• Camila Mazzotto*
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"Lucicreide Vai Pra Marte" é o primeiro filme do cinema nacional com cenas gravadas na Nasa – graças à mediação do astronauta brasileiro Marcos Pontes (Foto: Divulgação/GloboFilmes)

Não basta ter um diploma em ciências exatas ou engenharia aeroespacial para vislumbrar o título de astronauta. A lista de pré-requisitos para participar de uma viagem espacial vai de liderança a excelente condicionamento físico. Mas uma das principais etapas dessa jornada, que pode se estender por dois anos ou mais, é outra: superar um treinamento intenso que simula as condições no espaço.

Embora isso não seja novidade para jovens que aspiram a carreira de astronauta em países como Estados Unidos e Rússia, a realidade pode soar um pouco menos familiar para quem vive no Brasil – onde não há escolas de formação desses profissionais. Mas quem disse que não podemos inspirar as novas gerações?

É o que propõe o filme Lucicreide Vai Pra Marte, o primeiro longa brasileiro gravado em locações da Nasa. “Queremos que a obra seja um ‘gatilho’ para despertar essa curiosidade nas crianças e adolescentes do país”, diz a atriz Fabiana Karla, protagonista e produtora do filme, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira (4). 

Orçada em R$ 6 milhões, a comédia gira em torno de um treinamento espacial que pretende levar o primeiro ser humano ao Planeta Vermelho. Na ficção, porém, as condições para pisar em solo marciano são outras: basta ser um civil comum maior de 18 anos e (o mais importante) não ter uma família. Lucicreide, interpretada por Fabiana Karla, é tudo menos sem família: a pernambucana é mãe de cinco crianças. Ainda assim, por obra do acaso – ou do filho de seu patrão, um dos líderes da empreitada espacial –, ela, que é empregada doméstica (a mesma do programa de humor Zorra Total, da Rede Globo), acaba indo parar entre os aspirantes ao feito histórico.

Com exceção do macaco que acompanha os candidatos durante a jornada – uma homenagem a Ham, primeiro primata lançado no espaço, em 1961 –, Lucicreide Vai Pra Marte é fiel ao cenário enfrentado por futuros astronautas na agência espacial norte-americana. Nem todas as etapas que fazem parte de um treinamento espacial, porém, couberam no roteiro – seja por restrições da Nasa, seja por falta de conexão com o gênero do longa. “Na hora de escolher as etapas que o filme iria mostrar, tínhamos o desafio de informar bem, porque não queríamos passar dados errados, e, ao mesmo tempo, divertir”, explica Rodrigo Cesar, diretor do filme, a GALILEU.

Obra é a primeira a ser gravada nas locações da Nasa desde Armageddon (1998) (Foto: Divulgação/GloboFilmes)

“Lucicreide Vai Pra Marte” é fiel ao cenário enfrentado por futuros astronautas na agência espacial norte-americana – e, segundo a atriz, o longa não contou com a presença de dublês. (Foto: Divulgação/GloboFilmes)

A produção — que é a primeira a ser gravada na agência espacial norte-americana desde Armageddon (1998) — teve cenas filmadas especificamente no Kennedy Space Center, o parque da Nasa na Flórida. O local é o mesmo de onde pretende sair, ainda em 2021, a primeira missão espacial com “cidadãos comuns”, promessa feita pela empresa SpaceX no último dia 1º de fevereiro.

A produção também apresenta uma sequência filmada em um avião que simula gravidade zero. A aeronave, que partiu de Las Vegas e fez acrobacias sobre o Deserto de Nevada, nos EUA, é a mesma que transportou Tom Cruise no filme A Múmia (2017). “Podíamos ter criado cenários virtuais, mas de cara a gente falou ‘vamos rodar na Nasa’ e no avião de gravidade zero”, relembra Cesar.

Mas, sem a intermedição de Marcos Pontes, primeiro astronauta brasileiro e atual ministro da Ciência e Tecnologia, o filme provavelmente não teria saído do papel. “Foi extremamente desafiador”, diz Cesar. “[Foi] Mais de um ano de negociação, indo para o Kennedy Space Center e contando com a intermediação do astronauta Marcos Pontes”. Segundo o cineasta, todas as pessoas envolvidas na produção do longa tiveram seu histórico checado pelo Departamento Federal de Investigação dos EUA, o FBI. “Gravamos em uma zona de segurança restrita, foi uma equipe de quase 50 pessoas em dois dias de fimagem", relata.

Mas deu tudo certo e o filme, além de divertir, revela um pouco de como é a rotina de treinamentos de quem pretende sair da Terra. A seguir, veja algumas das etapas exibidas em Lucicreide Vai Pra Marte.

Ambiente de gravidade zero

Não é à toa que a Nasa e outras agências espaciais preparam futuros astronautas para lidar com a gravidade zero: a ausência dessa força no espaço é um dos maiores desafios ao corpo humano. Embora efeitos mais significativos, como perda de massa muscular e queda da pressão arterial, só sejam observados após longas exposições a esse cenário, quem a experimenta por alguns minutos já tem história para contar. “Às vezes, enquanto Fabiana, [eu] sentia medo, mas a personagem Lucicreide me protegia e a minha voz de produtora ainda me fazia olhar pro eixo da câmera pra ver se a equipe estava bem”, recorda Karla.

Tom Cruise (Foto: Divulgação/GloboFilmes)

A aeronave que simula gravidade zero partiu de Las Vegas e fez acrobacias sobre o deserto de Nevada, nos EUA – trata-se do mesmo veículo em que subiu Tom Cruise para o filme “A Múmia” (2017).(Foto: Divulgação/GloboFilmes)

Após decolar em Las Vegas, o avião usado no filme sobrevoou o Deserto de Nevada por 40 minutos. Cada cena dentro da aeronave, porém, precisou ser gravada em 20 segundos. É que, para simular a gravidade zero, o avião a jato sobe até determinada altitude e, em seguida, é posto em queda livre durante um pequeno intervalo de tempo: não mais que 30 segundos. Lá dentro, a ausência de peso é sentida pelos passageiros até que o piloto retome o curso da nave.

Para Fabiana, foi como se transformar temporariamente em uma “geleia”. “Confesso que fiquei uns dois dias com a cabeça um pouco nas nuvens”, conta. Natural sob essas circunstâncias, a sensação de enjoo também foi comum entre o elenco.

Mas não é só o corpo humano que entra em estado flutuante na ausência da gravidade: os líquidos também o fazem, e se transformam em bolhas amorfas. É por essa razão que, dentro do simulador, a personagem Lucicreide tem dificuldades para beber água. A atriz lembra do episódio: “Eu quase me afoguei de verdade, não tinha noção de que a água ia entrar pelo meu nariz e que eu não teria como desviar”.

Cardápio espacial

É Marcos Pontes quem, no filme, apresenta o cardápio espacial. O astronauta introduz aos candidatos uma área de cultivo de plantas em microgravidade, numa réplica do solo de Marte, além de alimentos desidratados que, para Lucicreide, despertam a saudade da “farofa do sertão”.

A água, por sua vez, passa por um complexo sistema de reaproveitamento. Na prática, os astronautas bebem uma mistura de água de banho, suor e xixi – reciclados e purificados, é claro.

Na Terra ou além dela, contudo, as necessidades fisiológicas que sucedem o ato de comer são as mesmas. A diferença é outra: o banheiro. Por conta da ausência de gravidade, um banheiro espacial existe para que dejetos líquidos sejam sugados por uma cânula – tubo de plástico que, nesse caso, é inserido no ânus do astronauta. O despejo dos sólidos, por sua vez, depende da mira do indivíduo: deve ser feito em um espaço de diâmetro muito pequeno. É por isso que o toalete conta com uma câmera – “uma televisão com minhas partes íntimas”, nas palavras de Lucicreide, em uma das cenas mais engraçadas do filme –, que fica próxima ao “vaso sanitário”.

Cadeira de Bárány e teste da centrífuga

Outro dispositivo usado no treinamento de futuros astronautas é a chamada Cadeira de Bárány. Montada sob uma plataforma com eixo rotário, o objetivo é simular um fenômeno constante na rotina de pilotos: a desorientação espacial.

Funciona assim: os candidatos são colocados sob a cadeira com os olhos vendados. Em instantes, o objeto é girado em alta velocidade sobre seu eixo central vertical. Quando o movimento é cessado, o indivíduo sente uma incapacidade momentânea de identificar o momento do repouso, devido à sensação de que o objeto ainda está em movimento.

“Na hora de escolher as etapas que o filme iria mostrar, tínhamos o desafio de informar bem, porque não queríamos passar dados errados, e, ao mesmo tempo, divertir”, explica à GALILEU Rodrigo Cesar, diretor da obra.  (Foto: Divulgação/GloboFilmes)

“Na hora de escolher as etapas que o filme iria mostrar, tínhamos o desafio de informar bem, porque não queríamos passar dados errados, e, ao mesmo tempo, divertir”, explica à GALILEU Rodrigo Cesar, diretor da obra. (Foto: Divulgação/GloboFilmes)

“Em voos, é comum experimentar acelerações em várias direções, e isso tem o potencial de fazer ‘pilotos tolos’ acreditarem que o solo está em uma direção diferente da que realmente é", explica Kyle Ellis, engenheiro aeroespacial da Nasa, ao site da agência espacial norte-americana.

Na sequência dessa prova, o filme também exibe os bastidores de um teste de centrífuga, que simula pousos de emergência. O equipamento prevê a pressão que a força da gravidade exerce sobre o corpo humano em altitudes maiores. O exame, portanto, é necessário para condicionar o piloto a reagir de maneira adequada diante da atuação da força no espaço.

"Bola de resgate"

Produzido pela Nasa na década de 1980, o recinto de resgate pessoal (PRE, na sigla em inglês) foi criado para transportar astronautas de um ônibus espacial para outro em casos de emergência – leia-se: quando faltassem trajes espaciais para algum tripulante dentro do veículo. À época, os tripulantes ainda não eram obrigados pela agência espacial a usar vestes adequadas, o que mudou em 1986, após o desastre do ônibus espacial Challenger.

A ideia era que, assumindo uma posição fetal dentro da bola, o astronauta colocasse uma máscara de oxigênio e segurasse um purificador de dióxido de carbono, até que outro tripulante com trajes espaciais o levasse para a nave de resgate, onde novas vestes estariam disponíveis.

Na prova da esfera do resgate, ganha quem conquistar a confiança do macaco que acompanha os candidatos – já que, em caso de emergência, o animal precisaria ser colocado dentro do dispositivo (Foto: Divulgação/GloboFilmes)

Na prova da esfera do resgate, ganha quem conquistar a confiança do macaco que acompanha os candidatos – já que, em caso de emergência, o animal precisaria ser colocado dentro do dispositivo (Foto: Divulgação/GloboFilmes)

Apelidado de “bola de resgate”, o dispositivo era o pesadelo dos claustrofóbicos: tinha apenas 86 centímetros de diâmetro e um volume de 0,33 metro cúbico – com uma janela minúscula para evitar a privação total dos sentidos. Ainda no estágio de protótipo, a esfera foi abandonada e, portanto, nunca voou em nenhuma missão espacial.

Mesmo assim, ela aparece no filme brasileiro e marca um momento importante da jornada de Lucicreide como candidata a ir a Marte. Será que ela fará mesmo essa viagem? 

Veja o trailer de Lucicreide Vai Pra Marte:

*Com supervisão de Luiza Monteiro