Por Elisama Santos

Elisama Santos é psicanalista, educadora parental, escritora... ver mais

Elisama Santos: "Precisamos atualizar a nossa forma de olhar para as crianças e para nós mesmos"

Nós aprendemos a enxergar nossos filhos como cadeiras que podem ser consertadas, lixadas, envernizadas. Nossos olhos buscam os defeitos para serem ajustados


Por muitos anos eu iniciei meus workshops e palestras com uma citação do Herb Garden, que conheci por meio do livro Comunicação não violenta, Editora Ágora, escrito pelo Marshall Rosenberg. “Quero que ele conheça exatamente a coisa especial que ele é, senão não perceberá quando ela começar a ir embora. Quero que ele permaneça desperto e veja as possibilidades mais loucas. Quero que ele saiba que vale a pena fazer de tudo só para dar ao mundo um pequeno pontapé quando se tem a chance. E quero que ele saiba a razão sutil, fugidia e importante pela qual nasceu humano, não uma cadeira.” Assim que encerrava a fala, perguntava quem, naquele dia, havia lembrado qual a razão sutil, fugidia e importante pela qual nasceu humano e não cadeira. Geralmente o silêncio imperava. Daí eu ampliava o prazo. E essa semana? E nessa quinzena? A sala permanecia quieta.

Nós aprendemos a enxergar a nós mesmos e ao outro, sobretudo aos nossos filhos, como cadeiras que podem ser consertadas, lixadas, envernizadas. Com olhos que buscam o defeito, notamos tudo que precisa ser ajustado e nos empenhamos a aparar arestas, desempenar, transformar. Temos a cadeira-modelo em mente, medimos as nossas crianças na proximidade ou distância da criança ideal. Sofremos e fazemos sofrer. Acontece que não temos o poder de moldar quem quer que seja ao nosso querer. Simplesmente não o temos. Todos temos, em nossas histórias de vida, marcas das tentativas de encaixe, de moldagem, de transformação de quem éramos para aproximação de um ideal que apenas nos fazia sentir inadequados e inadequadas, que escancarava a nossa humanidade: imperfeita, falha, caótica.

Não temos o poder de moldar nossos filhos de acordo com nosso querer — Foto: Crescer
Não temos o poder de moldar quem quer que seja ao nosso querer”
— Elisama Santos

Educar é como cuidar de plantas. Quando as folhas estão secas ou apodrecidas, quando a plantinha não cresce e se desenvolve bem, não culpamos a semente, não brigamos, não nos esforçamos para provar para ela como é ingrata e deveria nos entregar o melhor diante de como cuidamos dela. A gente observa se está recebendo muito ou pouco sol, se a água que lhe damos é suficiente, se precisa de adubo, de uma terra mais nutrida. Cada planta tem necessidades únicas e o seu desenvolvimento é uma dança das suas necessidades específicas com o ambiente. A gente não compara o cacto com a columeia, a jiboia com o lírio. São diferentes e pedem cuidados diferentes. Simples e complexo assim.

Precisamos atualizar a nossa forma de olhar para as crianças e para nós mesmos. Não somos marceneiros, não estamos transformando cadeiras defeituosas em cadeiras ideais, não estamos lidando com seres inanimados que não sentem dor com as nossas lixas e martelos e serras. Elas são como delicadas plantas que precisam de cuidado atento.

Crianças nascem sabendo que são importantes, que guardam em si todo o potencial do mundo. A nossa missão é manter viva a certeza de que existe uma razão sutil, fugidia e importante pela qual nasceram humanas, não cadeiras. E que, nesse difícil e lindo caminho, consigamos lembrar da razão sutil, fugidia e importante que nos faz humanos, demasiadamente humanos.

Elisama Santos é psicanalista, educadora parental, escritora, palestrante, mãe de Miguel, 8 anos, e Helena, 6 (Foto: Divulgação) — Foto: Crescer

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