endometriose, que acomete 700 mil australianas em período fértil. A presença de um discurso unificado e o ativismo institucional foram fatores que contribuíram para a formação da agenda, segundo a pesquisa de Manoella.

No Brasil, conflitos orçamentários impediram o avanço das discussões em 2013. A temática continuou sendo debatida dentro da Câmara dos Deputados nos anos seguintes. Mas as articulações para soluções foram muito poucas, segundo Treis. Houve um hiato entre 2015 e 2019, quando a temática voltou a receber atenção.

Manoella Treis fez um estudo de caso para comparar como políticas públicas sobre endometriose avançaram na agenda governamental do Brasil e da Austrália ao longo dos anos (Foto: Acervo pessoal)

Manoella Treis fez um estudo de caso para comparar como políticas públicas sobre endometriose avançaram na agenda governamental do Brasil e da Austrália ao longo dos anos (Foto: Acervo pessoal)

A autora da tese atribui esse avanço ao aumento da representação de mulheres na Câmara. Desde 2019, a bancada feminina é a maior de todas as legislaturas: são 77 deputadas federais, ou 15% de um total de 513 deputados. “Foram observados pequenos avanços a partir do momento que se une a bancada feminina com o discurso de ‘vamos olhar para a questão da endometriose'. Elas se articulam e conseguem impulsionar a aprovação de um projeto”, analisa Treis.

Ela se refere ao projeto lei 3047/19, da deputada Daniela do Waguinho (MDB-RJ), que institui o dia 13 de março como Dia Nacional de Luta contra a Endometriose e estabelece a Semana Nacional de Educação Preventiva e de Enfrentamento à Endometriose, com o objetivo de democratizar o acesso a informações sobre a doença. O projeto, recorda a pesquisadora, foi anexado ao de 2013.

Mas a pandemia interrompeu as discussões outra vez e a iniciativa, assim como outros projetos de lei associados a doenças que não fossem a Covid-19, foram deixados de lado. “Nesse caso, o bloqueio se deu por uma mudança de agenda em relação à saúde e não por uma questão dos discursos”, avalia Treis, que considera que a falta de homogeneidade e velocidade nas discussões historicamente atrapalharam o avanço da pauta no Brasil.

Para ela, embora signifique um avanço, o novo projeto ainda é incompleto. “É necessário pensar em outras questões para além da conscientização, incluindo um atendimento humanizado e maior velocidade no atendimento'', recomenda a pesquisadora. Ela lembra que o tempo estimado para a realização da videolaparoscopia — o exame mais preciso para diagnosticar a endometriose — pelo Sistema Único de Saúde (SUS) é de um ano e meio.

“Também não se tem exatamente um projeto relacionado à questão dos cursos de medicina”, acrescenta. "Eu acredito que é extremamente importante olhar para essa questão porque, com mais médicos sabendo da existência do problema, talvez isso cause um impacto na diminuição do tempo de diagnóstico, que realmente é sofrido para mulher portadora de endometriose”.

Um problema de saúde pública

Fortes cólicas menstruais não são a única consequência da endometriose. Essa lista também inclui fluxo irregular e intenso, dores durante a relação sexual e infertilidade. E prejuízos financeiros: em 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estimou que o custo semestral com medicamentos para o alívio dos sintomas era de, aproximadamente, R$ 4 mil.

Investigar os impactos socioeconômicos da endometriose em diferentes classes sociais e etnias é um dos ganchos para pesquisas futuras que Treis identificou ao longo de sua jornada no doutorado. Ela também acha importante estudar as políticas multicêntricas, criadas de forma independente por institutos de pesquisa e hospitais no Brasil para preencher o váculo de um plano nacional.

A endometriose ocorre quando partes do endométrio se alojam em órgãos do corpo. Entenda com a imagem  (Foto: Ilustração: UInverso)

A endometriose ocorre quando partes do endométrio se alojam em órgãos do corpo. Entenda com a imagem (Foto: Ilustração: UInverso)

Mas a pesquisadora não quer estudar todas essas questões sozinha. Desde que completou o doutorado em tempo recorde, ela passou a receber mensagens de dezenas de universitárias portadoras de endometriose Brasil afora, dizendo que nunca imaginaram abordar a doença dentro de um contexto político, social, econômico e demográfico. Com elas, a pesquisadora diz compartilhar ideias para novos estudos.

“Por mais que a gente tenha movimentos sociais e discussões na Câmara dos Deputados sobre a endometriose, ela passou muito tempo silenciada. Eu sentia que precisava fazer esse debate acontecer", diz Treis. "Esse trabalho dá voz a uma pauta que eu sempre vi como essencial, além de poder inspirar várias outras meninas a seguirem na carreira acadêmica e ressaltar a importância das ciências humanas". 

A tese de doutorado Análise da formação de agenda governamental sobre políticas públicas para mulheres portadoras de endometriose: um estudo de caso sobre o Brasil e a Austrália tem previsão de publicação entre janeiro e fevereiro de 2022. A partir de então, Treis espera que os achados contribuam para as dicussões pós-pandemia sobre a endometriose no Congresso.

*Com supervisão de Luiza Monteiro