• Oscar Nestarez*
Atualizado em
Cena de O Exorcista (Foto: Reprodução)

Cena de O Exorcista (Foto: Reprodução)

Horror, não tenho dúvidas, é temperatura. Ou melhor, é variação de temperatura. Qualquer história assustadora que se pretenda como tal deve conter, em si, uma transição, uma mudança de um estado inicial específico para outro bem distinto. E a temperatura – ou o clima, para usarmos um termo caro ao gênero – acaba sendo o vetor principal dessa alteração, metaforicamente falando.

Sua projeção é dupla: diz respeito tanto aos personagens ficcionais (que se apavoram, gritam e às vezes morrem) quanto a nós, leitores, espectadores ou jogadores (que com eles nos apavoramos e gritamos). Dentro ou fora da obra de horror, a coisa tem que ferver. Mais ou menos como o sapo na panela em fogo baixo: quando o bicho decide sair, é tarde demais.

Qualquer famosa vítima do horror é prova disso. Das figuras torturadas de Edgar Allan Poe à jovem Regan McNeil, de O Exorcista, todas passaram por algum processo de fritura, e nós padecemos com elas. Isso tem a ver com empatia e simpatia – outros aspectos fundamentais do horror, pois dizem respeito à construção das personagens. E claro que, dependendo da época de uma obra, do peso da mão do escritor e de outras variáveis, essa transição pode ser mais rápida ou mais vagarosa.

O inverno de John Clute

A ideia de atribuir temperaturas a narrativas, vale lembrar, não é nada nova. O autor e crítico canadense John Clute aplicou-a aos seus estudos sobre fantasia, ficção científica e horror. Em The Encyclopedia of Fantasy (sem edição no Brasil), de 1997, Clute propõe uma definição para o horror ao compará-lo com a fantasia.

De acordo com ele, a fantasia se compõe de uma perturbação na ordem, que será restabelecida ao final da jornada. Já no horror, a perturbação permanece, restando apenas suas nefastas consequências. Assim sendo, Clute associa as etapas das narrativas de fantasia e horror às estações do ano: enquanto uma começaria no outono (com o avanço da perturbação) e terminaria no verão (com o restabelecimento da ordem), outro teria início na primavera (com a calmaria pré-percepção da perturbação) e se concluiria no inverno (com as inescapáveis consequências).

Nesta coluna, pretendo expandir um pouco a ideia de temperaturas do horror. Considerando as inúmeras faces do gênero, ocorreu-me aplicar o termômetro não ao âmbito da escrita, mas da recepção. Isto é, em vez de verificar como o horror progride dentro de uma história, quero compartilhar minha percepção sobre as gradações do assombro de livros dentro do gênero como um todo. Farei isso tendo em vista questões extra-textuais, como o público a que uma obra se destina, os diálogos com outras artes e o projeto literário de um determinado autor.

Para facilitar a leitura, seguirei em uma progressão que parte do horror mais ameno e chega a níveis, literalmente, infernais. Dado o espaço limitado, utilizarei poucos exemplos — que, espero, sustentem essa ideia. Antes, um aviso: por mais que eu me baseie em dados técnicos e objetivos para essa classificação, há nela muito de minhas próprias impressões. Portanto, é uma régua também subjetiva.

Horror ameno

A expressão “horror ameno” foi usada pelo pesquisador Lainister de Oliveira Esteves para descrever alguns contos de Machado de Assis, em especial A vida eterna, Sem olhos e Um esqueleto. De acordo com Esteves, esses textos têm ares de anedota, e seus narradores costumam ser jocosos, bem-humorados, além de enfatizarem a artificialidade da história que contam.

De certa maneira, essa classificação se aplica a um enorme contingente de narrativas paródicas, ou àquelas destinadas ao público jovem adulto. Tomemos como exemplo o romance O exorcismo da minha melhor amiga (Intrínseca), de Grady Hendrix. Publicada no Brasil em 2021, a obra acompanha o drama da adolescente Abby Rivers, cuja melhor amiga, Gretchen Lang, é possuída pelo demônio Andras.

O exorcismo da minha melhor amiga (Intrínseca), de Grady Hendrix (Foto: Divulgação)

O exorcismo da minha melhor amiga (Intrínseca), de Grady Hendrix (Foto: Divulgação)

Embora a história contenha algumas (poucas e bem elaboradas) passagens tensas, o horror se dispersa em meio à narração bem-humorada de Hendrix. O caráter artificial, portanto paródico, também tira a força do arrepio: o livro é consciente na homenagem que presta aos clássicos de exorcismo e aos anos 1980. As músicas, as personalidades e os personagens caricatos da época estão por todos os lados.

Outro exemplo de suaves assombros, mas em registro bem diferente do livro de Grady Hendrix, é Gótico nordestino, coletânea de contos do paraibano Cristhiano Aguiar recém-lançada pelo selo Alfaguara, da Companhia das Letras. Em algumas das nove narrativas que compõem o livro, o autor utiliza tópicos e procedimentos do horror como veículos para destinos diversos, como o drama íntimo de personagens (caso de “Anna e seus insetos”) ou a tragédia coletiva (“As onças” e “Lázaro”, por exemplo). O texto permeado por epifanias – uma das marcas do modernismo literário – também amortece o impacto do horror, por “desviar” a atenção de quem lê para a escritura, em oposição à narração, em si.

Horror em estado febril

Aqui a coisa começa a esquentar. Nesta região do nosso termômetro, vejo obras do insólito (termo utilizado para abarcar a imensa diversidade da literatura fantástica) que contêm procedimentos fundamentais do horror – por exemplo, a sisudez na narração, o domínio da elaboração dos tempos físico e psicológico, o suspense, a construção minuciosa de personagens e o rumor da perturbação soando continuamente.

No entanto, o caráter elusivo ou elíptico dessas narrativas faz com que se abram para outras leituras. Isto é, tornam-se possíveis também o realismo mágico, o maravilhoso, a alegoria ou mesmo um contundente comentário social.

Ilustrando essa ideia, teríamos obras da argentina Samanta Schweblin – em especial a novela Distância de resgate e alguns contos da coletânea Pássaros na boca – e outras narrativas de Terra fresca da sua tumba, da boliviana Giovanna Rivero. A propósito, a Argentina tem reconhecida tradição nesse registro: certos contos de Julio Cortázar (como A casa tomada e Ônibus) e obras de Bioy Casares (em especial a coletânea Histórias fantásticas) causam no mínimo assombros sutis, entre outras sensações.

Um intruso neste grupo seria o inglês Robert Aickman, cuja obra enigmática ocupa um território único na geografia literária. Você pode tirar a prova com a coletânea Repique macabro e outras histórias estranhas (Ex Machina e Clepsidra), publicada em 2021.

Horror 40 graus

Nestas paragens mais tórridas, eu situaria as narrativas literárias que dialogam com o cinema de horror, em especial o gore. Ou seja, obras já bem dentro do gênero e explícitas, que carregam nas cenas de violência e de monstruosidades. Aqui, se destacariam livros de Clive Barker, um mestre do chamado horror corporal – não por acaso, também roteirista e cineasta. Para ilustrar, citaria os volumes de contos Livros de sangue, a novela Hellraiser e os romances Raça da noite e O desfiladeiro do medo.

Cena de Hellraiser (Foto: Reprodução)

Cena de Hellraiser (Foto: Reprodução)

Outros exemplos, claro, viriam de boa parte da obra de Stephen King, no geral indissociável da linguagem cinematográfica.

No entanto, se o diálogo com o cinema rende obras de alta octanagem horrorífica, também funciona como armadilha. Para cada Barker ou King, temos incontáveis autores e autoras cujas obras são limitadas pelas fórmulas que, necessariamente, compõem o gênero.

Outro fator restritivo são as cosmovisões religiosas: histórias que ainda hoje nos ameaçam com demônios e quetais, algo recorrente também nos filmes. Resultam daí livros derivativos e previsíveis, que são esquecidos logo após a conclusão da leitura. Em todo caso, o fato de essas obras existirem aos milhares indica a dimensão do  fenômeno.

Horror em chamas

Enfim chegamos aos últimos círculos infernais, onde tudo queima. Aqui, enxergo duas categorias de narrativas de horror: aquelas em que a ameaça vai além da origem religiosa e é, portanto, de magnitude muito maior; e obras que, por diferentes motivos, representam marcos no gênero, seja contribuindo para fundá-lo, seja para atualizar os padrões que o constituem.

No primeiro grupo, temos o horror cósmico de H.P. Lovecraft, Algernon Blackwood, Robert W. Chambers e tantos outros que apostaram na fragilidade do ser humano frente ao universo. São obras pessimistas na essência, histórias nas quais a perturbação de Clute só faz crescer e jamais é solucionada. Mais recentemente, o norte-americano Thomas Ligotti, ainda inédito no Brasil, surge como o principal representante dessa vertente.

A escritora argentina Mariana Enríquez  (Foto: Leonardo García / Divulgação)

A escritora argentina Mariana Enríquez (Foto: Leonardo García / Divulgação)

Já na segunda categoria, estariam narrativas fundadoras, como, entre outras, Frankenstein, de Mary Shelley, e vários contos de Edgar Allan Poe. Neste restrito grupo, também teriam lugar Assombração da casa da colina, de Shirley Jackson – que ressignificou as histórias de casas assombradas –, O Exorcista, de William Peter Blatty – pela audácia do enredo e por cenas que ainda hoje impressionam –, O cemitério, de Stephen King – que deu um novo significado para o adjetivo “macabro” no horror –, e Nossa parte de noite, de Mariana Enriquez – pela arrebatadora costura entre subgêneros do horror, pela composição de personagens memoráveis e pela prosa hipnótica.

Em cada uma delas, a temperatura do horror vai subindo sem cessar, sem concessões ou desvios. A perturbação é inevitável. E quando percebermos isso, já será tarde demais, pobres sapinhos na panela que somos.

*Oscar Nestarez é autor e pesquisador da literatura de horror. Publicou "Poe e Lovecraft: Um Ensaio Sobre o Medo na Literatura" (Livrus), a coletânea de contos "Horror adentro" (Kazuá) e os romances "Claroscuro" e "Bile negra" (Pyro), que recebeu o prêmio de melhor narrativa longa de horror da Associação Brasileira de Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror (ABERST).