• Por Daniel Bolson
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Casa de Francisca – Rua Quintino Bocaiúva 22 - Sé - 1º andar (Foto: Casa de Francisca / Divulgação)

A Casa de Francisca, um local de espetáculos, oferece também um ótimo restaurante no coração de São Paulo e está localizada na edificação que foi a primeira sede da rádio nacional. O espaço passou por uma transformação, reutilizando a construção antiga existente, marcando os elementos modernos, com uma nova roupagem (Foto: Casa de Francisca / Divulgação)

Tenho um grupo de amigos, não apenas arquitetos, ligadíssimos em todos os tapumes novos de obras que vão surgindo pela cidade. Gostamos de especular nas nossas conversas sobre as mudanças que estão acontecendo pelas ruas e fazem parte do nosso cotidiano. Perceber a evolução dos espaços, ver avenidas pensadas para serem de grande fluxo, próximas ao transporte público, reciclando-se e absorvendo construções de densidade maior. Assim como observar áreas de conservação da história da cidade, que retratam outras épocas, outras dimensões e tipologias construtivas.

As cidades no Brasil se movimentam de uma maneira mais orgânica do que planejada, muito mais como consequência da iniciativa privada e de obras particulares, do que, propriamente, do urbanismo e planejamento.

Mas qual o limite do crescimento urbano? Parece-me que nossas cidades têm dificuldade de reconhecer que certas áreas já chegaram ao limite de sua densificação. Falta maturidade de quem tem o poder para reconhecer a finitude construtiva dos espaços, preservar o meio existente e sua história, e, com isso, manter também as pessoas que vivem por lá, mantendo o patrimônio e buscando urbanizar novas áreas.

Meu pai tem uma teoria um tanto utópica, mas interessante, que fala em voltar a criar núcleos verdes em regiões muito densificadas. O poder público adquiriria então, em sua teoria, miolos de centralidades, removendo construções e repovoando os espaços com natureza, criando áreas públicas de respiro.

Se essa teoria parece um tanto sonhadora demais, pensar em alternativas, como telhados verdes, coberturas coletivas, fachadas vivas, diminuição de espaços de estacionamento na rua em prioridade à criação de espaços convivência, parklets e pequenos jardins, certamente são, ainda que pequenas iniciativas, boas formas de conseguir melhorar essa atmosfera e humanizar mais espaços densificados.

A Livraria da Vila da Alameda Lorena, famosa por suas portas pivotantes que também são as vitrines da loja, é um reconhecido projeto de Isay Weinfeld, de 2007. (Foto: Reprodução / Isay Weinfeld / Leonardo Finotti)

A Livraria da Vila da Alameda Lorena, em São Paulo, famosa por suas portas pivotantes, que também são as vitrines da loja, é um reconhecido projeto de Isay Weinfeld, de 2007 (Foto: Reprodução / Isay Weinfeld / Leonardo Finotti)

Um exemplo muito surreal do qual tomei conhecimento recentemente, na minha última ida à São Paulo: fiquei muito chocado com a notícia de que a Livraria da Vila da Avenida Lorena, projeto premiado de não tanto tempo atrás, assinado por Isay Weinfeld, será demolida para dar espaço a um edifício residencial de pouquíssimas unidades, cada uma com pelo menos 300 m² e quatro vagas de garagem. Isso é o cumulo do absurdo.

O charme presente nesses bairros de vida cultural e social intensa nas calçadas, bem colocado em teorias da reconhecida urbanista Jane Jacobs, existe por causa desses espaços, da ligação de quem mora e passa por lá, pelas relações diárias que acontecem ali.

Entendo que existe, por diversas vezes, uma necessidade de mudanças e de usos, e mesmo uma dificuldade na conservação dos espaços. Mas se a graça do bairro está nessa vida que se percebe entre livrarias, restaurantes, bares, pequenas lojas em edificações, como a ocupação do espaço caminha para cada vez mais ceifar o maior atrativo, descaracterizando com o tempo essas regiões? Tornando tais vizinhanças em mais um bairro de prédios residenciais imensos, recuados, que em nada conversam com a rua, diminuindo consideravelmente os espaços comerciais e marcos do melhor que existia por ali?

No bairro de Pinheiros, também em São Paulo, duas realidades lado a lado, completamente contrastantes, chamaram-me a atenção: a quantidade de estabelecimentos charmosíssimos, em sobrados antigos, com projetos contemporâneos, respeitando a arquitetura original das construções,  com mesas nas calçadas. O clima charmoso dos conjuntos das pequenas casas com vida lado a lado, fomentando um astral maravilhoso na Rua dos Pinheiros.

Entretanto, simultaneamente, desde da última vez que havia estado por lá, seis meses antes, a percepção do visual do entorno já mudou muito. Tanto em demolições de conjuntos de pequenas construções antigas, como na altura dos novos edifícios, gigantescos, completamente desproporcionais com a vizinhança.

Isso sem falar no barulho de obra sete dias por semana, desde antes de amanhecer, com zero senso de civilidade com a vizinhança. Sou contra o discurso de que as edificações antigas devem todas, uma vez preservadas, virarem apenas espaços de contemplação e história. Inclusive, entendo que a melhor maneira de se manter a boa conservação de tais lugares é dar usos cotidianos a eles, que rentabilizem e, com isso, viabilizem a manutenção da existência de tais locais.

Recentemente a loja foi fechada e será demolida para a construção de um edifício residencial. (Foto: Reprodução / Isay Weinfeld / Leonardo Finotti)

Recentemente, a Livraria da Vila foi fechada e será demolida para a construção de um edifício residencial (Foto: Reprodução / Isay Weinfeld / Leonardo Finotti)

Aqui em Porto Alegre, por mais de uma década, foi muito conhecida a briga entre construção civil e associação de bairros, na situação de um conjunto de casas que teriam sido projetadas por um renomado arquiteto no início do século anterior, adquiridas por uma construtora. As residências estavam em mau estado de conservação e em uma área de altíssimo valor de metro quadrado.

A meu ver, era compreensível que o terreno contemplasse um novo uso, sendo que trabalhar apenas com as pré-existências poderia ser um tanto limitado em uma área central e tão nobre.

Analisando que essas casas se encontravam em uma área predominantemente residencial, sendo originalmente concebidas para serem moradias de final de semana, construídas há 100 anos, em um bairro que, décadas depois, tornou-se central, não seria interessante manter pelo menos a proporção em altura originalmente existente, ao invés de apenas substituí-las por uma edificação altíssima, com uma dúzia apartamentos luxuosos e que em nada deixa lembranças do que existiu ali?

A preservação e o tombamento podem também acontecerem do ponto de vista da escala dos espaços. Manter a ideia de poder visualizar o construído sem impactar visualmente o contexto existente, a proposta da comunicação e visuais do entorno, e, assim, de certa forma, a sensação desse lugar. Novamente, não foi esse o caso...

A proposta dos parklets é de criar pequenos espaços públicos como extensão das calçadas, usando de vagas de estacionamento. Foto do grande banco criado como prolongamento da calçada, em Londres, pelo WMB Studio. (Foto: Reprodução / goparks.london / Ed Butler / WMB Studio )

A proposta dos parklets é de criar pequenos espaços públicos como extensão das calçadas, usando de vagas de estacionamento. Foto do grande banco criado como prolongamento da calçada, em Londres, pelo WMB Studio. (Foto: Reprodução / goparks.london / Ed Butler / WMB Studio)

As obras públicas, ainda que em meio a toda a problemática que tenta a acompanhar esse tipo de projeto, são a forma mais potente de poder trazer uma qualificação urbana para diferentes públicos.

Entretanto, infelizmente, muitas vezes acontecem de maneira a relativizar problemáticas dos espaços, simplificar ideias e gerar proposições rasas. As razões para tal são diversas e bem conhecidas, sobra interesse de lucro através de uma realização feita da maneira mais simplória e visando retorno financeiro rápido, junto a interesses eleitoreiros.

Falta consulta popular, análise das reais necessidades, concurso de arquitetura e contratação de equipes qualificadas. A lógica dessa metodologia simplista pensa que os usuários desses ambientes públicos, muitas vezes de classes mais populares, contentarão-se com qualquer proposição feita, por mais mal elaborada e desconectada com a atualidade que seja. A reflexão de que a cidade é propriedade de seus usuários não é considerada.

Para fechar meu raciocínio, precisamos falar de outro fenômeno bizarro que está acontecendo nas cidades brasileiras: a proliferação de farmácias por quase todas as esquinas das mais diversas avenidas.

Construções pré-moldadas que surgem, muitas vezes no lugar de edificações existentes, que, na maioria das vezes tinham, inclusive, qualidade arquitetônica superior às novas proposições. Caixas espelhadas refletidas em geladas luzes brancas levantadas em poucos dias, que tem como paisagismo vagas de estacionamento. Uma repetição de comércios monotemáticos, fomentando a hipocondria e enfeiando o espaço urbano, esses estabelecimentos, muitas vezes, inclusive, são abertos um de frente para o outro.

O diagnóstico é de que as cidades, para além do abastecimento de medicações, estão precisando também de programas interessantes, que fomentem espaços mais diversos, relevantes, conectados à qualidade de vida e reais necessidades de quem as habita.

Rodapé colunista Daniel Bolson (Foto: Divulgação | Arte: Casa e Jardim)

Colunista Daniel Bolson (Foto: Divulgação | Arte: Casa e Jardim)