• Texto Anita Krepp
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A Cannabis sativa é a planta que dá origem aos produtos psicoativos e ao cânhamo, fibra usada na produção de blocos para construção e peças de design decorativas (Foto: Pixabay / Biw99 / Creative Commons)

A Cannabis sativa é a planta que dá origem aos produtos psicoativos e ao cânhamo, fibra usada na produção de blocos para construção e peças de design decorativas (Foto: Pixabay / Biw99 / Creative Commons)

Concreto, aço e madeira compõem o triunvirato de materiais clássicos da construção civil hoje. A maioria dos edifícios contém todos os três em alguma medida, mas só um deles é predominante. Arquitetos e engenheiros optam por esses materiais com tanta regularidade que o mercado parece impenetrável a novas alternativas. No entanto, uma quarta opção está entrando em cena – e pode se tornar a próxima tecnologia na estrutura de edifícios, depois da madeira maciça. Ele mesmo, o cânhamo.

A fibra do cânhamo, parte não psicoativa da planta de cannabis – que chegou ao Brasil com as caravelas portuguesas, no começo do século 16 –, tem sido usada há anos ao redor do mundo para fazer cordas, isolamentos, bioplásticos e outros materiais industriais por causa de sua força e rápido crescimento. 

Cesto produzido com uma mistura de cogumelos e cânhamo pela designer ucranianaYovaYager,em colaboração com o S.Lab (Foto: Salva López / Divulgação )

Cesto produzido com uma mistura de cogumelos e cânhamo pela designer ucraniana Yova Yager, em colaboração com o S.Lab (Foto: Salva López / Divulgação)

Até recentemente, o cânhamo permaneceu como um produto periférico – o mais conhecido deles é o hempcrete, ou concreto de cânhamo – na indústria da construção. Agora, vem se tornando uma opção cada vez mais viável para elementos de construção comuns pelas suas semelhanças com a madeira.

A capacidade de sequestro de carbono da madeira – e pegada de carbono favorável em comparação com o concreto e o aço – ajudou a popularizar seu uso na construção. Mas a colheita excessiva e o desmatamento despertaram preocupações no setor, que voltou os olhos para o cânhamo, que, assim como a madeira, também armazena carbono, só que em escala muito maior. 

A cadeira Hemp Fine, do estúdio inglês Nomique, traz uma concha produzida exclusivamente a partir de biomaterial de cânhamo e resina, que é biológico e reciclável (Foto: Divulgação)

A cadeira "Hemp Fine", do estúdio inglês Nomique, traz uma concha produzida exclusivamente a partir de biomaterial de cânhamo e resina, que é biológico e reciclável (Foto: Divulgação)

Com cultivos em ciclos de 90 dias a 120 dias, o cânhamo cresce cem vezes mais rápido que o carvalho, por exemplo. Segundo Lorenzo Rolim da Silva, presidente da Associação Latino-Americana de Cânhamo Industrial (LAIHA), a planta também sequestra quatro vezes mais carbono que uma floresta de tamanho semelhante, com absorção de mais de 20 toneladas de carbono por hectare. A própria associação já pôde verificar até 70 toneladas de carbono sendo removidas da atmosfera durante um ciclo de cultivo em um hectare.

Nesta foto, detalhe do cânhamo na estrutura de casa com mais de 200 anos localizada em Maiorca. O material foi usado pelo escritório de arquitetura espanhol Ideo para conter a umidade do local. O cânhamo tem capacidade higrotérmica e aumenta o conforto (Foto: Ideo / Divulgação)

Nesta foto, detalhe do cânhamo na estrutura de casa com mais de 200 anos localizada em Maiorca, na Espanha. O material foi usado pelo escritório de arquitetura espanhol Ideo para conter a umidade do local. O cânhamo tem capacidade higrotérmica e aumenta o conforto (Foto: Ideo / Divulgação)

Com o tempo, o cânhamo começará a competir com concreto, aço e madeira – principalmente na área de construção residencial. Essa transformação foi acelerada pela recente escassez de madeira, levando à escalada de preços.

Os produtos de construção à base de cânhamo apresentam vantagens estruturais que podem representar uma tecnologia disruptiva na construção, mas ainda esbarram no preço. Um detalhe que, segundo Lorenzo, não necessariamente afetará o Brasil quando a matéria-prima for autorizada no país. “França, Bélgica e Canadá usam calcários e argilas específicos, produtos caros para fazer o hempcrete, por isso o valor mais alto. Mas ao trazer para a realidade brasileira, as empresas daqui adaptarão esses materiais, e o preço tende a ser menor”, conta. 

O estúdio parisiense Lemoal Lemoal foi o responsável pela construção e usou blocos de concreto de cânhamo (Foto: Elodie Dupuis / Divulgação Lemoal Lemoal)

O estúdio parisiense Lemoal Lemoal foi o responsável pela construção e usou blocos de concreto de cânhamo (Foto: Elodie Dupuis / Divulgação Lemoal Lemoal)

Nas betoneiras, o cânhamo, o calcário em pó e a água são misturados para obter uma pasta espessa, que, por meio de reações químicas, petrifica e se torna um bloco leve e muito resistente. Para a construção de paredes, a mistura pode ser disposta como blocos não estruturais, pulverizada ou vazada em formas lineares, da mesma forma que as paredes de barro.

O hempcrete tem excelentes propriedades termoacústicas, ajuda a regular a temperatura e a umidade interna e é resistente ao mofo. Em teoria, se novas estruturas forem construídas com cânhamo em vez de concreto, aço ou madeira, a indústria da construção poderá mudar drasticamente para carbono neutro em poucos anos.

Mais sustentável

As estruturas à base de cânhamo datam dos tempos romanos, embora o primeiro edifício moderno de concreto de cânhamo tenha sido construído em 1986, na França. Hoje, estruturas à base de cânhamo podem ser encontradas em todo o mundo. Como o cultivo de cânhamo é legal em toda a Europa, o continente tem centenas de edifícios que usam concreto de cânhamo. A França, em particular, lidera, pois é o maior produtor de cânhamo da Europa. 

Fachada da casa Natural, que foi reestruturada com cânhamo pelo escritório de arquitetura espanhol Ideo. O interessante é que o cânhamo coleta a umidade do solo e a transmite para o ambiente interno, não ficando nas paredes (Foto: Salva López / Divulgação Ideo)

Fachada da casa Natural, que foi reestruturada com cânhamo pelo escritório de arquitetura espanhol Ideo. O interessante é que o cânhamo coleta a umidade do solo e a transmite para o ambiente interno, não ficando nas paredes (Foto: Salva López / Divulgação Ideo)

Lemoal Lemoal, uma empresa francesa de arquitetura e paisagismo da cidade de Croissy-Beaubourg, concluiu o primeiro edifício público de concreto de cânhamo daquele país: o pavilhão esportivo Pierre Chevet.

O edifício de 380 m² inclui uma sala de ginástica e vestiários e é um dos edifícios de destaque feito à base da matéria-prima. Os arquitetos do estúdio disseram que o principal desafio com o cânhamo foi convencer os clientes de que esta é uma alternativa viável ao concreto, já que uma parede de cânhamo parece um pouco mais rústica e menos refinada. 

O centro esportivo Pierre Chevet,na França, primeiro edifício público daquele país construído com o biomaterial (Foto: Elodie Dupuis / Divulgação Lemoal Lemo)

O centro esportivo Pierre Chevet, na França, primeiro edifício público do país construído com o biomaterial (Foto: Elodie Dupuis / Divulgação Lemoal Lemo)

No caso do pavilhão esportivo, as paredes do edifício foram preenchidas com blocos de concreto de cânhamo, depois revestidas com painéis de fibra de cimento para proteger os blocos de cânhamo das condições climáticas.

O cânhamo usado na obra foi cultivado e fabricado a 500 km do local, outro ponto positivo para a conta da sustentabilidade, o principal argumento em favor do uso do hempcrete. Suas propriedades de isolamento também favorecem seu uso, por ser vantajoso a longo prazo, em razão da redução das contas de energia

Vaso feito com a mistura,que possui propriedades hidrofóbicas, isolantes de calor e de som (Foto: Divulgação)

Vaso feito com a mistura, que possui propriedades hidrofóbicas, isolantes de calor e de som (Foto: Divulgação)

Felizmente, esse novo material, por ser ecológico, tende a ter adoção mais ampla na arquitetura em todo o mundo. Os materiais de construção são responsáveis por 11% das emissões globais de carbono, de acordo com dados da agência internacional de energia (IEA) e, na medida em que a indústria da construção procura maneiras de reduzir sua pegada de carbono, cientistas, arquitetos e fabricantes procuram materiais naturais. Juntamente com outros biomateriais, como micélio e algas, o cânhamo vem ganhando popularidade como um dos materiais mais sustentáveis do planeta.

À prova de fogo

Se antes o cânhamo era comum apenas na fabricação de têxteis, agora há um movimento intenso de “engenharia reversa” na forma de placas e blocos de cânhamo prensados. Mas ainda não no Brasil, onde todos os subprodutos da Cannabis sativa, a planta que dá origem tanto aos produtos psicoativos quanto ao cânhamo, são considerados ilegais.

Uma confusão que deve ser esclarecida com a aprovação do Projeto de Lei 399 – que pretende regularizar os usos medicinal e industrial da planta e deve seguir para votação no Senado nos próximos meses.

Enquanto o Brasil espera para entrar no jogo, países ao redor do globo já estão em um processo avançado, testando como os materiais à base de cânhamo funcionam quando expostos ao fogo. Para medir as características de cada material, são realizados testes seguindo regras específicas. 

Pendente Chapeâu, de cânhamo tecido, criação do estúdioMis-Más,baseado em Barcelona (Foto: Divulgação)

Pendente "Chapeâu", de cânhamo tecido, criação do estúdio Mis-Más, baseado em Barcelona (Foto: Divulgação)

Nos Estados Unidos, por exemplo, os resultados de um teste com concreto de cânhamo mostraram um desempenho impressionante, alcançando notas máximas nas classificações de “propagação de chamas” e “produção de fumaça”, por causa da barreira formada pelo concreto de cânhamo – material não inflamável – entre a estrutura do edifício e o fogo. Dados disponíveis de outro estudo sugerem que o concreto de cânhamo resiste ao fogo durante 60 minutos, tempo que pode ser aumentado para 90 minutos ou 120 minutos de resistência.

Na Austrália, fizeram um teste simulando incêndios residenciais durante incêndios florestais, onde há potencial de acúmulo de combustível na base das paredes. Esta é uma situação particularmente preocupante naquele país, onde ocorrem rotineiramente grandes incêndios florestais. Nenhum dano foi observado nas paredes de concreto de cânhamo de 200 mm de espessura, que foram expostas a uma chama de 600 mm de altura, queimando diretamente contra a parede por um período de 60 minutos.

Revolução no design

O cânhamo pode ser usado quase em sua totalidade. Por exemplo, sua fibra é fiada para produzir tecidos; as sementes são moídas para a produção de óleo; enquanto o tronco de cânhamo prensado com cola é usado para uma variedade de materiais de construção e peças de design. Além disso, a celulose vegetal é amplamente utilizada para a produção de bioplástico, e outras partes da planta são empregadas pela indústria de papel. 

A mistura de cogumelo e cânhamo se tornou a base para o trabalho da designer ucraniana Yova Yager. Em colaboração com o S.Lab, Yovaproduz travessas, cestos e utensílios decorativos (Foto: Divulgação)

A mistura de cogumelo e cânhamo se tornou a base para o trabalho da designer ucraniana Yova Yager. Em colaboração com o S.Lab, ela produz travessas, cestos e utensílios decorativos (Foto: Divulgação)

Com o tempo, a aplicação do cânhamo industrial evoluiu para um número surpreendente de produtos, incluindo alimentos, roupas, móveis, materiais de construção, biocombustíveis, compostos plásticos e muito mais.

Atualmente, o cânhamo industrial é usado em mais de 25 mil produtos em todo o mundo. Inclusive no design de interiores, em objetos variados, como sofás, mesas, cadeiras, potes para plantas e decoração.

Entre as artistas que se destacam no uso do cânhamo como matéria-prima de suas invenções, está Yova Yager, uma designer ucraniana que, nos últimos tempos, suspendeu a autopromoção de suas criações nas redes sociais, onde agora publica conteúdos denunciando o ataque da Rússia a seu país, iniciado no fim de fevereiro deste ano. 

Esculturas esculpidas à mão pela designer Yasmin Bawa usando cânhamo e camadas de gesso de lima e argila (Foto: Divulgação)

Esculturas esculpidas à mão pela designer Yasmin Bawa usando cânhamo e camadas de gesso de lima e argila (Foto: Divulgação)

O estúdio de Yova, que está localizado na capital, Kiev, é o espaço de criação para as peças feitas com cânhamo. Buscando materiais alternativos ao plástico, ela chegou ao cânhamo para criações como jarros, vasos, pratos, porta-velas, entre outros.

A artista berlinense Yasmin Bawa transforma o cânhamo em material biodegradável para criar seus vasos de plantas monolíticos, exibidos pela primeira vez durante a Paris Design Week, em 2019. O material biocompósito é uma mistura de cal, gesso e cânhamo.

O resultado é uma pasta grossa, que Bawa molda para criar formas orgânicas, depois revestidas de uma pasta mais fina misturada com corante natural e finalmente polidas com azeite. Como o cânhamo não precisa entrar no forno, ele precisa de muito pouca eletricidade durante sua produção e processo de transformação em vasos de plantas monolíticas.