• Daniele Zebini
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Pietro estava com 1 ano e 11 meses quando, em novembro de 2020, passou por uma consulta com o pediatra e veio a constatação: o menino tinha a linguagem correspondente à de um bebê de 10 meses. “Até de autismo os especialistas suspeitaram, mas o problema era o distanciamento social”, conta a mãe, a empresária Simone Rodrigues Ferreira, 37. “Com a reabertura e a volta a uma rotina mais normal, a ajuda da escola, e a gente estimulando mais, aos poucos, ele está melhorando”, diz. Pietro, hoje com 3 anos, ainda troca algumas letras, não consegue diferenciar certos fonemas por conta do uso das máscaras, e iniciou um tratamento com uma fonoaudióloga para recuperar o atraso

Boca de criança falando (Foto: Getty Images)

A pandemia foi um dos fatores que atrasou o desenvolvimento da fala de algumas crianças (Foto: Getty Images)

O impacto da pandemia no desenvolvimento da linguagem das crianças foi tão importante que, após 20 anos, em 2022, o CDC (Centers for Disease Control and Prevention), principal agência de promoção, prevenção e preparação da saúde nos Estados Unidos, em conjunto com a Academia Americana de Pediatria, atualizou o guideline sobre os marcos de desenvolvimento das crianças, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento da linguagem. Antes, uma criança de 24 meses deveria dizer, em média, 50 palavras. Agora, a expectativa de vocabulário na mesma idade foi reduzida para 30.

“O que o estudo coloca, e o que temos visto também na prática, é que o fato de as crianças terem ficado bastante tempo em isolamento social, sem contato com seus pares e, muitas vezes, em ambientes com pouca estimulação, além do aumento do número de horas em frente às telas (já que os pais estavam em home office), causou atrasos no desenvolvimento da linguagem”, afirma Livio Chaves, secretário do Departamento Científico de Pediatria do Desenvolvimento e Comportamento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).

No Brasil, não existe nenhuma pesquisa específica sobre o tema e, portanto, não houve uma mudança oficial nos parâmetros de desenvolvimento da linguagem. Mas a constatação de que houve atrasos é inegável. “No último Congresso Brasileiro de Fonoaudiologia, que ocorreu em outubro de 2021, vários profissionais afirmaram que foi observado um atraso no desenvolvimento de linguagem e de aprendizagem das crianças durante a pandemia”, conta a fonoaudióloga Renata Sader, de São Paulo.

De acordo com Renata, vários fatores estão relacionados a esse atraso. O uso de máscaras é um deles, pois, se perdem os apoios visuais dos pontos articulatórios da fala (ou seja, da boca), o volume de fala é diminuído, e podem ocorrer distorções dos fonemas. A falta de estimulação por parte dos cuidadores também interferiu. Afinal, eles tiveram de se dividir entre as atividades profissionais, tarefas domésticas e cuidados com os filhos, o que comprometeu a atenção que poderiam dedicar às crianças. Além disso, a pandemia e o isolamento social trouxeram a falta de estimulação e socialização com outras crianças, atividades mais dirigidas de contação de histórias e brincadeiras ao ar livre, onde os cinco sentidos são estimulados.

“Isso parece ter ficado ainda mais evidente nas camadas sociais menos favorecidas, que não puderam contar com aulas online. No retorno presencial das aulas, notou-se um desenvolvimento de vocabulário reduzido e dificuldades em organizações sintáticas mais elaboradas”, afirma a fonoaudióloga Renata Sader.

 (Foto: Getty Images)

(Foto: Getty Images)

Estimular é o caminho

Um outro estudo, da Universidade de Oslo (Noruega), mostrou que a aquisição da linguagem depende dos estímulos que a criança recebe em casa, por isso, algumas até ampliaram bastante o vocabulário durante o lockdown. “Isso, provavelmente, aconteceu porque um dos pais não pôde exercer seu trabalho, e se dedicou integralmente a essa criança, ou porque um familiar com perfil estimulador assumiu esse cuidado. No consultório, observei que alguns autistas, por exemplo, melhoraram nessa situação, ao contrário do grande impacto negativo que houve no desenvolvimento da grande maioria deles”, diz a neuropediatra Adriana Ladeira Cruz, de São Paulo.

Com ou sem pandemia, com ou sem mudanças nos parâmetros do desenvolvimento da linguagem das crianças, é fundamental fazer uma avaliação assim que for detectada qualquer alteração na forma que o pequeno fala (ou não fala!), seja em casa, seja no consultório. “Muitas vezes, orientações simples ou pequenas modificações podem proporcionar um grande avanço e até mesmo evitar que o quadro piore. Em casos mais graves, como no transtorno do espectro autista e apraxia (saiba o que é mais à frente), por exemplo, quanto mais cedo a intervenção, melhores as chances de um bom desenvolvimento de linguagem”, alerta Renata.

Foi com a ajuda de uma fonoaudióloga que Rodrigo, 7 anos, conseguiu recuperar a linguagem perdida durante a pandemia. Em 2020, na época com 5 anos e em fase de alfabetização, suas aulas passaram a ser online – e tanto a professora como a diretora notaram a dificuldade do menino em pronunciar encontros consonantais, principalmente com o R “vibrante”. “Em vez de Rodrigo, ele dizia Rodigo. Buscamos uma avaliação fonoaudiológica e, em maio daquele ano, iniciou as sessões. Em meados de 2021, já conseguia pronunciar corretamente as palavras que tinha dificuldade”, conta a mãe, a vendedora Anna Caroline Faria de Araujo, 32. Rodrigo teve alta da fonoaudiologia em dezembro. 

E você, está com a pulga atrás da orelha com o desenvolvimento da linguagem do seu filho? Para entender quando é preciso buscar ajuda, reunimos 12 perguntas com respostas dos especialistas – de leitores que chegaram pelo Instagram até questões frequentes nos consultórios dos médicos – que você confere agora.

 (Foto: Getty Images)

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1. Existe uma idade certa para começar a falar?

Mais do que a fala, é fundamental verificar o que a criança compreende. Deve-se avaliar se ela reconhece familiares pelos nomes, se interage, se olha nos olhos, se faz gestos de imitação, se tenta fazer sons, se conhece brinquedos pelos nomes, se segue ordens simples, como “dá a bola para a mamãe”, “manda beijo para a vovó”, se reconhece partes do corpo… Se, até os 2 anos, o pequeno não desenvolver a habilidade de comunicar seus desejos de forma oral, usar a linguagem gestual de forma contínua e não procurar contato ou compreender a linguagem do outro, os pais devem procurar ajuda.

2. Meu filho tem 2 anos e 6 meses, falava superbem e começou a gaguejar. É normal?

@roselitiemi
A gagueira (disfluência) é uma alteração do ritmo normal da fala. Entre 2 e 3 anos, ela pode aparecer de forma passageira, a chamada disfluência do desenvolvimento, que é fisiológica, ou seja, faz parte do desenvolvimento da linguagem como um todo. Se a situação persistir após os 3 anos, com repetições de sílabas, bloqueios em sons ou falta de fluência, é importante fazer uma avaliação profissional, pois o especialista vai analisar quais são os tipos de rupturas na fala, a velocidade e a frequência com que ocorrem, e ver se estão dentro dos parâmetros esperados para a idade ou não.

3. Devo me preocupar com a troca de fonemas aos 3 anos?

@bianca.biarib
É comum que os sons das letras /s/ e /z/ sejam trocadas pelos sons de /x/ e /j/, respectivamente. Trocar o som de /r/ por /l/ e ausência de /r/ em final de sílaba também é comum no início da aquisição da fala, aproximadamente até os 5 anos. No entanto, se essas trocas trouxerem algum prejuízo funcional (quando uma dificuldade causa redução na qualidade de vida) para a criança, não se deve esperar os 5 anos para investigar e, se necessário, tratar. Na dúvida, consulte um especialista.

4. O que é apraxia da fala?

É um distúrbio neurológico motor que afeta a capacidade de a criança produzir e dar sequência aos sons necessários para desenvolver a linguagem (algumas erram letras, outras, não conseguem emiti-los, entre várias questões). Pode ser causada por múltiplos fatores, e o tratamento se dá com a fonoaudiologia. O distúrbio tem diagnóstico complexo, difícil até para os especialistas. Geralmente, o primeiro sintoma percebido é o atraso na fala. Entretanto, a apraxia tem graus e, muitas vezes, os menos severos podem ser confundidos com um quadro de trocas de letras. Achou que tem algo errado? Procure uma avaliação com um fonoaudiólogo.

5. Língua presa prejudica o desenvolvimento da linguagem?

Primeiro é importante fazer uma distinção do que se chama, popularmente, de língua presa. Para muitas pessoas, é quando a língua sai entre os dentes durante a fala, principalmente nos sons de “s” e “z”. Na verdade, isso é o chamado “ceceio”, que pode ser corrigido com fono. Outra coisa é quando falamos do freio lingual, aquela mucosa que fica abaixo e no meio da língua. Quando ele é encurtado, a língua fica presa, no sentido de que seus movimentos podem ser limitados, especialmente na produção de sons como /l/ e /r/, prejudicando a fala. Neste caso, pode haver necessidade de intervenção cirúrgica. O ideal é que seja feito o teste da linguinha já na sala de parto – desde 2015, inclusive, todas as maternidades vinculadas ao SUS são obrigadas a providenciá-lo antes da alta do bebê –, para detectar o quanto antes o encurtamento do freio lingual, que, além da fala, pode atrapalhar a amamentação, a introdução alimentar, a mastigação e a deglutição.

6. Quando buscar um fonoaudiólogo?

@roberta_kawase
É muito importante fazer as consultas de rotina com o pediatra e levar a ele suas dúvidas em relação ao desenvolvimento da linguagem do seu filho. Se for verificado que ela não está se desenvolvendo como o esperado, aí, sim, deve-se buscar um especialista. Ele saberá identificar a possível causa do problema e indicar um tratamento. Às vezes, só uma orientação ou encaminhamento para testes específicos já ajudam muito e revertem um quadro que poderia se agravar. Um exemplo disso é um atraso de fala por causa de otite média de repetição, algo relativamente comum. A criança fica com a audição comprometida, dependendo da condição das secreções no ouvido médio. Isso prejudica ouvir e, consequentemente, o desenvolvimento da fala. Um encaminhamento para exames audiológicos, solicitados pelo otorrinolaringologista, é capaz de resolver o problema, já que o profissional pode prescrever desde medicamentos até uma cirurgia. Os pais costumam ter uma boa percepção sobre algo que não vai bem, então, em caso de qualquer suspeita, procure um médico para uma avaliação.

7. Criança bilíngue pode ter problemas no desenvolvimento da linguagem?

Não há nenhuma evidência científica realmente robusta que demonstre que a exposição a duas ou mais línguas provoque dificuldade na aquisição da linguagem. O que pode acontecer é de a criança misturar palavras de ambas as línguas em uma mesma frase, mas a tendência é isso se estabilizar com o desenvolvimento. Obviamente, se o pequeno tiver qualquer dificuldade em relação à linguagem, é necessário avaliar se é melhor priorizar um idioma e deixar o outro para mais tarde. Porém, via de regra, a criança pode ser bilíngue desde o nascimento.

8. O que é dislexia? Ela atrapalha a fala?

A dislexia é um transtorno ligado especificamente ao desenvolvimento da leitura e escrita. A criança disléxica apresenta dificuldades ao ler, troca letras na escrita, enfim, tem prejuízos em relação à compreensão e expressão nestes dois quesitos. É um transtorno neurológico, ligado a um fator genético. O diagnóstico e o tratamento devem ser feitos por uma equipe multidisplinar. Mas a dislexia não compromete o desenvolvimento da fala propriamente dita.

9. Qual a relação entre a audição e a linguagem?

Toda. Para o desenvolvimento da linguagem oral é fundamental ter a compreensão dos sons da linguagem verbal, que ativam as conexões cerebrais para a linguagem, formando memórias da estrutura da língua. Ao ouvir os adultos ao redor, o pequeno desenvolve sua fala. Crianças que não ouvem também desenvolvem a linguagem, mas de maneira diferente, por meio de gestos e língua de sinais, com regras linguísticas próprias.

10. Meu filho tem 6 anos e não consegue falar frases longas e coerentes. O que deve ser?

@evelinmonteferreira
Por volta dos 5 anos, já é esperado que a linguagem esteja madura. As causas para esse atraso podem ser várias, portanto, é preciso fazer uma avaliação global da criança para entender o que está acontecendo. Essa análise, em geral, inclui avaliação motora (para checar fraqueza muscular), física (para averiguar se há freio lingual encurtado) e auditiva (para estudar a discriminação de fonemas). O atraso pode tanto ser algo simples e de fácil resolução como também um dos sinais de que o neurodesenvolvimento está atrasado como um todo. Fica a dica: busque o quanto antes um especialista já que, quanto antes houver um diagnóstico, melhor.

11. Meu filho tem TDAH. Isso pode atrasar o desenvolvimento da linguagem?

@cerimonialmarcela__coutinho_
O TDAH por si só não atrapalha o desenvolvimento da linguagem, mas pode vir associado a transtornos de comunicação e linguagem e, neste caso, é possível que a criança apresente atrasos, sim. Vale fazer uma avaliação multidisciplinar com pediatra, neurologista e fonoaudiólogo para avaliar a situação e, se necessário, iniciar um tratamento.

12. Minha filha tem 6 anos e apresenta muita dificuldade para falar palavras com a letra R. Devemos procurar ajuda?

@caroll_oliveira0605
Sim, é importante ter a avaliação de um especialista. Nessa idade, já é esperado que a criança consiga falar todos os fonemas corretamente. Pode haver alguma questão motora, como fraqueza muscular, por exemplo. Muitas vezes, uma criança pode apresentar a musculatura orofacial mais flácida, por diversas causas: respiração oral, hábitos orais inadequados, alimentação com consistência mais pastosa etc. Isso leva a alterações da força da musculatura oral, inclusive a língua. E para a produção do /R/, a língua precisa conseguir executar esse movimento preciso com a força. Questões físicas, como o freio lingual encurtado, ou auditivas também podem impedir a pronúncia correta. Consulte um especialista.

 (Foto: Getty Images)

(Foto: Getty Images)


LÍNGUA AFIADA

Existem algumas práticas no dia a dia que os pais podem introduzir às crianças para ajudá-las no desenvolvimento da fala. Durante a pandemia, é ainda mais importante estimular esta habilidade e atentar-se aos sinais para saber o momento de consultar o médico. Confira as dicas dos especialistas:

• Interaja com a criança, usando brinquedos adequados para a idade dela
• Mostre e nomeie as partes do corpo do pequeno
• Fique na mesma altura do seu filho enquanto ele fala
• Mostre fotos de familiares, descreva-os e conte histórias sobre eles
• Ofereça oportunidade para que a criança se expresse, e não tente adivinhar o que ela precisa com algum gesto não verbal. Ou seja: tenha a paciência de esperar que o pequeno complete aquilo que quer dizer
• Faça pequenas correções, mas não “corte” a criança. Uma ideia é formular uma pergunta sobre aquilo que ela acabou de expressar, mas usando a palavra na sua forma correta
• Procure falar de forma mais pausada para que ela consiga compreender melhor o que é dito, de acordo com a sua idade
Ouça música com o seu filho, e conversem sobre o significado da letra
Leia para a criança sempre, desde a gestação!

Fontes: Adriana Ladeira Cruz, neuropediatra de São Paulo; Livio Chaves, secretário do Departamento Científico de Pediatria do Desenvolvimento e Comportamento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e Renata Sader, fonoaudióloga de São Paulo

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