Gastronomia
Biatüwi: a gastronomia ancestral da casa de comida indígena em Manaus
No estabelecimento, a chef Clarinda Maria Ramos celebra sua cultura e ancestralidade com pratos repletos de ingredientes e saberes de etnias regionais
3 min de leitura![A chef Clarinda Maria Ramos comanda a cozinha do Biatüwi, casa de comida indígena localizada no centro histórico de Manaus (Fotos: Tadeu Rocha / Editora Globo) A chef Clarinda Maria Ramos comanda a cozinha do Biatüwi casa de comida indígena em Manaus (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo)](https://cdn.statically.io/img/s2.glbimg.com/ZhLaRRZnu4sAPkaW4sljTrOZXTE=/620x455/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2022/09/05/biatuwi-casa-comida-indigena-manaus-clarinda-ramos-receitas-restaurante.png)
A chef Clarinda Maria Ramos comanda a cozinha do Biatüwi, casa de comida indígena localizada no centro histórico de Manaus (Fotos: Tadeu Rocha / Editora Globo)
Em um casarão antigo no centro histórico de Manaus, funciona a primeira casa de comida indígena do Brasil, chamada Biatüwi. Inaugurado em 2020, o espaço recusa o rótulo de restaurante.
“A nossa ideia é mostrar um pouco da nossa cultura por meio da comida. Por trás de cada ingrediente, de cada tempero, tem uma cosmologia. Queremos mostrar que a comida indígena não é exótica, é aquilo que consumimos no dia a dia”, diz a chef Clarinda Maria Ramos, de 54 anos.
![A entrada do Biatüwi, localizado na Rua Bernardo Ramos, n.97. O funcionamento é de quarta a sábado, das 11h30 às 15h (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo) A entrada do Biatüwi, localizado na Rua Bernardo Ramos, n.97. O funcionamento é de quarta a sábado, das 11h30 às 15h (Foto: Tadeu Rocha/Editora Globo)](https://cdn.statically.io/img/s2.glbimg.com/eoNWFK9K7lqlxvScf-hcWw58QKA=/620x455/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2022/08/10/entrada-de-restaurante-biatwi.jpg)
A entrada do Biatüwi, localizado na Rua Bernardo Ramos, n.97. O funcionamento é de quarta a sábado, das 11h30 às 15h (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo)
Os pratos unem ingredientes e saberes das etnias Tukano, da região do Alto Rio Negro, e Sateré-Mawé, do município Barreira, no Baixo Amazonas, onde Clarinda nasceu. Na juventude, ela deixou sua comunidade, em Ponta Alegre, para trabalhar em Parintins e depois em Manaus.
Anos mais tarde, formou-se em Pedagogia na Universidade Estadual do Amazonas (UEA) e, durante a graduação, conheceu o antropólogo João Paulo Lima Barreto – também chamado de Yupuri na língua tukano –, seu companheiro e co-idealizador do Biatüwi.
![Puquecado (filé ou costela de peixe embrulhado na folha de cacau e assado no moquém, acompanhado de formigas torradas, porção de beiju, limão e farinha) (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo) Puquecado (filé ou costela de peixe embrulhado na folha de cacau e assado no moquém, acompanhado de formigas torradas, porção de beiju, limão e farinha) (Foto: Tadeu Rocha/Editora Globo)](https://cdn.statically.io/img/s2.glbimg.com/yE98av6cE5nJALUeZKlG5Fv4gv4=/620x850/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2022/08/10/formigas-torradas-beiju-limao.jpg)
Puquecado (filé ou costela de peixe embrulhado na folha de cacau e assado no moquém, acompanhado de formigas torradas, porção de beiju, limão e farinha) (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo)
“Ele me motivou a voltar a estudar. Quando saí da comunidade, passei por muitas situações de preconceito, então tinha medo. Mas comecei a participar de reuniões do movimento indígena, entender a importância da minha cultura, e isso foi me incentivando”, declara a chef, que também fez mestrado em Antropologia na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
![Aluá, tradicional bebida fermentada de abacaxi (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo) Aluá, tradicional bebida fermentada de abacaxi (Foto: Tadeu Rocha/Editora Globo)](https://cdn.statically.io/img/s2.glbimg.com/R6wCQ4Ig-EFdutszl_ymE7GhaG0=/620x850/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2022/08/10/bebida-fermentada-de-abacaxi-.jpg)
Aluá, tradicional bebida fermentada de abacaxi (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo)
Durante os estudos, Clarinda e João começaram a pensar em maneiras de agregar valor a seus conhecimentos indígenas. No mesmo casarão do Biatüwi, o antropólogo já coordenava o funcionamento do Bahserikowi, centro de medicina indígena, desde 2017.
O imóvel, que já fora ponto de venda de artesanato de povos originários, foi cedido pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Assim, a ideia foi montar um local que nutrisse alma e corpo.
![A chef Clarinda na entrada da cozinha do Biatüwi (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo) Clarinda na entrada da cozinha do Biatüwi (Foto: Tadeu Rocha/Editora Globo)](https://cdn.statically.io/img/s2.glbimg.com/S-8uG4wZO4t42ROQ5swSdC1x8l4=/620x455/bottom/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2022/08/10/chef-clarinda.jpg)
A chef Clarinda na entrada da cozinha do Biatüwi (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo)
“Nós não tínhamos dinheiro, nem sabíamos por onde começar, como elaborar um cardápio, fazer a apresentação dos pratos ou a administração da casa. Toda a experiência que eu tinha na cozinha era prática, da vivência na minha comunidade”, ela revela.
O principal apoio veio de Débora Shornik, chef do restaurante Caxiri, também em Manaus. Ao lado de amigos, a paulistana deu treinamentos, capacitou a equipe e ajudou a levantar recursos para o projeto sair do papel.
![Porção de beiju e mujeca, caldo engrossado com goma, peixe desfiado e temperado com pimentas defumadas e polpa dos frutos umari ou japurá, típicos da Amazônia (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo) Porção de beiju e mujeca, caldo engrossado com goma, peixe desfiado e temperado com pimentas defumadas e polpa dos frutos umari ou japurá, típicos da Amazônia (Foto: Tadeu Rocha/Editora Globo)](https://cdn.statically.io/img/s2.glbimg.com/-PvFyU6IxbPpvkCuiPRuMZVy3lI=/620x850/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2022/08/10/beiju-mujeca.jpg)
Porção de beiju e mujeca, caldo engrossado com goma, peixe desfiado e temperado com pimentas defumadas e polpa dos frutos umari ou japurá, típicos da Amazônia (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo)
O estabelecimento abriu em novembro de 2020. O nome “bia” significa pimenta, e “wi”, morada. Ou seja, em tradução livre: “casa onde se prepara comida apimentada”. “Tradicionalmente, a comida indígena é bem picante. Mas aqui demos uma tranquilizada no ardume”, diz Clarinda. As receitas, assim como os ingredientes nelas usados, são provenientes de comunidades Tukano e Sateré-Mawé.
![O Biatü é considerado comida dos deuses, consumido diariamente pelos povos indígenas do Alto do Rio Negro, com ou sem peixe, em vários horários. Na foto é acompanhado de beiju (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo) O Biatü é considerado comida dos deuses, consumido diariamente pelos povos indígenas do Alto do Rio Negro, com ou sem peixe, em vários horários. Na foto é acompanhado de beiju (Foto: Tadeu Rocha/Editora Globo)](https://cdn.statically.io/img/s2.glbimg.com/37EFe6XP6Fh8Qr9vaMwos5eavkw=/620x850/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2022/08/10/biatu.jpg)
O Biatü é considerado comida dos deuses, consumido diariamente pelos povos indígenas do Alto do Rio Negro, com ou sem peixe, em vários horários. Na foto é acompanhado de beiju (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo)
O carro-chefe do menu é o biatü, também chamado quinhapira, um caldo de peixe com tucupi preto. Outros destaques são a mujeca (caldo engrossado com goma, peixe desfiado e polpa de umari ou japurá), o puquecado (filé ou costela de peixe embrulhado na folha de cacau acompanhado de beiju e farinha) e as bebidas fermentadas.
Há, ainda, as formigas sahai e maniwara, torradas em farofas e porções. “Não usamos nenhum condimento, apenas temperos da floresta. Nossos sabores são naturais. As formigas não são apenas para decoração. Para os povos indígenas, elas são a proteína do dia a dia, elas nos sustentam”, afirma a chef.
![Sobremesa de banana assada com melado de cana (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo) Sobremesa de banana assada com melado de cana (Foto: Tadeu Rocha/Editora Globo)](https://cdn.statically.io/img/s2.glbimg.com/3q5T_kkN1GZ3djTsvp7VqrSQoBM=/620x850/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2022/08/10/banana-assada-com-melado-de-cana.jpg)
Sobremesa de banana assada com melado de cana (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo)
No Biatüwi, a ancestralidade é celebrada em vários elementos. Todas as receitas são servidas em cuias, a música que toca ao fundo é indígena, os funcionários são indígenas e dentro da cozinha há um moquém, tradicional grelha de madeira usada para defumação.
Sem falar, claro, no próprio casarão e sua localização: próximo ao marco zero de Manaus, onde fica a Aldeia da Memória Indígena, lugar considerado sagrado para os povos originários. “Estamos de portas abertas para mostrar nossa cultura. Tudo que fazemos é com alegria e comprometimento, e o principal tempero da nossa comida é o amor”, fala Clarinda.
Sabores naturais
![Conheça os ingredientes naturais usados para temperar as receitas servidas no Biatüwi (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo) Conheça os ingredientes naturais usados para temperar as receitas servidas no Biatüwi (Foto: Tadau Rocha / Editora Globo)](https://cdn.statically.io/img/s2.glbimg.com/ofCtZzdMvb864SC3gsbnq5Rvhn4=/620x455/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2022/09/05/biatuwi-casa-comida-indigena-manaus-clarinda-ramos-ingredientes.jpg)
Conheça os ingredientes naturais usados para temperar as receitas servidas no Biatüwi (Foto: Tadeu Rocha / Editora Globo)
1. Sahai
Popularmente conhecida como formiga-saúva.
2. Maniwara
Espécie de formiga comum no Alto do Rio Negro.
3. Pimenta defumada
Usada para saborizar e neutralizar o potencial de contaminação dos alimentos.
4. Polpa de umari
O fruto da árvore Poraqueiba sericeia pode ser consumido in natura ou em receitas.
5. Polpa de japurá
Das sementes da árvore Erisma japura, é feita uma massa para temperar peixes.
6. Sal de formiga
Obtido pela trituração das formigas sahai e maniwara.
7. Cará-roxo
Tuberosa de origem amazônica usada no preparo de bebidas e cozidos.
8. Tucupi preto
Caldo de mandioca reduzido por horas até ganhar o tom escuro naturalmente.