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Presidente do Afeganistão foge, e Talibã toma o poder no país

Volta do grupo ao controle de Cabul ocorre 20 anos após sua expulsão por invasão americana; falta de resistência das forças do governo surpreende a própria milícia fundamentalista
Um soldado afegão em um veículo militar em uma rua em Cabul, no Afeganistão Foto: STRINGER / REUTERS
Um soldado afegão em um veículo militar em uma rua em Cabul, no Afeganistão Foto: STRINGER / REUTERS

CABUL —  O governo do Afeganistão entrou em colapso neste domingo com a fuga do país do presidente, Ashraf Ghani, e a entrada do Talibã na capital, Cabul — marcando, na prática, a volta do grupo fundamentalista ao poder, 20 anos depois de seu regime ser derrubado pela invasão dos Estados Unidos, em outubro de 2001.

Um novo governo ainda não foi formalmente anunciado e ainda há, em tese, negociações com lideranças políticas do Gabinete pró-Ocidente que ficou sem líder com a fuga de Ghani. No entanto, comandantes do Talibã assumiram o controle do palácio presidencial em Cabul e deram entrevista no local, dizendo que estavam garantindo a segurança na cidade para a volta de seus líderes que estão no exílio e fora da capital. O grupo divulgou um comunicado informando que assumiu os postos policiais que foram abandonados pelas forças do antigo governo.

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“O Emirado Islâmico ordenou que suas forças entrem nas áreas de Cabul abandonadas pelo inimigo por causa do risco de roubos e furtos”, disse o comunicado assinado por um porta-voz do grupo, Zabiullah Mujahid, usando o nome pelo qual a milícia se identifica. “Os talibãs receberam a ordem de não atacar civis nem entrar em suas casas”, continuou o comunicado. “Nossas forças estão entrando em Cabul com cautela.”

Coube a Abdullah Abdullah, o chefe do Conselho de Reconciliação Nacional Afegão, confirmar que o presidente Ghani deixara o país no início da tarde de hoje.

— O ex-presidente do Afeganistão deixou o Afeganistão nessa situação difícil. Deus deveria fazê-lo pagar — disse Abdullah, que comanda o organismo criado para conduzir as negociações de paz com o Talibã que vinham ocorrendo em Doha, no Qatar, e que fracassaram em chegar a um acordo.

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O próprio Ghani depois divulgou um comunicado dizendo que deixou o Afeganistão para “evitar um banho de sangue”. Segundo a emissora al-Jazeera, ele teria ido para Tashkent, no Uzbequistão, com sua mulher, seu chefe de Gabinete e seu conselheiro de Segurança Nacional.

Ao mesmo tempo, o ex-presidente afegão Hamid Karzai — que assumiu o poder logo após a invasão americana e ficou até 2014 — anunciou que estava formando um conselho de coordenação com Abdullah e outros líderes para organizar uma transferência pacífica de poder. Ele pediu que tanto as forças do governo em colapso quanto as do Talibã atuem com comedimento para evitar combates na capital.

Sem resistência

O avanço do Talibã até Cabul, no entanto, praticamente não enfrentou resistência militar. Seus combatentes chegaram às portas da capital neste domingo cedo, após uma ofensiva relâmpago de menos de duas semanas em que tomaram o controle de todas as principais cidades do Afeganistão, às vésperas da conclusão da retirada das forças dos EUA e de seus aliados da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), prevista para 31 de agosto.

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O próprio Talibã demonstrou ter sido surpreendido com a fuga do presidente e a facilidade com que entrou na capital, onde supostamente as forças do governo estariam se preparando para combates

O porta-voz do braço político do grupo, Mohammed Naeem, disse à al-Jazeera que o Talibã não contava com a fuga e que o novo regime será determinado em breve. Segundo Naeem, o Talibã está preparado para lidar com as preocupações internacionais “por meio do diálogo”, mas não permitirá interferência no país:

— A guerra no Afeganistão terminou — disse ele, afirmando crer que forças estrangeiras não tentarão repetir seu “experimento fracassado” no Afeganistão. — Garantimos a todos que haverá segurança para os cidadãos e missões diplomáticas. Estamos prontos para dialogar com todos os atores afegãos e vamos garantir a eles a proteção necessária.

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Já o chefe do birô político talibã, o mulá Baradar, disse que a vitória é incontestável e que o avanço das últimas semanas foi “inesperadamente tranquilo”. Afirmou, no entanto, que o “teste real” para o grupo começará agora, ao tentar atender as expectativas da população e resolver seus problemas.

Embora as forças do Talibã tenham afirmado inicialmente que não pretendiam tomar a capital pela força, durante o dia mais e mais combatentes do grupo entraram na cidade, circulando em motos, carros de polícia e até jipes Humvee americanos tomados das forças de segurança.

— Garantimos às pessoas, particularmente na cidade de Cabul, que suas propriedades e suas vidas estão seguras — disse à BBC Suhail Shaheen, outro porta-voz do grupo, baseado no Qatar, afirmando ainda que os direitos das mulheres serão respeitados, assim como os da imprensa e dos diplomatas, declaração também feita por Naeem à al-Jazeera.

Ocupação e retirada

No período em que ficou no poder no Afeganistão, entre 1996 e 2001, o Talibã proibiu as mulheres de estudar e de trabalhar fora de casa, realizando frequentes execuções públicas de pessoas acusadas de violar a versão fundamentalista do Islã adotada pelo grupo. Nenhuma manifestação cultural era permitida por seu regime, que foi derrubado na invasão de 2001 sob a acusação de dar abrigo a Osama bin Laden, fundador da rede al-Qaeda e arquiteto dos ataques terroristas do 11 de Setembro daquele ano nos EUA.

Depois de 20 anos da guerra americana mais longa, a retirada dos militares que restavam — cerca de 6 mil, entre tropas dos EUA e de outros países da Otan — foi acertada em um acordo com o Talibã assinado no início de 2020 pelo governo de Donald Trump. Já naquela época, o grupo, que tem bases na etnia pachto, a maior do Afeganistão, mantinha o domínio de boa parte das áreas do interior do país.

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Neste domingo, enquanto o Talibã avançava, militares dos EUA começaram a retirar funcionários civis e diplomatas de Cabul. O Pentágono anunciou que enviará mais mil soldados adicionais ao Afeganistão, além dos 5 mil anunciados no sábado, para ajudar a remover esses cidadãos. No entanto, o presidente Joe Biden deixou claro que não mudará sua decisão de retirar todas as forças de combate americanas da nação da Ásia Central. Desde maio, essas forças já estavam reduzidas ao mínimo, diminuindo os bombardeios que mantinham o Talibã longe dos grande centros urbanos.

Velocidade surpreende

Antes da queda de Cabul, as últimas grandes cidades afegãs que ainda eram controladas pelo governo foram tomadas em rápida sucessão no fim de semana. Os talibãs tomaram Mazar-i-Sharif, no Norte, na noite de sábado, apenas uma hora depois de romperem as linhas de frente nos limites da cidade. Logo depois, as forças de segurança do governo e integrantes de milícias locais aliadas — incluindo as lideradas pelos chamados “senhores da guerra” Abdul Rashid Dostum e Atta Muhammad Noor — fugiram, entregando o controle da cidade aos insurgentes.

Na manhã de hoje, o Talibã tomou a cidade de Jalalabad, no Leste do país, assumindo o controle da passagem de fronteira de Torkham, entre o Afeganistão e o Paquistão.

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O sucesso militar do Talibã expôs a debilidade de um Exército afegão que os EUA gastaram mais de US$ 83 bilhões para armar e treinar. A velocidade do avanço minou o planejamento de retirada das forças ocidentais. Muitos analistas acreditavam que os militares afegãos seriam derrotados após a saída das tropas estrangeiras, mas que isso só aconteceria depois de meses ou anos de combates — como aconteceu em 1989, após a retirada dos invasores soviéticos, quando o governo que apoiavam ainda resistiu três anos no poder.