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À medida que Estados Unidos deixam Afeganistão, outras potências atuam para ocupar vácuo diplomático e militar

Com medo de instabilidade e de aumento de ações terroristas, Rússia, China e outros atores regionais dialogam com o Talibã
Cerimônia de graduação de militares do Exército do Afeganistão, que trava uma guerra com o Talibã: o país pode mergulhar na instabilidade Foto: - / AFP
Cerimônia de graduação de militares do Exército do Afeganistão, que trava uma guerra com o Talibã: o país pode mergulhar na instabilidade Foto: - / AFP

Depois de quase 20 anos de guerra, 31 de agosto é a data marcada por Joe Biden para a retirada dos soldados americanos e de seus aliados da Otan do Afeganistão. Conforme a saída se aproxima, outros atores se mobilizam diplomática e militarmente para limitar a instabilidade no país da Ásia Central. O Talibã — que, na esteira da saída, empreende uma ofensiva contra o governo de Cabul e já controla a maior parte do território afegão — mantém negociações com Rússia, China, Irã, Paquistão e Índia. Os países têm interesses diferentes entre si, mas, em todos, ronda o temor de que jihadistas do Estado Islâmico ganhem força e o caos prolifere.

A Rússia tem sido uma das partes mais atuantes. Ontem, o país anunciou que reforçará a sua presença militar no Tadjiquistão, ex-república soviética que, junto com Uzbequistão e Turcomenistão, faz fronteira com o Afeganistão ao norte. Na semana que vem, devem acontecer exercícios militares envolvendo Tadjiquistão,Uzbequistão e Rússia.

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Desde 2003, o Talibã é considerado uma organização ilegal pelo Kremlin, mas isso não impediu que, no começo do mês, três de seus representantes fossem a Moscou, onde buscaram sinalizar que não são uma ameaça. As autoridades talibãs disseram que o grupo se esforçará para impedir que o Estado Islâmico opere em território afegão. Na semana passada o chanceler russo, Sergei Lavrov, afirmou que os talibãs são “pessoas razoáveis”.

Moscou tem três interesses no Afeganistão, segundo Andrew Korybko, analista político baseado em Moscou. Em primeiro lugar, deter a expansão do Estado Islâmico e da al-Qaeda no Afeganistão. Ambos os grupos terroristas estão enfraquecidos, mas ainda mantêm células. Em segundo lugar, a Rússia não deseja um retorno de forças americanas à região. “A terceira prioridade é garantir de forma sustentável a estabilidade de longo prazo do Afeganistão, o que é muito difícil de alcançar, uma vez que seu futuro é muito incerto”, escreveu Korybko.

Mapa dos vizinhos do Afeganistão e de potências regionais Foto: Arte O Globo
Mapa dos vizinhos do Afeganistão e de potências regionais Foto: Arte O Globo

Segundo o analista, Moscou quer que o Talibã e o governo de Cabul formem um governo de coalizão. Para outros analistas, Moscou acredita que o Talibã inevitavelmente assumirá o controle do país, e precisa de ajuda para gerenciá-lo, por incapacidade administrativa.

Enquanto isso, a China mantém o próprio diálogo com os talibãs. Anteontem, o chanceler chinês Wang Yi posou sorrindo com uma delegação de nove enviados do grupo. A mensagem era clara: a China o aceita como interlocutor. O Talibã “representa uma força política e militar chave, e desempenhará um papel importante no processo de paz, reconciliação e reconstrução”, disse o chanceler em nota.

Wang reiterou o que Pequim espera do Talibã: que detenha o Movimento Islâmico do Turquestão Oriental (Etim), um grupo radical uigur que a China acusa de ser ativo na região de Xinjiang e de querer praticar atos terroristas para conquistar a independência. O Etim, sublinha o comunicado, representa uma “ameaça direta à segurança nacional da China”. Em resposta, Pequim recebeu essas garantias.

— A delegação garantiu à China que não permitirá que ninguém use o território afegão contra a China — disse o porta-voz do Talibã, Mohammed Naeem. — A China reiterou seu compromisso de continuar sua assistência aos afegãos e disse que não interferirá nos assuntos do Afeganistão.

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Outra delegação do Talibã esteve em Teerã. Estima-se que o Irã abrigue 780 mil refugiados afegãos registrados e até 2,5 milhões sem documentos. Forças do Talibã já controlam a maior parte da extensa fronteira entre os países. Segundo estimativas, até 1 milhão de afegãos podem migrar para o Irã xiita, que também receia a presença de combatentes sunitas na fronteira.

No começo de julho, o ministro das Relações Exteriores iraniano, Javad Zarif, se reuniu com representantes do Talibã e do governo afegão. Em um comunicado conjunto, os lados afegãos reconheceram os “perigos de continuar a guerra”. As partes também condenaram os ataques a instalações públicas e a “casas, escolas, mesquitas e hospitais das pessoas, causando vítimas civis”.

Já a Índia, segundo o jornal indiano The Hindu, abriu um canal secreto de negociação com o Talibã. A Índia tem três áreas cruciais de interesse: proteger investimentos no Afeganistão, impedir que um futuro regime seja uma marionete do Paquistão e impedir que grupos armados anti-Índia patrocinados pelo Paquistão se fortaleçam. Por sua vez, o Paquistão — que, na década de 1990, foi um dos três países a reconhecerem o regime do Talibã — gostaria de ver o grupo em Cabul, mas por meio de uma solução negociada, e não de uma tomada violenta. O governo paquistanês entende que o uso da força geraria repúdio internacional e deixaria a região instável, produzindo ondas de refugiados.

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Frente a esses cenários, os EUA lavam as mãos. Segundo estudo publicado por Christopher Mott, pesquisador do instituto Defense Priorities, de Washington, “mesmo o pior cenário terá pouco impacto na segurança dos EUA”. O país permanecerá com uma rede de espionagem e capaz de lançar ataques pontuais, como assassinatos, sem enviar tropas. “Os EUA podem alcançar seus objetivos de contraterrorismo em quase todas as circunstâncias”, disse ele.

“Embora a instabilidade de curto prazo provavelmente aumente após a retirada, os interesses dos Estados vizinhos, alguns concorrentes estratégicos dos EUA, garantem que trabalharão para restaurar algum tipo de equilíbrio nos assuntos do Afeganistão", acrescentou. "A região pode acabar parecida com o equilíbrio geopolítico que tinha antes da invasão dos EUA, mas com Estados regionais tendo maiores interesses para lidar com organizações terroristas."