• Larissa Lopes
Atualizado em
Lisa Genova é formada em biopsicologia pela Bates College e PhD em neurociência pela Universidade Harvard, ambas nos EUA. Tornou-se famosa pelo livro Para Sempre Alice, bestseller que conta a história de uma mulher diganosticada com Alzheimer e que foi ad (Foto: Divulgação)

Lisa Genova é formada em biopsicologia pela Bates College e PhD em neurociência pela Universidade Harvard, ambas nos EUA. Tornou-se famosa pelo livro Para Sempre Alice, bestseller que conta a história de uma mulher diganosticada com Alzheimer e que foi ad (Foto: Divulgação)

Com o avanço dos bancos digitais, você talvez não esteja mais acostumado a manusear moedas. Mas não é difícil reproduzir mentalmente como elas são. Ora, a imagem está registrada em sua memória. Será mesmo? Você conseguiria descrever uma moeda de 25 centavos, por exemplo, em detalhes? Provavelmente não. Com um desafio simples e intrigante como esse, a biopscicóloga Lisa Genova inicia o seu mais novo livro lançado no Brasil, Memória: a ciência da lembrança e a arte do esquecimento, publicado em novembro de 2021 pela editora Harper Collins.

Organizada em três partes, a obra oferece uma visão global sobre o funcionamento da memória humana. Genova trata de casos surpreendentes, como o do japonês Akira Haraguchi, que decorou mais de 110 mil dígitos do pi aos 69 anos; e também de doenças degenerativas que afetam essa habilidade, como o Alzheimer.

Não é à toa: com o envelhecimento da população mundial, essa doença pode afetar 74,7 milhões de pessoas até 2030, segundo estimativa da organização Alzheimer’s Disease International. Foi por conta dessa condição, inclusive, que a autora começou a viajar o mundo alertando sobre a importância dos cuidados com a saúde do cérebro, divulgando hábitos que podem prejudicar o órgão ou prevenir doenças.

Tudo começou quando a avó de Lisa recebeu o diagnóstico de Alzheimer. Acompanhando a evolução do quadro e como a matriarca reagia aos lapsos de memória, a psicóloga escreveu o romance Para Sempre Alice, publicado originalmente em 2007 e, no Brasil, em 2019. Contando a história comovente de uma professora universitária que se encontra nos estágios iniciais da doença, a narrativa se tornou um bestseller do jornal The New York Times. Em 2014, foi adaptada para o cinema, rendendo um Oscar de Melhor Atriz para Julianne Moore, protagonista do filme.

A popularidade de Para Sempre Alice transformou a carreira de Lisa Genova, que passou a ser procurada por pacientes preocupados com a possibilidade de estarem sofrendo o mesmo que a personagem. A maioria dos casos relatados, porém, são completamente normais, avisa a autora. “Nós pensamos que o esquecimento tem a ver com algo passivo, contra a nossa vontade, mas esquecer pode ser importante e útil”, diz a especialista norte-americana em entrevista a GALILEU.

Na conversa a seguir, ela explica como a memória humana é formada, por que é natural (e essencial) que esqueçamos as coisas e como podemos evitar a degeneração dessa habilidade tão importante.

Após o sucesso dos seus romances, por que você resolveu mergulhar em uma obra de divulgação científica?

Eu tenho falado sobre memória e esquecimento há mais de uma década, principalmente sobre Alzheimer. Minha avó foi diagnosticada com a doença e ela me inspirou a escrever o livro Para Sempre Alice, que é sobre uma professora universitária que se vê enfrentando os primeiros estágios da condição. Desde o lançamento e sucesso dele, tenho falado por todo o mundo sobre memória. Para Sempre Alice foi um veículo para discutir saúde cerebral, como é ter Alzheimer e o que podemos fazer para prevenir essa doença.

Era comum que, em noites de autógrafo, pessoas com 50 anos ou mais viessem até mim para fazer perguntas sobre a própria memória. No geral, elas tinham muito medo ou estavam se estressando demais com esquecimentos corriqueiros. “Esses dias eu entrei em um cômodo e esqueci por que tinha ido até lá”, ou “Tenho de escrever tudo o que preciso fazer, se não esqueço”, ou ainda “Eu sempre esqueço o nome das pessoas.” Esses são traços comuns de esquecimento em um cérebro normal — apesar das pessoas estarem convencidas de que eram sinais de Alzheimer. Eu sempre as tranquilizava de que aquilo não era uma deficiência cognitiva.

Há uma razão para você não achar suas chaves, e ela não é uma doença. As pessoas, que me paravam até na fila do banheiro para fazer perguntas, eram tomadas por um alívio ao ouvir a minha resposta. Por isso escrevi Memória, para ajudar mais leitores a se educarem sobre a saúde do cérebro.

Parte do título do seu novo livro já naturaliza esses lapsos de lembrança: “a arte do esquecimento”. Por que é importante que esqueçamos as coisas?

Há uma concepção errada de que a memória humana deveria ser perfeita, que deveríamos lembrar de tudo e que o esquecimento pode significar falha, falta de caráter ou de inteligência. Eu queria mostrar para as pessoas que nós esquecemos coisas todos os dias, e está tudo bem. Nós lembramos o que é novo, surpreendente, comovente, significativo, o que repetimos muitas vezes, o que praticamos. E esquecemos o que é rotina, o que é sempre igual.

Se você pensar na maioria dos seus dias, esquece a maior parte das coisas. E isso é maravilhoso, porque ajuda a manter e destacar coisas que são emocionantes, profundas e novas. É o que realmente marca a história das nossas vidas.

Se nos lembrássemos de tudo como Solomon Shereshevsky [jornalista russo que foi estudado por sua capacidade extraordinária de lembrar informações], seria esmagador. Para ele, os momentos importantes eram tão memoráveis quanto os detalhes insignificantes. Então, nós não queremos lembrar de tudo, só do que importa.

"Há uma concepção errada de que deveríamos lembrar de tudo e que o esquecimento pode significar falta de caráter ou inteligência"

Lisa Genova comenta por que é natural que nossa memória falhe

Pode explicar como são formadas e consolidadas nossas memórias mais importantes?

Para que nosso cérebro crie uma memória que dure mais do que o presente, há quatro etapas. A primeira delas é a codificação: ele coleta todas as visões, sons, cheiros, gostos, emoções, linguagens e significados do que está acontecendo, e traduz isso para a linguagem neurológica. Depois, em uma parte chamada hipocampo, é feita a ligação de todas essas informações (que, antes, não estavam conectadas em uma conexão neural).

No livro, eu dou um exemplo sobre como me lembro do primeiro dia de verão: uma música da Lady Gaga estava tocando, tinha uma fogueira, o tempo estava úmido e as crianças foram queimadas por uma água-viva. Lady Gaga não tem nada a ver com águas-vivas, mas, na minha memória, isso pode se tornar um circuito só, porque meu hipocampo junta essas informações. Esse é o segundo passo: chamado de consolidação, informações não relacionadas previamente podem se tornar conexões associadas.

O terceiro passo é o armazenamento. No seu cérebro, há muitas mudanças anatômicas e químicas que se tornam estáveis ao longo do tempo para que essa memória não se perca, para que você esteja apto a manter essa memória daqui uma semana, um ano, dez, 40 anos...

E a última etapa é a recuperação. Quando alguém menciona a palavra água-viva, eu provavelmente vou ativar aquele neurocircuito que associa o animal àquele dia de verão em que eu ouvia Lady Gaga. Assim, eu posso recordar, revisitar e compartilhar aquela história.

Como essas funções são distribuídas no nosso cérebro?

A principal área cerebral responsável pela memória é o hipocampo, mas, antes disso, a primeira fase necessária para criar a memória é a atenção: você não pode se lembrar daquilo em que não prestou atenção. E aí está o porquê de perdermos as coisas. Quando eu não consigo lembrar onde estão os meus óculos, as minhas chaves ou onde estacionei meu carro, provavelmente não é porque tenho Alzheimer, amnésia ou demência. Provavelmente é porque, em primeiro lugar, nunca prestei atenção ao lugar onde os coloquei. Sem prestar atenção, não posso criar uma memória nem de algo que aconteceu bem na minha frente.

O ato de prestar atenção vem do córtex pré-frontal, e o hipocampo junta essas informações. O armazenamento delas fica distribuído em todo o cérebro, dependendo de cada tipo. Informações relacionadas à linguagem são ativadas principalmente no lobo temporal; sons estão no córtex auditivo; movimentos, no córtex motor etc. Os circuitos de memórias ficam armazenados em todo o cérebro. Ao contrário do que muitos imaginam, não há um banco de memórias.

"A primeira fase necessária para criar uma memória é a atenção: você não pode se lembrar daquilo em que não prestou atenção"

Genova pontua por que o foco é fundamental para memorizarmos fatos do dia a dia

Além da atenção, quais outros fatores podem definir se uma memória será duradoura ou não?

A emoção tem um grande papel. Em termos de como experimentamos memórias, tendemos a lembrar de coisas que são significativas, que evocam alguma emoção em nós. Amor, felicidade, alegria, medo, choque, raiva, nojo — todas elas ajudam a tornar uma experiência algo que não é neutro, não é rotineiro. Isso auxilia nosso hipocampo a reunir e consolidar essa informação. A amígdala e o sistema límbico, envolvidos nas emoções, facilitam a formação de memória.

Já entendemos por que esquecer é natural, mas quando o esquecimento se torna um motivo de preocupação?

Essa é uma linha tênue. Quando somos jovens, é comum a sensação de ter uma palavra na ponta da língua, mas não conseguir dizer qual é, porque é muito difícil para o cérebro entregar os substantivos adequados, já que só há um caminho que leva ao “endereço” daquela informação — isso serve para nomes, títulos de filmes, séries, livros... Isso é totalmente normal.

Mas, se você começar a esquecer substantivos comuns muitas vezes por dia, como “caneta”, “telefone”, “TV”, “cadeira”, isso pode ser um sinal de que algo não vai bem. Não precisa necessariamente ser Alzheimer, pode ser uma deficiência de [vitamina] B12, por exemplo. Vale a pena ter uma conversa com seu médico, pois não é algo que você deva esconder e se envergonhar.

Em relação a coisas que desaparecem, sempre encorajo as pessoas a pensarem: “será que eu realmente prestei atenção onde coloquei os meus óculos?” Se a resposta for não, então não é um problema da memória, é distração. Mas, se você prestou atenção onde os colocou, isso pode indicar um problema de memória.

Se eu dirigir até o shopping, estacionar o carro e sair andando enquanto digito uma mensagem, não vou ter como me lembrar onde o veículo está, já que nunca prestei atenção. Uma perda séria de memória seria mais como “eu não me lembro como vim parar aqui”, “não consigo me lembrar o que aconteceu há uma hora”, ou então estar bem na frente do seu carro e não reconhecê-lo.

Quais são as principais causas desses esquecimentos?

Muito se fala em Alzheimer, mas esses sinais não são necessariamente disso, podem ser devido à privação de sono, que dá uma sensação de como se você tivesse demência, amnésia. Estresse crônico também e, nos últimos dois anos, durante a pandemia, estivemos muito vulneráveis a isso.

Se você tem se sentido nebuloso ou confuso no último um ano e meio, isso pode ser um resultado de estresse e rotina. Nosso cérebro não está ganhando a estimulação necessária. Nós vivemos o mesmo dia de novo e de novo, na mesma casa, fazendo as mesmas coisas. Na sua mente, os dias vão todos se misturar e você não vai se lembrar tanto deles. Mas isso não é Alzheimer. Se você acha que tem algum problema de memória, vale a pena conversar com seu médico. 

Quais são os fatores da vida moderna que podem prejudicar nossa memória? E o que fazer para prevenir problemas cognitivos?

Os hábitos mais comuns e prejudiciais são a privação de sono, não dormir de sete a dez horas por dia, e estar cronicamente estressado. Se você é sedentário, isso pode levar a um hipocampo menor também. Há muitos estudos mostrando que exercícios estimulam a neurogênese, o nascimento de novos neurônios. Com o sedentarismo você acaba perdendo neurônios nessa parte do cérebro, diminuindo o hipocampo.

Já para prevenir, além de boas noites de sono, sabe-se que a Dieta Mediterrânea — fartamente rica em frutas e vegetais coloridos, azeite de oliva, peixes — leva a uma boa memória, reduzindo o risco de desenvolver Alzheimer.

No livro memória, um dos principais pontos que você discute sobre hábitos não saudáveis é o multitasking, habilidade muito valorizada atualmente no mercado de trabalho. Por que ser multitarefas pode ter suas desvantagens para a memorização?

Quando estamos fazendo múltiplas tarefas, dividimos nossa atenção entre muitas coisas de uma só vez. Não damos atenção a uma coisa só — e sabemos que precisamos de atenção para formar uma memória. Então, se eu quero lembrar o que estou fazendo e não dei àquela experiência minha completa atenção, as memórias que irão se formar não serão tão robustas ou tão capazes de ser facilmente recuperadas. Talvez você não se lembre de nada.

Existe um limiar de atenção que eu preciso dar a algo para que me lembre mais tarde. E todos nós provavelmente já passamos por isso, né? “Eu sei que você me disse algo, mas eu não lembro o quê.” Quando você está fazendo várias coisas ao mesmo tempo, não dá a essas coisas a atenção suficiente para sua memória ter uma chance de captar a informação de uma forma consistente.

Quais são os principais mitos sobre a memória?

Há vários. As pessoas acreditam que nós temos um limite para armazenar memórias, e isso não é verdade. Nunca faltará espaço para elas. Se você não se lembra de algo, é porque não teve o tipo de estímulo correto para a consolidação. O exemplo que adoro dar é de Akira Haraguchi, um engenheiro japonês aposentado que, aos 69 anos, decidiu memorizar o pi.

Apesar das muitas dificuldades que poderia ter, ele criou uma boa estratégia para lembrar dos números, incluindo storytelling e linguagem visual, recursos que envolvem significado, emoção, novidade — tudo o que nos ajuda a memorizar. E foi assim que ele gravou 111.700 dígitos de pi.

A qualquer idade você pode aprender uma nova língua, um novo instrumento, um novo esporte, conhecer novas pessoas, novas músicas. Somos ilimitados quando falamos sobre a capacidade do nosso cérebro.

Outro mito interessante é que as pessoas pensam que as memórias delas sobre coisas que aconteceram são precisas, mas não são. E isso é fascinante: memórias sobre algo conhecido são acuradas, como a data do seu aniversário ou o resultado de 6 vezes 6. Habilidades motoras como andar de bicicleta e escovar os dentes também entram nessa conta. Por outro lado, suas memórias sobre algum acontecimento vão se moldando ao longo do tempo.

Como as memórias são uma história sobre o que aconteceu, nós podemos adicionar alguma informação, mesmo que inconscientemente. Também podemos deixar alguma informação de fora. E, cada vez que uma história é relatada, a forma como ela é contada muda a percepção que temos. Por isso é importante que advogados, por exemplo, estudem a neurociência da memória.

"As pessoas acreditam que nós temos um limite para armazenar memórias, e isso não é verdade"

Genova esclarece alguns dos principais mitos sobre a memória humana

Hoje em dia, quais são os principais desafios e as áreas mais promissoras no estudo da memória?

A ciência da memória é uma área bem empolgante. Com imagens por ressonância magnética funcional, podemos assistir ao que ocorre no cérebro humano quando uma lembrança é ativada. Há diferentes tipos de memória que podemos provocar para saber quais partes do cérebro estão envolvidas.

Em biologia molecular e na genética da memória, busca-se entender quais genes estão ativados e quais são as maiores mudanças biológicas que ocorrem quando você se lembra ou esquece de algo. É realmente emocionante. O que nos permite lembrar hoje de acontecimentos ocorridos há muitos anos? Essas descobertas estão acontecendo.

E outro tópico muito empolgante está relacionado ao esquecimento. Nós pensamos que o esquecimento tem a ver com algo passivo, contra nossa vontade, mas, de novo, esquecer pode ser ativo, importante e útil. Como o cérebro decide apagar alguma memória? Como ele joga essa conexão? A neurociência disso está sendo estudada, é uma área nova e muito animadora.

MEMÓRIA: A CIÊNCIA DA LEMBRANÇA E A ARTE DO ESQUECIMENTO Lisa Genova (Harper Collins, 192 páginas, R$ 49,90) (Foto: Divulgação)

MEMÓRIA: A CIÊNCIA DA LEMBRANÇA E A ARTE DO ESQUECIMENTO Lisa Genova (Harper Collins, 192 páginas, R$ 49,90) (Foto: Divulgação)