• Peter West, para The Conversation*
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É possível separar a vida pessoal da profissional como na série Ruptura? (Foto: Divulgação/Apple TV+)

É possível separar a vida pessoal da profissional como na série Ruptura? (Foto: Divulgação/Apple TV+)

Se você pudesse levar o equilíbrio entre vida profissional e pessoal ao extremo mais literal, como seria? Esse é o tema central de Ruptura (Severance), série de ficção científica que acaba de ser lançada na Apple TV.+

Os funcionários que trabalham para a corporação fictícia Lumon podem passar por um procedimento no qual sua consciência e memórias são divididas entre trabalho e casa. Os funcionários que foram “rompidos” não se lembram de nada sobre o trabalho depois que batem o ponto, ou nada sobre sua vida doméstica durante o horário de trabalho.

A separação rapidamente se torna inquietante quando fica implícito que, ao isolar as memórias da vida profissional de alguém, uma nova pessoa é criada – um escravo que vive apenas para trabalhar. Esses “novos” funcionários (os "eus" profissionais das pessoas) são informados de que podem sair do escritório quando quiserem, mas inevitavelmente são enviados de volta ao trabalho por seus parceiros da vida doméstica que não querem perder seus empregos e não precisam suportar o horror de viver apenas no escritório.

É seguro dizer que a maioria de nós não passaria por tal procedimento – afinal, o trabalho também é um lugar onde fazemos amigos que podem até nos ajudar em nossa vida doméstica. Mas o conceito apresentado em Ruptura levanta questões filosóficas profundas sobre a relação entre nossas memórias e nós mesmos.

O programa negocia com a ideia de que a personalidade pode ser reduzida às experiências conscientes de alguém. A ideia é que “eu” sou a soma total de minhas experiências, pensamentos, desejos e emoções lembradas, e que minha vida é a narrativa que essas memórias se unem para formar. Como diz um funcionário da Lumon, “a história nos torna alguém”. Há uma rica tradição de pensamento filosófico sobre a memória que compartilha essa forma de entender a identidade pessoal, mais frequentemente associada ao pensador do século 17 John Locke.

Questões sobre personalidade – o que faz de você você e não outra pessoa – eram muito importantes na época em que Locke escrevia. Para muitos pensadores do século 17 (para quem o cristianismo fazia parte do tecido da sociedade e o ateísmo era praticamente inconcebível), era certo que, depois de nossa vida mortal, passaríamos a viver algum tipo de vida após a morte. Mas quem exatamente viverá essa vida?

A resposta de Locke é que, para todos, “a consciência sempre acompanha o pensamento, e é isso que faz com que cada um seja o que ele chama de si mesmo”. Em outras palavras, eu sou o que tenho consciência. Ele acrescenta que “à medida que essa consciência pode ser estendida para trás a qualquer ação ou pensamento passado, a identidade dessa pessoa é atingida”.

Locke nos ensina que tudo o que me lembro de ter feito – e apenas o que me lembro de ter feito – foi feito por mim. Assim, enquanto eu continuar a ter experiências conscientes na vida após a morte (e lembrar das minhas passadas), continuarei a existir.

O caso da separação literal da vida profissional é interessante precisamente porque o processo cria uma nova pessoa – alguém que passa a existir (começa a ser consciente) somente quando o procedimento de separação termina. Como essa nova pessoa só se lembra de estar consciente no trabalho, ela só existe no trabalho.

Isso também parece ser como as pessoas dentro de Ruptura estão pensando sobre as coisas. Ao me desligar da minha vida profissional, posso evitar que o estresse do trabalho “vaze” para o resto da minha vida e serei uma pessoa diferente quando eu sair.

O problema de Locke

Os primeiros episódios do programa sugerem que a separação aparentemente perfeita do eu-trabalho e do eu-casa vai causar problemas. Da mesma forma, filósofos que responderam a Locke – pensadores do século 18 como George Berkeley e Thomas Reid – apontaram que seu relato da personalidade leva a absurdos.

Não sou o bebê que nasceu no meu aniversário porque não me lembro? Não serei o velho que vive nos anos 2050 se não me lembrar deste dia específico em 2022? Devo ser absolvido de quaisquer crimes que cometo quando fico bêbado porque não estou, agora, na fria luz do dia, consciente deles? Tais questões levaram esses pensadores a desenvolver relatos alternativos sobre o que me faz eu — talvez seja minha alma?

Ruptura: o que a filosofia diz sobre separar vida pessoal da profissional (Foto: Divulgação)

Ruptura: o que a filosofia diz sobre separar vida pessoal da profissional (Foto: Divulgação)

Há sinais de que, dentro do mundo de Ruptura, há mais em uma pessoa do que ela pode se lembrar. No episódio de abertura, o personagem principal vai para casa e descobre que tem um corte na testa de um acidente de trabalho que, claro, ele não consegue lembrar. Esse é um sinal sinistro de que as cicatrizes que seu trabalho acumula são cicatrizes em você, e não em outra pessoa. Mais preocupante, talvez isso signifique que os funcionários rompidos estão se submetendo a uma existência tortuosa — piorada pelo fato de não se lembrarem dela.

Há boas razões para acreditar que quem “eu” sou é mais do que apenas o que me lembro – afinal, muitas coisas aconteceram comigo que não consigo me lembrar facilmente. Quantos de nós lutamos para lembrar grandes momentos da vida, como entrevistas de emprego?

O momento do lançamento de Ruptura é interessante porque, depois de dois anos trabalhando em casa, a separação genuína entre vida profissional e pessoal parece menos realista do que nunca. Para muitos, “trabalho” não é um lugar para onde saímos de casa todas as manhãs, mas talvez um quarto vago ou uma mesa de cozinha. Consequentemente, muitos de nós estão procurando maneiras de estabelecer uma divisão clara entre o trabalho e nossa vida pessoal.

Mas – de acordo com a mensagem no coração de Ruptura – talvez, em vez disso, devêssemos tentar fazer as pazes entre as diferentes partes de nossas vidas e, assim, entender melhor nosso eu completo.

*Peter West é pesquisador em Filosofia Moderna na Universidade de Durham, na Inglaterra. O texto foi originalmente publicado em inglês no The Conversation.