• Texto Nathalia Fabro
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A chef Clarinda Maria Ramos comanda a cozinha do Biatüwi casa de comida indígena em Manaus (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo)

A chef Clarinda Maria Ramos comanda a cozinha do Biatüwi, casa de comida indígena localizada no centro histórico de Manaus (Fotos: Tadeu Rocha / Editora Globo)

Em um casarão antigo no centro histórico de Manaus, funciona a primeira casa de comida indígena do Brasil, chamada Biatüwi. Inaugurado em 2020, o espaço recusa o rótulo de restaurante.

“A nossa ideia é mostrar um pouco da nossa cultura por meio da comida. Por trás de cada ingrediente, de cada tempero, tem uma cosmologia. Queremos mostrar que a comida indígena não é exótica, é aquilo que consumimos no dia a dia”, diz a chef Clarinda Maria Ramos, de 54 anos.

A entrada do Biatüwi, localizado na Rua Bernardo Ramos, n.97. O funcionamento é de quarta a sábado, das 11h30 às 15h (Foto: Tadeu Rocha/Editora Globo)

A entrada do Biatüwi, localizado na Rua Bernardo Ramos, n.97. O funcionamento é de quarta a sábado, das 11h30 às 15h (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo)

Os pratos unem ingredientes e saberes das etnias Tukano, da região do Alto Rio Negro, e Sateré-Mawé, do município Barreira, no Baixo Amazonas, onde Clarinda nasceu. Na juventude, ela deixou sua comunidade, em Ponta Alegre, para trabalhar em Parintins e depois em Manaus.

Anos mais tarde, formou-se em Pedagogia na Universidade Estadual do Amazonas (UEA) e, durante a graduação, conheceu o antropólogo João Paulo Lima Barreto – também chamado de Yupuri na língua tukano –, seu companheiro e co-idealizador do Biatüwi.

Puquecado (filé ou costela de peixe embrulhado na folha de cacau e assado no moquém, acompanhado de formigas torradas, porção de beiju, limão e farinha) (Foto: Tadeu Rocha/Editora Globo)

Puquecado (filé ou costela de peixe embrulhado na folha de cacau e assado no moquém, acompanhado de formigas torradas, porção de beiju, limão e farinha) (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo)

“Ele me motivou a voltar a estudar. Quando saí da comunidade, passei por muitas situações de preconceito, então tinha medo. Mas comecei a participar de reuniões do movimento indígena, entender a importância da minha cultura, e isso foi me incentivando”, declara a chef, que também fez mestrado em Antropologia na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

Aluá, tradicional bebida fermentada de abacaxi (Foto: Tadeu Rocha/Editora Globo)

Aluá, tradicional bebida fermentada de abacaxi (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo)

Durante os estudos, Clarinda e João começaram a pensar em maneiras de agregar valor a seus conhecimentos indígenas. No mesmo casarão do Biatüwi, o antropólogo já coordenava o funcionamento do Bahserikowi, centro de medicina indígena, desde 2017.

O imóvel, que já fora ponto de venda de artesanato de povos originários, foi cedido pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Assim, a ideia foi montar um local que nutrisse alma e corpo.

Clarinda na entrada da cozinha do Biatüwi (Foto: Tadeu Rocha/Editora Globo)

A chef Clarinda na entrada da cozinha do Biatüwi (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo)

“Nós não tínhamos dinheiro, nem sabíamos por onde começar, como elaborar um cardápio, fazer a apresentação dos pratos ou a administração da casa. Toda a experiência que eu tinha na cozinha era prática, da vivência na minha comunidade”, ela revela.

O principal apoio veio de Débora Shornik, chef do restaurante Caxiri, também em Manaus. Ao lado de amigos, a paulistana deu treinamentos, capacitou a equipe e ajudou a levantar recursos para o projeto sair do papel.

Porção de beiju e mujeca, caldo engrossado com goma, peixe desfiado e temperado com pimentas defumadas e polpa dos frutos umari ou japurá, típicos da Amazônia (Foto: Tadeu Rocha/Editora Globo)

Porção de beiju e mujeca, caldo engrossado com goma, peixe desfiado e temperado com pimentas defumadas e polpa dos frutos umari ou japurá, típicos da Amazônia (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo)

O estabelecimento abriu em novembro de 2020. O nome “bia” significa pimenta, e “wi”, morada. Ou seja, em tradução livre: “casa onde se prepara comida apimentada”. “Tradicionalmente, a comida indígena é bem picante. Mas aqui demos uma tranquilizada no ardume”, diz Clarinda. As receitas, assim como os ingredientes nelas usados, são provenientes de comunidades Tukano e Sateré-Mawé.

O Biatü é considerado comida dos deuses, consumido diariamente pelos povos indígenas do Alto do Rio Negro, com ou sem peixe, em vários horários. Na foto é acompanhado de beiju (Foto: Tadeu Rocha/Editora Globo)

O Biatü é considerado comida dos deuses, consumido diariamente pelos povos indígenas do Alto do Rio Negro, com ou sem peixe, em vários horários. Na foto é acompanhado de beiju (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo)

O carro-chefe do menu é o biatü, também chamado quinhapira, um caldo de peixe com tucupi preto. Outros destaques são a mujeca (caldo engrossado com goma, peixe desfiado e polpa de umari ou japurá), o puquecado (filé ou costela de peixe embrulhado na folha de cacau acompanhado de beiju e farinha) e as bebidas fermentadas.

Há, ainda, as formigas sahai e maniwara, torradas em farofas e porções. “Não usamos nenhum condimento, apenas temperos da floresta. Nossos sabores são naturais. As formigas não são apenas para decoração. Para os povos indígenas, elas são a proteína do dia a dia, elas nos sustentam”, afirma a chef.

Sobremesa de banana assada com melado de cana (Foto: Tadeu Rocha/Editora Globo)

Sobremesa de banana assada com melado de cana (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo)

No Biatüwi, a ancestralidade é celebrada em vários elementos. Todas as receitas são servidas em cuias, a música que toca ao fundo é indígena, os funcionários são indígenas e dentro da cozinha há um moquém, tradicional grelha de madeira usada para defumação.

Sem falar, claro, no próprio casarão e sua localização: próximo ao marco zero de Manaus, onde fica a Aldeia da Memória Indígena, lugar considerado sagrado para os povos originários. “Estamos de portas abertas para mostrar nossa cultura. Tudo que fazemos é com alegria e comprometimento, e o principal tempero da nossa comida é o amor”, fala Clarinda.

Sabores naturais

Conheça os ingredientes naturais usados para temperar as receitas servidas no Biatüwi (Foto: Tadau Rocha / Editora Globo)

Conheça os ingredientes naturais usados para temperar as receitas servidas no Biatüwi (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo)

1. Sahai
Popularmente conhecida como formiga-saúva.

2. Maniwara
Espécie de formiga comum no Alto do Rio Negro.

3. Pimenta defumada
Usada para saborizar e neutralizar o potencial de contaminação dos alimentos.

4. Polpa de umari
O fruto da árvore Poraqueiba sericeia pode ser consumido in natura ou em receitas.

5. Polpa de japurá
Das sementes da árvore Erisma japura, é feita uma massa para temperar peixes.

6. Sal de formiga
Obtido pela trituração das formigas sahai e maniwara.

7. Cará-roxo
Tuberosa de origem amazônica usada no preparo de bebidas e cozidos.

8. Tucupi preto
Caldo de mandioca reduzido por horas até ganhar o tom escuro naturalmente.