Saúde
Estudo brasileiro propõe estratégia para erradicar câncer de colo do útero
Desenvolvido pela Unicamp, método se baseia em testes de DNA-HPV e consegue adiantar diagnósticos. Pesquisadores defendem que ele será necessário a partir de 2025
6 min de leitura![Causado pelo vírus HPV, o câncer de colo do útero matou mais de 6 mil brasileiras em 2019, segundo o Inca (Foto: Wikimedia Commons) Causado pelo vírus HPV, o câncer de colo do útero matou mais de 6 mil brasileiras em 2019, segundo o Inca (Foto: Wikimedia Commons)](https://cdn.statically.io/img/s2.glbimg.com/3gwV-uoZcHJcvSmzHJhKZsf5xYQ=/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2021/11/24/1024px-hpv_causing_cervical_cancer.jpeg)
Causado pelo vírus HPV, o câncer de colo do útero matou mais de 6 mil brasileiras em 2019, segundo o Inca (Foto: Wikimedia Commons)
A ciência já tem todas as informações necessárias para erradicar o câncer de colo do útero — doença que, em 2019, matou mais de 6 mil brasileiras, de acordo com o Instituto Nacional do Câncer (Inca). Especialistas conhecem o causador — o papilomavírus humano, mais conhecido como HPV —, a forma como ele pode ser bloqueado por vacinas e os meios de detecção precoce. Mesmo assim, os atuais programas brasileiros voltados para a prevenção não têm diminuído a mortalidade. Agora, um artigo publicado na revista The Lancet Regional Health - Americas comprova que é possível (e mais vantajoso) fazer diferente.
Conduzido pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o estudo mostra a viabilidade de implementar o teste de HPV baseado em DNA, que é mais eficiente do que a citologia. Esse último método, conhecido também como exame de Papanicolau, é o mais tradicional. Apesar de bom, o instrumento só funciona adequadamente em programas organizados. E esse não é o caso do Brasil.
Por aqui, ainda que o Sistema Único de Saúde (SUS) invista anualmente em citologias capazes de abranger de 80% a 90% das mulheres-alvo, sabe-se que a cobertura real alcançada é de 15% a 30%. “São exames que não têm impacto, é quase um desperdício. As mesmas pessoas ficam repetindo o procedimento em períodos curtos ou não estão dentro das idades visadas”, afirma, em entrevista a GALILEU, o ginecologista Júlio César Teixeira, pesquisador principal do estudo e diretor da Divisão de Oncologia do Hospital da Mulher da Unicamp. Ele lembra que a citologia deve ser repetida a cada três anos após dois resultados negativos anuais consecutivos em mulheres de 25 a 64 anos.
Teixeira explica que a baixa adesão se dá por conta da falta de controle dos gestores públicos sobre quem está realizando o Papanicolau. Outro problema é o desconhecimento quanto à alta parcela de pessoas desatentas à prevenção. Dessa forma, as pacientes comparecem ao médico somente quando apresentam algum sintoma relacionado ao câncer, o que pode indicar um estágio avançado do tumor e, portanto, um diagnóstico tardio com indicação de radioterapia ou quimioterapia, sem opção de cirurgia.
![Taxas de mortalidade por câncer do colo do útero de 1980 a 2019 (Foto: Reprodução/Inca) Taxas de mortalidade por câncer do colo do útero de 1980 a 2019 (Foto: Reprodução/Inca)](https://cdn.statically.io/img/s2.glbimg.com/7odz73H2szf5yQpq-HKKqnMPqug=/620x466/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2021/11/24/mortalidade_cancer_reg_2019.png)
Taxas de mortalidade por câncer do colo do útero de 1980 a 2019 (Foto: Reprodução/Inca)
“Desde que começaram os programas de prevenção do Brasil, na década de 1980, vemos uma linha horizontal de mortalidade. Não estamos conseguindo fazer com que ela caia”, constata Teixeira. Para o triênio de 2020 a 2022, espera-se que o país registre cerca de 16.590 novos casos da doença, com uma taxa de mortalidade de 6,17 a cada 100 mil mulheres, segundo o Inca.
Pesquisa na vida real
Para contornar esse cenário, a equipe da Unicamp implementou uma nova estratégia na cidade de Indaiatuba, no interior de São Paulo. Com objetivo de atingir pelo menos 80% da população-alvo, os pesquisadores desenvolveram um sistema de monitoramento, registro e controle mais organizado e substituíram o Papanicolau pelo teste de DNA-HPV, que é mais sensível, capaz de detectar de maneira automatizada as cepas do vírus que causam o câncer e feito a cada cinco anos.
Dos 256 mil habitantes do município, escolhido por apresentar estabelecimentos de saúde interligados e um sistema informatizado com prontuários digitais individuais, 30 mil foram identificados como usuárias do SUS com 25 a 64 anos — e, assim, candidatas a participar do programa. De outubro de 2017 a março de 2020, foram aplicados 16.384 testes disponibilizados pela Roche Diagnóstica.
A empresa também desenvolveu o software implantado em todas as unidades de saúde de Indaiatuba para ter maior controle do estudo. Por meio do sistema Tracking for Life, foi possível analisar as amostras e comunicar os resultados à rede online municipal e os profissionais puderam organizar o fluxo de informações, garantindo que os exames fossem feitos no intervalo e na quantidade ideais. Além disso, a equipe de pesquisa ofereceu capacitação e palestras educativas para os médicos locais.
![Equipamento da Roche Diagnóstica possibilita um exame baseado em DNA que detecta, de forma automatizada, as cepas do HPV que causam o câncer do colo do útero (Foto: Arquivo pessoal/Júlio César Teixeira) Equipamento da Roche Diagnóstica possibilita um exame baseado em DNA que detecta, de forma automatizada, as cepas do HPV que causam o câncer do colo do útero (Foto: Arquivo pessoal/Júlio César Teixeira)](https://cdn.statically.io/img/s2.glbimg.com/3i2HDUAthoMrMlANhqJrXNQ0C1s=/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2021/11/24/whatsapp_image_2021-11-24_at_14.48.05.jpeg)
Equipamento da Roche Diagnóstica possibilita um exame baseado em DNA que detecta, de forma automatizada, as cepas do HPV que causam o câncer do colo do útero (Foto: Arquivo pessoal/Júlio César Teixeira)
Os resultados do trabalho são promissores. Na comparação com dados de outubro de 2014 a março de 2017 referentes a 20.284 mulheres que participaram do programa tradicional da cidade, o Programa de Rastreamento do Câncer de Colo de Útero com teste de DNA-HPV teve melhor desempenho. No método prévio, 78% dos exames foram feitos na idade certa; no atual, esse índice saltou para 99,2%.
O objetivo de alcançar no mínimo 80% do público-alvo também foi cumprido. "Com organização e registro da população, conseguimos passar a cobertura de 30% para mais de 90%”, destaca Teixeira. No total, o programa obteve 86,8% de testes negativos. Dos 21 casos de câncer detectados, 14 (67%) estavam na fase microscópica, o que indica que eles poderiam ser curados com tratamentos simples e baratos. A idade média dessas pacientes era de 39 anos.
![Gráfico mostra o número cumulativo de testes de HPV realizados nos primeiros 30 meses do programa da Unicamp, além das linhas de referência que indicam coberturas de 100% e 80% (Foto: Reprodução/The Lancet Regional Health - Americas) Gráfico mostra o número cumulativo de testes de HPV realizados nos primeiros 30 meses do programa, além das linhas de referência que indicam coberturas de 100% e 80% (Foto: Reprodução/The Lancet Regional Health - Americas)](https://cdn.statically.io/img/s2.glbimg.com/MN8P1P7JJZ5uPSyR68C4wjSiaNU=/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2021/11/24/cobertura_indaiatuba.jpg)
Gráfico mostra o número cumulativo de testes de HPV realizados nos primeiros 30 meses do programa da Unicamp, além das linhas de referência que indicam coberturas de 100% e 80% (Foto: Reprodução/The Lancet Regional Health - Americas)
No programa anterior, entre as mais de 20 mil citologias, 12 correspondiam a câncer em mulheres de 49 anos. Desses, apenas um (8%) estava na fase microscópica. “Isso significa que nós pegamos, ainda em estágio curável, os casos que iam aparecer na cidade nos próximos dez anos quando os sintomas estivessem avançados”, analisa o ginecologista. “Esses resultados são excepcionais.”
Além de identificar tumores em fase muito inicial, o rastreamento procura lesões pré-câncer. O teste de HPV detectou 180 lesões com risco de malignidade, contra 60 casos (três vezes menos) do Papanicolau. Se o exame de DNA dava positivo para HPV16 ou HPV18, a paciente era encaminhada para a colposcopia, que faz um tratamento curativo e preventivo. Se o resultado era negativo para esses dois tipos, mas positivo para outros HPVs de alto risco, era empregada a citologia em meio líquido e, se alterado, a mulher passava pela colposcopia e recebia um acompanhamento mais próximo.
O médico ressalta ainda que, pelo SUS, o Papanicolau demora de dois a quatro meses para liberar o resultado, enquanto os testes de DNA-HPV têm um prazo de 10 a 15 dias. Em artigo publicado no periódico PLOS One, os pesquisadores demonstram que, apesar de mais cara em um primeiro momento, a tecnologia traz melhores resultados clínicos e, a longo prazo, financeiros. “Nós comprovamos que o teste é custo-efetivo, uma vez que adianta o diagnóstico e resulta em tratamentos mais baratos”, afirma Teixeira.
De olho em 2025
As conclusões se tornam ainda mais relevantes diante do fato de que o teste de DNA-HPV será extremamente necessário daqui a quatro anos. Isso porque, em 2025, as primeiras meninas que foram vacinadas contra o HPV em 2014 (quando foi implementada a imunização no SUS para garotas de 9 a 14 anos) completam 25 anos e entram na idade de prevenção. Como uma população protegida tende a apresentar menos HPV e lesões, a eficiência da citologia irá cair, o que torna o exame de DNA ideal para esse contexto.
"Agora não é necessário reunir mais nenhuma evidência científica. Temos todas as informações, então precisamos de administração, gestão e política”, declara o ginecologista. Segundo ele, a estratégia desenvolvida em Indaiatuba representa um dos caminhos para a erradicação do câncer de colo do útero, que é uma das metas da Organização Mundial da Saúde (OMS). Somado ao rastreamento efetivo, como proposto pela Unicamp, o outro elemento fundamental para alcançarmos esse patamar é a alta cobertura vacinal — que ainda deve ser aprimorada no Brasil.
Na cidade de Indaiatuba as coisas já começaram a mudar. Por meio de uma portaria, a prefeitura instituiu no SUS o rastreamento exclusivo pelo teste de DNA-HPV, e não mais pelo Papanicolau. O município também decidiu antecipar a vacinação para meninos de 9 anos de idade, como acontece com as meninas, e oferecer o imunizante nas escolas. “No futuro, Indaiatuba deve realmente erradicar as doenças por HPV”, comenta Teixeira.
Os próximos passos dos pesquisadores consistem em continuar acompanhando Indaiatuba para que o trabalho sirva como um “estudo sentinela” (de vanguarda) para o restante do país. “Imagina fazer uma rodada como a de Indaiatuba no Brasil inteiro”, propõe o médico. “Seriam de 10 mil a 15 mil mulheres salvas de imediato que, nos próximos anos, poderiam perder a qualidade de vida e até a própria vida.”
Daqui para frente, um dos principais objetivos da equipe é fazer com que o programa seja replicado em outras cidades e defender a inclusão do teste de DNA-HPV no SUS a nível nacional. Nesse sentido, estão sendo realizadas reuniões com o Ministério da Saúde e, caso a estratégia ainda não possa ser encampada em escala federal, a ideia é verificar se o estado de São Paulo assumiria a dianteira.
*Com supervisão de Luiza Monteiro