• Nathan Fernandes
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 (Foto: Ilustração: Marcus Penna)

(Foto: Ilustração: Marcus Penna)

Argumento 1: um governo que inventa informações para manipular a realidade a seu favor e dá a isso o nome de “fatos alternativos”. Poderia ser no livro 1984, de George Orwell, mas aconteceu quando a assessora presidencial norte-americana, Kellyanne Conway, apresentou números inflados de pessoas que haviam assistido ao vivo à posse de Donald Trump.

Argumento 2: uma sociedade em que mulheres são subjugadas e obrigadas a gestar bebês de seus estupradores. Poderia ser na obra The Handmaid’s Tale (ou O Conto da Aia, Ed. Rocco), escrita por Margaret Atwood e adaptada para a TV, mas é também o que pode acontecer no Brasil caso a PEC 181 seja aprovada.

Argumento 3: uma supermáquina envia ao passado um robô assassino para matar a mãe de seu futuro algoz antes mesmo que ele nasça. Poderia ser em O Exterminador do Futuro — e, nesse caso, é mesmo.

Muitas vezes, a ficção encontra formas pouco óbvias de simular a realidade em que vivemos. Entre todos os gêneros, a ficção científica (FC) é certamente um dos mais hábeis nesse quesito. Ao dissipar a fumaça produzida por carros voadores e naves alienígenas, o que sobra é uma reflexão profunda acerca da natureza humana e do modo como conduzimos o presente, não o futuro.

“A boa ficção científica age do mesmo modo que a boa literatura e a boa arte mainstream: expandindo nossa consciência, nossa inteligência”, afirma o escritor e crítico literário Nelson de Oliveira. “Ela faz isso ao abordar temas que estão fora do cardápio da literatura realista-naturalista. A boa ficção científica extrapola o aqui-agora radicalmente, de uma maneira que nenhum outro gênero literário consegue fazer.”

Para a escritora Ursula K. Le Guin — falecida em janeiro —, além de extrapolação, a FC é um experimento mental. “O objetivo do experimento mental, termo usado por Schrödinger e outros físicos, não é prever o futuro — na verdade, o experimento mental mais famoso de Schrödinger [o do gato] acaba mostrando que o ‘futuro’, no nível quântico, não pode ser previsto —, mas descrever a realidade, o mundo atual”, escreveu a autora na introdução de uma de suas obras mais aclamadas: A Mão Esquerda da Escuridão (Ed. Aleph). “A ficção científica não prevê; descreve.”

Não é à toa, portanto, que, apesar de completar cinco décadas neste ano, uma obra como 2001: Uma Odisseia no Espaço continue tão conservada que pareça ter sido colocada em uma câmara de criogenia. A diferença é que obras assim, ao saírem do congelamento, não estranham o mundo, uma vez que já o conhecem perfeitamente. Isso mostra que o tempo só é um problema para quem o entende como uma sucessão de acontecimentos que formam passado, presente e futuro.

Obras-primas como a de Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke estão livres dessa “ilusão persistente” — como definiu Albert Einstein —, afinal, não são elas que existem no tempo, e sim o tempo que existe nelas.

 (Foto: Ilustração: Marcus Penna)

(Foto: Ilustração: Marcus Penna)

“Nas boas obras de ficção científica, como 2001, é inevitável enxergar ecos da nossa experiência como criaturas do século 21”, afirma a jornalista Cláudia Fusco, mestre em estudos de ficção científica pela Universidade de Liverpool. “E o que isso significa? Que estamos totalmente imersos na busca por ferramentas, como as redes sociais, cada vez mais complexas para necessidades cada vez mais específicas — e nos entregamos emocional e socialmente a elas.”

Segundo Fusco, somos seres frágeis e curiosos na mesma proporção, e a busca da FC é, acima de tudo, a busca pela essência humana: “2001 nos apresenta isso de forma magistral, tanto em livro quanto em filme”.

Ultimamente, como um sintoma de que a sociedade se aproxima do desencanto, um dos subgêneros mais desgraçados da FC vem ganhando cada vez mais destaque: a distopia.

A questão é: por que, nos últimos tempos, nos vemos mais refletidos no espelho negro das distopias do que nas utopias? O que isso diz sobre nós? 

O trecho acima pertence à reportagem de capa da edição de maio de 2018 da GALILEU. Você pode ler a matéria na íntegra comprando a edição nas bancas, na versão digital ou assinando a revista, por R$ 4,90. Baixe o app da GALILEU ou o do Globo Mais para conferir outros conteúdos exclusivos.

Você é capaz de encontrar as 30 referências da capa? (Foto: Galileu)

Você é capaz de encontrar as 30 referências da capa? (Ilustração: Lambuja)