Um mistério rondou 2022: em 5 de abril, o Reino Unido notificou um aumento de casos de hepatite aguda em crianças, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Ainda que não seja frequente na população infantil, o que realmente causou estranhamento foi que em nenhum dos episódios foram identificados os agentes infecciosos normalmente associados à doença.
A hepatite é uma inflamação no fígado provocada por diversos fatores, sendo os principais os vírus das hepatites A, B, C, D e E. A OMS estima que, juntos, eles causem mais de 1 milhão de mortes por ano em todo o mundo. Além desses, há outros agentes que podem causar infecção, como a hepatite medicamentosa, por mononucleose, alcoólica e autoimune.
A doença, tida à época como “misteriosa”, continuou a se espalhar e, até julho daquele ano, foram registrados 1.010 casos, em 35 países. “A maioria em menores de 5 anos, com febre, dor de barriga, diarreia e vômito, que evoluíam para icterícia [quando pele e olhos ficam amarelados]. No entanto, quando se fazia o rastreamento dos vírus, os resultados eram negativos”, explica o hepatologista Hugo Perazzo, pesquisador do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz). De acordo com um estudo da Fiocruz, do qual Perazzo participou, o primeiro registro da doença misteriosa no Brasil foi em maio, e até 29 de junho, 163 casos suspeitos já haviam sido relatados ao Ministério da Saúde (MS).
Várias hipóteses foram levantadas: uma ligação suspeita com o SARS-CoV-2, queda da imunidade da população pós-pandemia, coinfecção com outros agentes, toxinas no ambiente e nos alimentos, além de novos vírus de hepatite. A corrente mais forte, porém, conecta o surto ao adenovírus, já que 53% dos casos na Europa também deram positivo para esta família de vírus, que costuma gerar um quadro respiratório comum na infância.
“Aventou-se a possibilidade de uma exposição em massa ao adenovírus pós-confinamento. Por conta do distanciamento social, as crianças ficaram prevenidas tanto do coronavírus quanto de outros vírus respiratórios, e a imunidade delas reduziu. Ao serem expostas novamente, foram atingidas com força”, explica o hepatologista. Assim, um vírus que não costumava desencadear a hepatite entrou para a lista.
É justamente o que aponta a análise da hepatologista pediátrica Deirdre A. Kelly, da Universidade de Birmingham (Inglaterra), em artigo publicado na revista científica Nature. Ela sugere que coinfecções com outros vírus neste período tenham alterado a patogênese (processo que leva à doença) do adenovírus. Então, se antes ele não causava hepatite grave em crianças saudáveis, agora poderia oferecer esse risco.
Enquanto a ciência investigava, os casos atingiram um pico e, sem explicação aparente, começaram a cair no mundo todo. Hoje, Perazzo diz que não há motivo para alarde e que dificilmente a situação voltará a se repetir – era um retrato do momento. Mas ainda são necessários o monitoramento dos órgãos de saúde e a continuidade dos estudos para mapear o futuro da doença.
Atenção aos sintomas
Misteriosa ou conhecida, fato é que a hepatite pode trazer graves prejuízos para a criança, já que é no fígado que acontece a produção de bile, a síntese de proteínas, a fabricação de hormônios e a excreção de substâncias tóxicas, entre outras funções. E é preciso um olhar cuidadoso. Nem sempre os sintomas iniciais de um problema no fígado são aparentes, por isso, é comum escutar que a hepatite é uma doença silenciosa: quando nos damos conta, ela já se instalou. Por causa desse cenário, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) estima, por exemplo, que apenas 22% dos infectados (de todas as idades) por hepatite C em 2021 foram diagnosticados.
“O primeiro sintoma costuma ser fadiga, mas é quando os olhos ficam amarelos que conseguimos notar a doença. O xixi escuro (colúria) e as fezes esbranquiçadas (acolia fecal) também aparecem em fases em que já existe a alteração da bilirrubina (substância produzida pelo fígado)”, explica a hepatologista pediátrica Adriana Porta Miche Hirschfeld, membro do grupo de Transplante Hepático Pediátrico do Hospital Sírio-Libanês e Hospital Infantil Menino Jesus, ambos em São Paulo.
Por isso, diante de qualquer sintoma, você já sabe: procure atendimento médico. O diagnóstico costuma aparecer no exame de sangue e, na maioria das vezes, tem um curso benigno. Na hepatite aguda grave, a pior complicação é a falência do fígado, que leva a um transplante. Já na crônica pode ocorrer cirrose hepática, hemorragia digestiva, água na barriga e desnutrição, além de uma predisposição ao câncer.
Apesar da gravidade da doença, a boa notícia é que ela é rara em crianças. De acordo com o Boletim Epidemiológico de Hepatites Virais de 2022, houve uma redução de 85,5% na taxa de incidência de hepatite A em crianças menores de 5 anos, e de 92,9% dos 5 aos 9 anos, entre 2014 e 2021. Mérito da vacina!
No Brasil, a rede pública oferece as vacinas de hepatite A e hepatite B isoladas, e na rede particular é possível encontrar o imunizante que combina as duas. Vale lembrar que a taxa de vacinação não tem atingido a meta preconizada de 95%. Em 2022, 72,85% das crianças tomaram a vacina da hepatite A, e 76,24% a da hepatite B, segundo o Datasus. “Como a imunização caiu muito, a preocupação é voltarmos a ver um aumento da hepatite aguda em crianças daqui a alguns anos”, alerta a gastroenterologista Gilda Porta, presidente do Departamento de Hepatologia Pediátrica da Sociedade Brasileira de Pediatria e membro da Sociedade Brasileira de Hepatologia.
A seguir, confira os principais tipos da doença, como prevenir e tratá-los:
Hepatite A
Causada pelo vírus da hepatite A (HAV), a transmissão acontece de forma fecal-oral, por meio da água ou alimentos contaminados. Por isso, há chance de se espalhar rapidamente numa creche, por exemplo, e são necessárias medidas de higiene preventivas para barrá-la. Os sintomas se confundem com os de viroses: fadiga, febre, náusea, perda de apetite e dor abdominal, além da icterícia, vômito, fezes claras e urina escura.
O tratamento consiste em amenizar os desconfortos e manter a hidratação. O Programa Nacional de Imunizações (PNI) disponibiliza uma dose gratuita da vacina aos 15 meses. Já a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBim) e a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) recomendam duas doses, aos 12 e 18 meses. Na rede particular, existe ainda a opção da vacina combinada contra a hepatite A e B (com preço médio de R$ 235*), que também deve ser aplicada em duas doses, a partir dos 12 meses, com intervalo de seis meses entre elas.
Hepatite B
A hepatite B (HBV) tem sintomas semelhantes aos da hepatite A, porém, é transmitida por fluidos corporais infectados, como sangue e sêmen. Em crianças, a transmissão ocorre principalmente de mãe para filho. Por isso, a gestante tem de fazer o teste e iniciar o tratamento (em geral, com antiviral específico) na gravidez, se o resultado for positivo. Nesse caso, o bebê também precisa receber a imunoglobulina (medicamento com anticorpos) contra hepatite B após o nascimento, como medida profilática.
“Nas hepatites virais, o corpo costuma criar uma memória imunológica e a doença não volta, mas, na hepatite B, pode se tornar crônica”, alerta a gastroenterologista Gilda. Isso tende a ocorrer quando é adquirida na infância. Felizmente, existe vacina para proteger desde cedo. A primeira dose é administrada nas primeiras horas de vida, e os reforços podem ser no esquema 2-4-6 meses, quando utilizada uma imunização combinada (pentavalente ou hexavalente, que inclui a vacina da hepatite B). Para quem não recebeu no primeiro ano, a recomendação são três doses, com intervalo de um ou dois meses entre a primeira e a segunda, e de seis meses entre a primeira e a terceira.
Hepatite C
Rara em crianças, é causada pelo vírus da hepatite C (HCV), sendo similar à hepatite B tanto nos sintomas e diagnóstico quanto na transmissão. Há, no entanto, uma particularidade: pode ser a mais sorrateira das hepatites, por normalmente causar sintomas leves ou mesmo ser assintomática. O tratamento também depende da gravidade e, apesar de não existir vacina para esse tipo, há antivirais específicos, com respostas de 95% de cura. A progressão pode levar a uma cronificação com danos severos para o fígado no futuro, como cirrose e câncer, daí a importância de detectar e tratar o quanto antes.
Outras hepatites possíveis
Com a vacinação, as hepatites A e B foram controladas, mas além da C, existem outros vírus que também podem levar à inflamação no fígado. É o caso da mononucleose, causada pelo vírus Epstein-Barr. Transmitida por partículas de saliva e fluidos, é apelidada de “doença do beijo”, comum entre adolescentes, e causa fadiga, febre e aumento dos gânglios.
No caso da hepatite D (HDV), chamada de delta, uma curiosidade: a infecção só ocorre em quem já teve hepatite B. Por isso, a transmissão e as complicações também são iguais e, apesar de não ter vacina específica, as doses contra a hepatite B ajudam a preveni-la. Já a hepatite E (HEV) é semelhante à A na transmissão oral-fecal e nos sintomas, mas é rara no Brasil e não leva a complicações graves.
Outras causas incluem o citomegalovírus, as arboviroses (dengue, zika, chikungunya e febre amarela), bactérias e a hepatite autoimune. “Nessa, é o próprio organismo que cria anticorpos que agridem o fígado”, explica a hepatologista pediátrica Adriana. E, por fim, duas formas pouco frequentes em crianças: a hepatite medicamentosa, causada por medicamentos, produtos químicos ou toxinas, e a hepatite alcoólica, desencadeada pelo consumo excessivo de álcool.
Qual a ligação entre hepatite e covid?
No princípio do surto, especulava-se que a vacina contra a covid pudesse ser a culpada, mas os pesquisadores refutaram a tese, uma vez que a hepatite atingiu, em sua maioria, crianças menores de 5 anos, ainda não vacinadas à época.
Há, entretanto, linhas de estudos que conectam a hepatite com quem teve o coronavírus, já que as sequelas da infecção poderiam afetar o sistema imunológico e o trato gastrointestinal – um estudo feito na Universidade de Hamburgo (Alemanha) demonstrou a preferência do SARS-CoV-2 pelas células do fígado. Outra hipótese, de acordo com um artigo publicado no periódico The Lancet, relaciona a hepatite com o adenovírus 41F (subtipo que causa infecções gastrointestinais na população pediátrica) em crianças previamente infectadas pela covid.
“Minha filha tem uma hepatite de causa desconhecida”
“Isadora sempre foi ativa, mas no ano passado começou a perder o interesse por brincar. Ela estava inapetente, com dor na barriga, episódios de vômito e as fezes mais claras. Isso se repetiu por alguns dias, e os médicos disseram que era alguma virose. Como tinha as vacinas em dia, descartaram a hepatite, o que atrasou o diagnóstico.
Quando finalmente fez um exame de sangue, dez dias depois, já estava amarela, prostrada e com a urina escura, além de apresentar um hálito cetônico. O resultado foi positivo para hepatite. Isa foi internada de imediato e fez testes para descobrir a causa: hepatite A, hepatite B, adenovírus, Epstein-Barr… Aparecia um traço de que ela tinha sido infectada recentemente por algum vírus, porém não eram esses. Investigamos também hepatite medicamentosa e autoimune, além da possível ligação com covid, e nada. Ela, então, começou a ser tratada de hepatite viral sem causa definida.
No hospital, teve fobia alimentar (que pode surgir após episódios de vômito) e ficou em repouso. Os médicos achavam que a doença atingiria um pico e depois cairia até o vírus sair do corpo, só que os números não paravam de subir. Uma hepatologista suspeitou da dieta e, de fato, ela melhorou com o acompanhamento nutricional. Porém, quando teve alta, uma semana depois, pegou uma gripe do irmão. O fígado inflamou e teve de ser internada de novo.
Depois, chegou a voltar para a escola, mas o quadro piorou. Agora, ela vai de vez em quando. Foram três internações no total. Sei que temos que dar tempo para o corpo se recuperar e seguir o tratamento à risca. Como minha filha tem só 6 anos, entretanto, é traumático passar por tudo isso. Se pudesse voltar no tempo, teria insistido nos exames de sangue logo que vi as fezes claras. Qualquer indicador precisa ser investigado e a gente é quem conhece nossos filhos de verdade.”
Julia de Paula Fadel, 31 anos, publicitária, e mãe de Isadora, 6 anos
*Preço consultado em abril de 2023
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