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Artigos escritos por colunistas convidados especialmente para O GLOBO.

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Quem assiste a “Vale o escrito”, esplêndido documentário do núcleo de Pedro Bial, no Globoplay, é tomado pela incredulidade diante da desfaçatez dos entrevistados. Chocam os depoimentos que naturalizam assassinatos encomendados pelos capos da contravenção, como se fossem providências para a gestão de seus “negócios”. Ainda mais desconcertantes são as falas de delegados recordando com um sorriso irônico como “toda a polícia” compareceu às festas organizadas pela cúpula do bicho. Subentendido — prosaica expressão da vida como ela é na Cidade Maravilhosa — o fato de boa parte da polícia ter recebido e receber propinas do bicho.

Em recente entrevista ao economista Marcos Lisboa no Brazil Journal, o pesquisador Leandro Piquet Carneiro cita estudos comprovando que, quando uma atividade criminosa se estabelece, outras se organizam a seguir. No Rio, segundo o pesquisador, a decisão da cúpula do bicho de sistematicamente corromper a polícia — o que fizeram com amplitude e intensidade sem paralelo — foi um ponto de inflexão. O esquema teve desdobramentos além da contravenção. Um desses, apontou Carneiro, sobreveio com a popularização da cocaína. Bicheiros se associaram à expansão da droga, abrindo o caminho dos traficantes a sua rede de policiais corruptos, sabotando qualquer possibilidade de combate ao narcotráfico. Décadas depois, assistimos à continuidade da cooptação da polícia na atuação das milícias, que não apenas subornam, como são frequentemente lideradas por ex-PMs.

Um dos fatos iluminados por “Vale o escrito” é a relação da contravenção com a gênese do Escritório do Crime, grupo de policiais transformados em matadores por encomenda. Adriano da Nóbrega, ex-capitão da PM e um dos fundadores do Escritório, começou “prestando serviços” para bicheiros. Depois se tornou um dos chefes da milícia de Rio das Pedras. Copiando estratégia do bicho, estabeleceu laços com políticos. Em 2005, por iniciativa do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, Adriano foi condecorado pela Assembleia Legislativa. Meses depois, recebeu rasgados elogios do então deputado federal Jair Bolsonaro no Congresso Nacional.

É intricada a rede que liga bicheiros, milicianos, traficantes, policiais corruptos e políticos cariocas. Os assassinos da vereadora Marielle Franco integravam o mesmo Escritório do Crime. Resta saber em que ponto da estrutura do crime se abrigam os mandantes de sua execução.

“Vale o escrito” documenta instâncias em que a contravenção abriu precedentes a outros bandidos — como a lavagem de imagem canalizando dinheiro para escolas de samba. Os mesmos bicheiros que ordenam execuções e subornam delegacias inteiras desfilam pelo Sambódromo à guisa de simpáticos mecenas. Posam para fotos com governadores e prefeitos, dão entrevistas aos telejornais. Agora, surge a informação de que chefes de milícias se movimentam para patrocinar as escolas da Série Ouro, primeiro passo para chegar ao Grupo Especial, expressão singular da vida e arte do Rio.

Há dias, a população — perplexa diante da geleia geral na segurança pública, em que por vezes parece impossível distinguir os interesses de milicianos, políticos, policiais e bicheiros — sofreu um novo e terrível golpe com a notícia da execução de Vaneza Lobão, jovem cabo da PM que investigava a participação de policiais nas milícias na Zona Oeste.

Os desconcertantes depoimentos de “Vale o escrito”, as análises aguçadas de Piquet Carneiro e as páginas do noticiário apontam uma realidade que nós, cariocas, relutamos em reconhecer: políticos que nomeiam indivíduos ligados à milícia, personalidades que posam com bicheiros, autoridades que ignoram a extensão da corrupção policial fortalecem o crime organizado. São corresponsáveis não só pela redução de investimentos, pela perda de empregos e pela degradação das instituições da cidade, como pela violência sofrida pelas vítimas do crime.

*Roberto Feith é jornalista e editor

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