Ontem estava em um espaço público, numa rua da Zona Norte de São Paulo. Uma criança brincava com argila na varandinha da sua casa, com uma folha de jornal protegendo o material das interferências externas àquela pequena obra de arte. Ela estava orgulhosa de seu feito. Estava toda suja. Eu parei por um minuto ali porque achei a cena muito atípica para nossos tempos, e confesso que fui tragado por um certo sinal de nostalgia.
![Criança brincando de pintar — Foto: Freepik](https://cdn.statically.io/img/s2-crescer.glbimg.com/tvbNNYoZL_yGJDvvEMsxXuBFduk=/0x1037:5267x6905/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_19863d4200d245c3a2ff5b383f548bb6/internal_photos/bs/2024/j/E/2qKfxdSA6NR3ERRNVAuw/full-shot-child-floor-painting.jpg)
Pareceu-me uma cena da casa de minha bisavó, no sertão mineiro, ou de meus filhos numa pequena vila em que moramos no sul baiano. Mas era uma cena da capital paulista, o que lhe conferia ainda mais relevância e raridade. Reunia elementos como: arte, ausência de tela, um tanto de natureza, a fruição de um tempo mais sereno e menos acelerado e uma mangueira colocada estrategicamente para limpar tudo no final.
Saí de lá entre o suspiro e o lamento. Um dos sintomas mais carregados de preocupação na forma como estamos criando nossos filhos é a transformação do cuidado em remédio, da ideia de saúde em doença e do diagnóstico como a bússola de que tudo está sendo feito em seu benefício. Aquela criança da varanda com sua argila não era portadora de nenhum diagnóstico que lhe daria uma medicação, um sem-número de terapias ou processos médicos. Ela era apenas, como eu digo, portadora de infância.
Temos nos esquecido do quanto a infância é uma oferta, em si, de atividades e atitudes saudáveis, que nos fazem desenvolver com alegria, inteireza e criatividade. Temos deixado que o discurso medicalizante nos convença de que somos muito mais imperfeitos e mais necessitados de intervenções.
Saúde mental não é sinônimo nem de doença nem de remédio. Precisamos voltar às bússolas com o norte direcionado ao lugar certo: saúde é um processo de vida que se constrói o tempo todo, em comunidade, em comunhão com a natureza, em convivência com a diferença e com a aceitação dos humores naturais da vida (medo, tristeza, culpa, raiva). Tristeza não é depressão, medo não é síndrome do pânico, infância moleca não é TDAH e angústia de existir não é transtorno de ansiedade.
Precisamos de muitos elementos na vida para darmos conta do intenso processo que é fazer escolhas, lidar com nossas limitações, com as frustrações do que não somos e não conseguimos ser. Isso se minimiza com encontro, com produção de sentido para a vida na coletividade, com tempo de silêncio, com delicadeza, com bom sono, com literatura infantil, com passeio no parque, com acompanhar o movimento de uma formiga enquanto ela leva uma folha nas costas.
Trocar isso por um remédio ou por um diagnóstico é uma perda irreparável. Infância é envolvimento com a vida. Voltar a ela, dentro de cada um de nós, é uma forma de convidarmos nossos filhos a um encontro com a argila, com o sorriso das mãos sujas e com a água da mangueira que tudo resolve em poucos segundos.
![Alexandre Coimbra Amaral é mestre em Psicologia pela PUC do Chile, palestrante, escritor, terapeuta familiar e de casais. Pai de Luã, 15, Ravi, 13, e Gael, 8. Colunista do Valor Econômico e consultor de saúde mental em escolas e empresas — Foto: Crescer](https://cdn.statically.io/img/s2-crescer.glbimg.com/FDqNNUGLRRBNj29BnMJz8tOBipM=/0x0:320x320/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_19863d4200d245c3a2ff5b383f548bb6/internal_photos/bs/2022/z/o/Ed0O82QAm9B775J6DPeQ/2021-08-24-thumbnail.jpeg)